Djanira Silva 30 de outubro de 2008


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Nonato passava as noites lendo. Não haveria nenhum mal se não lesse tão alto. Os irmãos reclamavam, não podiam dormir. Declamava A Odisséia. A mãe não tinha paciência. O pai, sabia, sim ele sabia o que estava acontecendo.
Naquela manhã todos se encontravam à mesa quando ele se aproximou.
– Sente-se.
– Sim, senhor meu pai, Amável senhor, julgar-me-ás um louco se vos disser uma coisa?
– De onde tirou esta frase, sua não é.
– Deixa o menino falar, Augusta, deixa ele falar.
– Pai, eu preciso ficar triste.
Os irmãos se entreolharam. O pai fez um gesto pedindo-lhes calma.
– Preciso ficar triste, repetiu.
– E por que não fica? – Não havia convicção na voz da mãe.
– Porque não posso.
Sentou-se de cabeça baixa. Não quis comer. Quando o pai se retirou ele o seguiu.
No Domingo de Páscoa almoçavam. Nonato quebrou o silêncio:
– Preciso chorar.
– Agora, Nonato? Deixe pra depois, almoce primeiro.
– Não posso chorar de barriga cheia, mãe, estou triste, pensando na galinha pedrês que a gente tá comendo.
Os irmãos não tinham paciência.
– Quer aperrear mãe, quer?
– Deixa, Amélia, ele quer chamar a atenção, sempre foi assim.
– É mesmo, Nina, é um abestalhado
– Abestalhado nada, Leonardo, tá acontecendo alguma coisa. Ele sempre gostou de estudar. Lê muito. Não tem uma coisa que a gente pergunte que ele não saiba. O quarto dele é cheio de livros, de revistas.
– Eu sei, pai, mas dizem que quem estuda muito fica doido.
– Deixe de falar besteira, Nina, encha a boca de comida.
A mãe se irritava com as conversas dos filhos. Nunca se dirigiam a ela a não ser para pedir alguma coisa ou para dar notícia ruim. E agora, acontecia aquilo com o Nonato. Noites e noites acordado lendo em voz alta, caminhando pela casa, sem deixar ninguém dormir. O marido protegia o filho, fazia-lhe todos os gostos. Ela queria ter paciência, não conseguia. Tornava-se cada dia mais grosseira, mais impaciente.
– Preciso ficar triste, acho que vou chorar – levantou-se da mesa sem terminar de comer. Foi para o quarto. Começou a ler alto. Aos poucos o tom foi diminuindo:
Minha mãe…Que mãe desnaturada és, com tão duro coração.
O restante da frase não se podia ouvir na voz baixa, baixa e grossa, quase um rosnado. Augusta foi até o quarto, não entrou. Havia no chão uma vela acesa. A claridade estremecia, criava estranhas sombras. Queria que ele voltasse a ser como era antes. Pensava num milagre. Esperava. Ouvira dizer que aconteciam. Nonato abriu os braços. A sombra crucificada projetou-se na parede. Murmurava: a luz é o sangue que escorre de minha alma. O frio, não aquece este corpo que se contorce para aquecer o mundo, iluminar a dor. O mundo agoniza, o vento agoniza, se mata sobre os coqueiros, afoga-se no mar, engana-se nos meus olhos, na chama da vela que se apaga, por trás dos olhos da minha mãe. A natureza inaugurou o mundo com as trevas. Ela inaugurou os olhos com as lágrimas.
Augusta chorou. Chorou por não ter paciência. Por não aceitar vê-lo do outro lado onde não podia alcançá-lo. Se pelo menos ainda fosse criança poderia tomá-lo nos braços, botá-lo no colo, cantar, fazê-lo dormir. Mas, ele crescera, os filhos costumam crescer, distanciam-se do corpo e da alma das mães a cada dia, a cada pedaço crescido. E Nonato, agora, era outra pessoa, vivia em outro mundo.
