Tassos Lycurgo 21 de fevereiro de 2011
Em certos meses do ano, a depender do lugar, formam-se estruturas impressionantes nos centros das cidades para nada celebrar, mas sempre com a presença de pessoas pulantes e “pipocas” idem.
Aqui, em Natal, nesta cidadezinha do Nordeste brasileiro, temos a versão dessa festa: chama-se Carnatal.
O Carnatal, sinceramente, é uma das coisas que mais me surpreendem. Por mais que reúna todos os esforços, é-me ainda difícil entender como seres humanos, voluntariamente, reúnem-se e, sob o ritmo de uma música simplória – porque repetitiva – e sob os efeitos das mais variadas drogas – álcool e outras mais -, vestem-se todos como o mesmo tipo de roupa- antes, mortalhas; hoje, abadás – para, no espaço delimitado por uma corda barata, fazerem um percurso circular que, ao final, não levou a lugar algum.
Somos um povo estranho: já ouvi um sem-número de vezes defenderem o Carnatal com base no argumento de que traria divisas para o Estado. Se fosse este o único argumento a ser considerado, justificar-se-ia em algum grau o incentivo ao tráfico de drogas, de armas e de mulheres, que, assim como o Carnatal, são atividades altamente lucrativas, mas condenáveis com veemência por serem i1egais e imorais. 0 Carnatal, da mesma forma – embora, é forçoso admitir, por motivos bem diferentes -, é flagrante de inconstitucionalidade.
Muitas pessoas, que realmente não gostam dessa festa, pois são afetadas por ela, são obrigadas a conviver com a selvageria todos os anos. São pessoas idosas, recém-nascidos e bebês dos quais lhes são furtados o sagrado direito a tranquilidade e ao justo sono, os quais, para muitos desses e tantos outros, são o que há de mais valioso. Realmente, não há possibilidade de agredir a individualidade das pessoas para que um grupo fantasiado fique desnecessariamente pulando segundo as ordens daquele que está no trio elétrico.
lsso só seria aceitável em um povo selvagem, em que o poder público não avocasse para si o dever de zelar pela saúde dos que dela mais necessitam e tudo o mais fosse postergado em favor do prazer carnavalesco dos que se enquadram nos abadás. Por que não levar isso para longe?! Para as fazendas próximas e espaços afins? Argumentam que, assim, aqueles em perigo de morte – e são muitos – estariam longe dos hospitais da cidade. Ora, sendo assim, acabe-se com o patrocínio público à matança e se invista o dinheiro nas já repetitivas áreas da saúde, moradia e educação.
0 argumento de que são apenas três dias, da mesma forma, não deve prosperar. Bastava mesmo que fosse apenas um par de horas, para que várias pessoas não pudessem dormir, não pudessem ir para a sua casa ou sair dela quando bem entendessem, não pudessem desenvolver as suas atividades empresariais livremente, não pudessem, enfim, fazer o que a Constituição – e, talvez principalmente, a civilidade e o bom-senso -1hes garante em tempo de paz: viver a vida livremente.
Fato é que parece que somos mesmo silvícolas em roupas da cidade. No Carnatal, quando passamos pelas ruas e avenidas na proximidade da festa, se desavisados, pensaríamos até que estamos em um Estado fora-da-lei, em que lojas e empreendimentos são obrigados a colocar tapumes em frente de suas vitrines com medo de um saque, de um vandalismo, ou mesmo de um tiro.
0 que dizer da luta constante de vários setores da sociedade organizada que procuram livrar os jovens das drogas e, diante de tais festas, muitas vezes saem com resultados absolutamente contraproducentes. Com efeito, como se disse, muitos jovens sofrem fisicamente em consequência da festa patrocinada pelo poder público: uns são vítimas de tiros ou facadas, outros sofrem as consequências de práticas impensadas, mas incentivadas pelo contexto carnavalesco, principalmente as decorrentes do sexo sem prevenção e do consumo exagerado de substâncias tóxicas, como é o caso do álcool, do lança-perfume, da maconha e da cocaína, comuns em tal festa.
É por isso que o Brasil é uma piada: sem graça. Os estrangeiros de países desenvolvidos vem ao Carnatal assim como nós vamos ao zoo1ógico, com a diferença de que aqui as bichos são humanos e podem, para eles, despertar novos interesses que zebras e leões, apenas muito raramente, despertam nos homens.
Aos que pensam diferentemente, lembrem-se de que nos países nórdicos, na Alemanha, EUA, etc., muitas festas acontecem, mas é impensável o patrocínio pelo poder público de uma festa que venha a agredir tão frontalmente o direito de idosos e crianças como essa de nome, par sinal, bastante infeliz e flagrantemente contraditório, já que Carnatal tem em “carna” uma alusão aos prazeres carnais e, em “Natal”, no caso de nossa cidade – fundada em vinte e cinco de dezembro -, uma referência ao nascimento de Cristo, que é o oposto de tudo isso.
(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org
Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco – (Ilustração de Marcos Guerra criada especialmente para o ensaio).
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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