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Há um ano, uma vasta região do Haiti era destruído por um terremoto que matou milhares de pessoas e deixou o país devastado. O Haiti, já secularmente vítima da dominação estrangeira e da corrupção política, agora, sofre mais ainda para se reerguer. De todas as imagens terríveis que feriram a sensibilidade das pessoas solidárias, certamente, uma das mais chocantes foi ouvir George Samuel Antoine, cônsul do Haiti, dizer na televisão que aquela tragédia tinha se abatido sobre o seu país como castigo divino porque o povo praticava o Vodu e tinha feito um pacto com o demônio para se tornar politicamente independente. Para aquele diplomata, o povo negro do Haiti só conseguiu se libertar da escravidão francesa e depois da dominação norte-americana porque se aliou ao demônio. A Teologia da Libertação descobre em todo verdadeiro processo de libertação o Espírito Divino está presente e atuante. Ao contrário, o sistema opressor parece insistir que é mais de Deus quem se deixa escravizar.

Ainda bem que, nestes dias, no Brasil, não surgiu ninguém que tente explicar com argumentos religiosos as inundações e tantas vítimas fatais de deslizamentos de morros no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Talvez no seio de suas congregações, ainda há pastores e mesmo um ou outro padre católico arautos de uma divindade capaz de assassinar pessoas inocentes somente para impor sua vontade e seus preceitos a uma humanidade descrente. De fato, pesquisas revelam: em um mundo inseguro e sem referências éticas claras, os movimentos religiosos que mais crescem são os mais fanáticos e fechados em seu dogmatismo. Eles agrupam principalmente jovens e pessoas carentes de segurança interior e institucional. Tanto grupos cristãos, como muçulmanos, judeus e hindus fundamentalistas pensam que Deus assinou um contrato de exclusividade com eles e só a sua religião, Igreja ou grupo detém a verdade e o direito de existir.

No Brasil, este tipo de fenômeno tem provocado discriminações e até perseguições a alguns grupos espirituais, como por exemplo, comunidades de tradição afro-descendente. Apesar da Constituição Brasileira defender a liberdade de culto para todas as tradições religiosas, ainda existem programas de rádio e televisão nos quais se pregam a intolerância e se combatem as religiões negras.

No início do ano de 2000, no Rio de Janeiro, Mãe Gilda, sacerdotisa do Candomblé, viu duas vezes o seu templo ser invadido por pessoas de uma Igreja neo-pentecostal. Estas invadiram o lugar e destruíram os assentamentos dos Orixás. E no dia 21 de janeiro, Mãe Gilda viu estampada no jornal “A Folha Universal”, uma foto sua com a legenda: “Macumbeiros ameaçam a vida e o bolso dos clientes”. Ao ver aquilo, aquela senhora idosa teve um infarto e faleceu. Para que não se repitam mais fatos como este, em 2007, o presidente Lula assinou uma portaria determinando que, a cada ano, 21 de janeiro seja considerado o “Dia Nacional contra a Intolerância Religiosa”.

É claro que para acabar com a intolerância cultural e religiosa, não basta uma lei ou decreto. É preciso transformarmos interiormente o processo da fé. Muitas confissões religiosas ainda confundem a verdade com uma forma cultural de expressar a verdade. Por isso absolutizam seus dogmas e tendem a se fechar em certo autoritarismo fundamentalista, inclusive as que parecem mais liberais. Daí, facilmente, se justificam conflitos e até guerras em nome de Deus. Em 1965, em um dos seus mais belos documentos, (a declaração Nostra Aetate), o Concílio Vaticano II proclamava o valor das outras religiões e incentivava os católicos do mundo inteiro ao respeito ao diferente e ao diálogo. Também, em 1961, o Conselho Mundial de Igrejas, que reúne mais de 340 Igrejas evangélicas e ortodoxas, pediu às Igrejas uma atitude de respeito e diálogo com todas as culturas e colaboração com outras tradições religiosas.

Atualmente, a diversidade religiosa no mundo é, não somente um fato atual que, queiramos ou não, se impõe à humanidade, mas uma graça divina e uma bênção para as tradições religiosas que, assim, podem se complementar e mutuamente se enriquecer. Para que este diálogo seja verdadeiro e profundo, cada grupo religioso tem de reconhecer o elemento de verdade que existe no outro e se abrir ao que Deus nos revela, não somente a partir de nossa própria tradição, mas do caminho religioso do outro. Para esta abertura pluralista e para o diálogo daí decorrente vale o que, no século IV, dizia Santo Agostinho: “Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Dêem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer” ¹.
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¹- AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32- dez. 1988, capa.

   (*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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