professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio*
Nos últimos tempos, o estudo da mística medieval e de seus personagens principais tem crescido muito na área da Teologia e das Ciências da Religião. Fica patente que o preconceito contra o período medieval, frequentemente chamado “Idade das trevas” como um tempo de obscurantismo e atraso não tem absolutamente razão de ser. Pelo contrário, na Idade Média aconteceram fenômenos dentro do âmbito, sobretudo da religião e da mística, que ultrapassam de muito em ousadia e avanço algumas das mais atrevidas iniciativas de hoje.
Até mesmo em relação à mulher, questão sempre controvertida ao se refletir sobre o Cristianismo, pelo lugar um tanto secundário que lhe foi e é ainda reservado, a Idade Média tem, sim, muito a nos ensinar. Pois durante este período surgiram mulheres de alta estatura espiritual e mística, que questionaram em sua época e graças à sua busca e experiência de Deus privilegiadas o “status quo” preconceituoso e fechado da organização eclesiástica.
Duas dessas mulheres merecem ser olhadas com mais atenção neste momento, especialmente pelo fato de que mesmo o cinema resolveu prestar atenção em suas vidas e legados. São elas Hadewijch de Antuérpia e Hildegard de Bingen.
Hadewjich de Antuérpia – poeta e mística – viveu no século XIII, provavelmente no país brabantino. Muitos de seus escritos, nenhum dos quais sobreviveu à Idade Média, foram redigidos no original na forma brabantina da língua flamenga média. É relacionada à cidade belga de Antuérpia, pois um de seus manuscritos, cópia do autógrafo, foi encontrado nesta cidade. Porém, a maioria dos outros manuscritos que continham seu trabalho foi encontrada perto de Bruxelas.
Seus escritos incluem visões, cartas em prosa e poesia. Há dois tipos de poemas em sua obra: a poesia lírica e cortesã, seguindo os padrões dos estilos da época, mas sempre com o tema do amor cortês sendo substituído pelo amor sublimado de Deus. As outras séries de poemas são didáticas, em formato de carta, sobre tópicos cristãos de doutrina.
Não há uma biografia ordenada e articulada sobre seus escritos, apenas esparsas indicações que levam a concluir que ela fazia parte do movimento emergente das beguinas, comunidades contemplativas e místicas de mulheres vistas com desconfiança pela hierarquia eclesiástica. Hadewijch tinha uma cultura vasta e profunda de literatura e teologia em várias línguas, incluindo latim e francês, num tempo em que estudar era um luxo do qual as mulheres podiam usufruir apenas excepcionalmente.
Apesar disso, Hadewijch deixou um luminoso rastro na história da mística e é considerada precursora e influência predominante sobre o grande místico e teólogo flamengo Jan van Ruusbroec, que desenvolveu muitas de suas intuições e ideias, embora de maneira mais teológico-sistemática.
Hildegarde de Bingen viveu no século XII, foi monja beneditina e é santa canonizada da Igreja Católica. Personalidade muito citada, mas de fato pouco conhecida pelo grande público, Hildegarde rompeu as barreiras dos preconceitos contra as mulheres que existiam em seu tempo, sendo respeitada como uma autoridade em assuntos teológicos e louvada por seus contemporâneos em altos termos.
Hoje é considerada uma das figuras mais singulares e importantes do século XII europeu, e suas conquistas têm poucos paralelos mesmo entre os homens mais ilustres e eruditos de sua geração. Hildegarde possuía, além de mística, profundas intuições e conhecimentos em medicina, sobretudo a partir das pedras e das plantas, desvendando, por iluminação divina, profundos segredos da natureza. Seus vários e extensos escritos mostram que tinha uma concepção mística e integrada do universo. A solução para os problemas que percebia no mundo, de acordo com ela, devia resultar de uma união cooperativa e harmoniosa entre corpo e espírito, entre natureza, vontade humana e graça divina.
Hildegarde não pretendeu inaugurar uma nova corrente de pensamento religioso, permanecendo fiel à Regra Beneditina e à ortodoxia Católica. Apesar disso, assumiu atitudes singulares para uma mulher, pregando itinerantemente e combatendo as heresias e a corrupção do clero. Quis acima de tudo desvelar para seus semelhantes os mistérios da religião, do cosmos, do ser humano e da natureza. Para ela, o universo era a resposta para as dúvidas da humanidade, e esta era a resposta para o enigma do universo. Mas, como ela mesma escreveu, se a humanidade não fizesse a pergunta, o Espírito Santo não poderia respondê-la.
Duas mulheres sedentas de Absoluto que, ao crer em sua sede e perseguir o Senhor de seu desejo, deram contribuição inestimável à humanidade. Uma por sua poesia mística e sua teologia; outra por sua ciência ensinada por infusão do Espírito de Deus. Ambas tiveram problemas com a hierarquia masculina, que delas desconfiava por serem mulheres. Superaram esses problemas galhardamente, mostrando à humanidade até onde pode chegar a mulher quando consente que Deus se apodere de seu ser aberto e fecundo para a espiritualidade.
O filme sobre Hildegarde de Bingen chama-se “Vision” e tem direção alemã, com a soprano Barbara Sukow no papel principal. Sobre Hadwijch, o diretor franco-canadense Bruno Dumont faz uma releitura para os dias de hoje. O importante é a voz das mulheres de ontem que ressoa hoje, transformando um mundo moldado pelo patriarcalismo e que dá sinais de cansaço. A seiva mística dessas mulheres pode desalterar a sede de sentido que esse mundo apresenta. Ouçamos Hadewijch e Hildegarde. Elas têm algo importante a nos dizer.
Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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