professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *

O ano de 2010 termina e começa outro ano, o ano-novo, um novo ano para viver todinho. Para alguns foi um ano de felicidade e realizações: o nascimento de um filho, o alcance de um sonho há muito perseguido, uma relação que se estabilizou e foi celebrada publicamente, um trabalho coroado de êxito. Para outros foi de perda e negatividade: perda do emprego, de gente querida, de segurança, de recursos, enfim de muita coisa que trazia gosto e sabor à vida.

Em qualquer das duas situações, importa no novo ano deixar para trás o que passou e procurar realmente renovar o olhar, a atitude, o pensamento, o agir. Trata-se de mais do que simplesmente uma lista de resoluções sobre perder peso e fazer ginástica. Ou pintar o cabelo de louro ou de preto. Trata-se de uma renovação profunda e totalizante.

Para que o ano seja novo, há que estar disposto a renovar aquilo que há de mais profundo em nós e que nos faz mais humanos. Por exemplo, parar de continuar a nos autocompreender a partir de nós mesmos e defendendo desordenadamente, com unhas e dentes, um espaço “próprio”. Para que o Ano seja novo, é preciso que nosso “lugar” de autocompreensão não seja nós mesmos, mas o outro ou a outra. Um dos baluartes da autocompreensão do ser humano é sua capacidade de êxodo de si mesmo, de êxtase, de saída da mesmice do olhar para si próprio e olhar para a alteridade e a diferença daquele ou daquela que tem frente a si.

E assim fazendo, seu destino não é perder “seu” lugar para andar errante pela terra, sem ter para onde ir. Mas é, pelo contrário, descobrir para si nova situação, novo lugar, outra terra, outra pátria, outra paisagem. Para que o ano seja novo, é necessário permitirmos que a solicitude, o amor e a generosidade nos arranquem de nós mesmos para situar-nos no outro, em seu lugar, suas preocupações, seus amores, suas dores, suas penas e glórias e fazer assim possível a descoberta e a vivência de uma nova comunhão.

Na antropologia se reproduzirá então o êxodo do Verbo, o qual, sendo de condição divina, não se aferrou à prerrogativa de ser igual a Deus, mas se fez homem, humilde, servo, obediente, até a morte de cruz (Fil 2,5-11). Reproduz-se, também, o êxodo do próprio Espírito, enviado constantemente pelo Pai e pelo Filho, “outro” Paráclito que tem a missão de “recordar” e “rememorar” as palavras ditas por Jesus de Nazaré e conduzir seus ouvintes a toda a verdade (cf. Jo 16,13; 14,26; 15,26). Assim, à semelhança do êxodo e da “saída” constante e contínua do próprio Deus de si mesmo, contemplando e experimentando o próprio Filho e o próprio Espírito que saem da inefabilidade da comunhão intra-trinitária em direção ao mundo e à humanidade, o ser humano passará a ser e autocompreender-se, perpetuamente, como um peregrino, não possuindo aqui lugar onde repousar a cabeça, se encontrando em si mesmo, mas apenas fora de si mesmo, no outro, nos outros.

Essa experiência implicará para nós neste ano que queremos novo viver no espaço do outro e admitir que o outro viva em nosso próprio espaço. Esse fato tem várias e sérias implicações e consequências em todos os níveis. Essa alteração permanente do espaço significa, por um lado, caminhar sempre rumo ao desconhecido e abrir-se para ser por sua vez invadido pelo desconhecido. O outro é um mistério nunca de todo revelado. Dispor-se a viver em seu espaço é expor-se a ser talvez rejeitado, abafado, sufocado, entristecido, ultrajado e mesmo extinto. É ter que permanecer no espaço alheio, anônima e obscuramente, como o grão de trigo que morre para dar fruto . É ter que assumir as características do outro, sua cultura, suas categorias, para a partir daí anunciar-lhe a Boa Nova e não impor-lhe categorias estranhas, que não permitirão o acesso à comunicação e à verdadeira comunhão.

A pergunta divina a Caim, depois da queda original, “Onde estás”? (Gen 3,9), não significa somente o lugar entendido como espaço físico e geográfico, mas toda a situação existencial do ser humano. É esta que desejamos nova no novo ano que agora começa. E para que assim seja, é essencial aprender a responder a essa visceral pergunta não a partir de nós mesmos, mas do outro e dos outros.

Eu me situo no outro. Sou, sim, responsável por meu irmão. Respondo por ele, falo em nome dele ou dela quando a palavra lhes seja cassada; ajo em nome dele ou dela quando estiverem de mãos atadas; corro em seu auxílio quando estiverem necessitados. Assim, Aquele que renova todas as coisas será novo também em nós, pois através de nós estará levando a termo o parto da Nova Criação, feita de justiça e de amor.

FELIZ ANO NOVO!

* Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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