Ambrósio, preocupado, tinha medo. Medo de que o filho ficasse igual a Miguel, o tio, que nem chegou a ser internado. Começou do mesmo jeito. Avisou várias vezes que queria ficar triste. A princípio foi entristecendo, entristecendo, ficou acabrunhado. Depois, ria sem motivo, chorava sem ver de quê, numa agonia de fazer dó, andava de um lado para o outro o dia inteiro e às vezes entrava pela noite. Recitava a Ladainha de Todos os Santos sem esquecer uma só palavra. Rezava, cantava, gritava. Depois, caía num silêncio tão incômodo quanto o barulho das rezas. Chamaram o médico. Mandou interná-lo. Miguel ouviu a conversa. Abriu a porta, desapareceu sem deixar rastro.
Vó Lica também sabia o que estava acontecendo. A tristeza já estava dentro dela. E foi assim, até morrer. Nesta família a gente morre de uma agonia embutida de uma doidice que chega avisando.
Ambrósio evitava falar no irmão. Precisava cuidar do filho. Procurou o médico.
– Traga ele aqui, mas não insista, vá com calma. Fale na linguagem dele, não adianta forçá-lo.
Não houve jeito de convencê-lo. Passados alguns dias, tentou mais uma vez:
– Quer mesmo ficar triste, quer? Pois bem, vou levar você ao doutor. Ele vai ajudá-lo, garanto.
– Será que também vou poder chorar?
– Claro, quem fica triste chora – afirmou o pai – até já estou achando você mais triste.
Nonato não se dava por vencido
– Estou é muito alegre e é por isto que não posso chorar.
Sem perder a paciência Ambrósio arriscou:
– Quando quiser ir, avise.
– Qualquer dia, pai, qualquer dia.
Continuava conversando com o filho. Aquelas conversas aborreciam Augusta, terminavam discutindo.
– Pai, eu quero um cavalo de pau.
A mãe não conseguiu se controlar:
– Que invenção é essa, onde diabos seu pai vai arranjar um cavalo de pau? Monte num cabo de vassoura.
– Deixa o menino, Augusta, se ele quer, vou arranjar um e é agora mesmo.
Quando voltou trazia uma cadeira de balanço. Nonato tomou-a das mãos do pai e ali, bem no meio da sala, começou a se balançar e a ler em voz alta: Querida, os deuses te tornaram louca. Eles podem tornar tolo o mais sábio dos homens e podem levar o bom senso ao espírito mais fraco.
– Penélope, canta uma cantiga de menino dormir, pode ser que eu chore.
– Por que me chama assim, está me desconhecendo? Sou sua mãe e tenho mais o que fazer. Peça a seu pai
– Quer que eu cante, filho, quer?
– Você não, Ulisses, quem sabe cantar é ela.
Largou a cadeira, foi para o quarto.
Ambrósio se perguntava quantas vezes mais teria que enfrentar situações semelhantes. O irmão, Vó Lica e, agora o filho.
Durante alguns dias Nonato se distraíra com a cadeira. Balançava-se e lia, lia e falava coisas sem nexo. A cadeira rangendo feito um carro de bois.
Sentado no sofá, Ambrósio seguia os movimentos do filho.
– Você não se cansa de olhar Nonato, não é? Vai terminar igualzinho a ele.
– E o que é que tem se eu ficar igual a ele? O que é que tem?
– Deixe de dizer besteira, homem, venha dormir, faz quase um mês que você fica aí olhando, escutando as besteiras que ele lê neste livro. Venha deitar, venha.
Ambrósio já não insistia para levá-lo ao médico. Tinha medo que sumisse feito Miguel. Que ficasse ali mesmo, quase não dava trabalho a não ser para tomar banho. Cuidava dele sem se impacientar.
Nonato retirou a cadeira da sala. Levou-a para o quarto. Cercou-se de livros, revistas, jornais. Sentado no chão o pai observava, dia e noite, noite e dia.
Uma noite, quando o filho adormeceu, saiu sem fazer barulho, foi para o quarto. Acordou a mulher:
– Augusta!
– O que é, Ambrósio?
– Quem você acha mais triste, eu ou Nonato?

Obs: Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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