No geral, o povo brasileiro é muito franco. O que muita gente não enxerga e, talvez não concorde, é nosso jeito de manifestar essa franqueza. O povo sempre acha que é errado mentir, embora tenha um modo próprio de dizer a verdade que sabe e que pensa. Muita gente que acha que o povo não toma posição, não é sincero, poderia aprender a ler (captar) o jeito popular de ser franco, conscientes que, também nesse campo, habita a ambigüidade entre o modo de ser e o utilitarismo.
Lembro-me de uma senhora que importunada por uma visita indesejada, pedia às crianças que atirassem sal ao fogo ou escondessem a vassoura atrás da porta. Só a tonta da visita sorria ao ver o sal pipocar e ver aquele trato da vassoura. Outra vez um agente de pastoral, convencido de sua capacidade de persuasão, gastou o seu latim tentando convencer um paroquiano a comparecer a uma reunião. Claro, a pessoa prometeu que faria o “impossíve”¿ para estar presente, mesmo dizendo que, naquele dia, deveria visitar sua mãe que estava doente, ia pescar… O sabido foi que, ao não entender a linguagem, também não entendeu que ele disse que não ia.
Um clássico exemplo é o do estrangeiro que, na hora de se despedir de uma família, tornou a voltar quando o pessoal falou “não vá ainda, não, espere o café”. Não percebeu que estava sendo despedido. Pior ainda, ficou decepcionado, por não encontrar ninguém na casa, no domingo seguinte, pois, na saída o pessoal dissera com entusiasmo, “venha almoçar conosco”. Diz-se até que o mineiro nunca diz que vai ou que não vai, porque já foi, já voltou e esconde que foi.
Poder-se-ia multiplicar os casos como o do analfabeta que fala que “esqueceu os óculos” para não dizer que não sabe ler; o do eleitor que não acredita no candidato, mas o convence de que foi convencido, o do matuto que “come quieto”, se “finge de morto”, se derrama em elogios, pra melhor se sair. Quem não sabe ler o dialeto por trás dessas palavras, acaba no comício sobre a sinceridade, no discurso sobre a transparência, na condenação ao pecado da mentira e vai achar que o povo é “traíra”. O povo com uma risada porque “pegou mais um trouxa”.
Fora dos vários casos de esperteza e malícia aprendida, se afirma que é preciso buscar na cultura e na história o porquê desse “dialeto popular” para expressar a verdade. Há quem afirme que, tanto na cultura africana como na indígena, matrizes fundantes da cultura brasileira, não existe língua que utilize o advérbio não. Já outros estudiosos encontram na historia de escravidão as razões para o uso de muitas “estratégias de subsistência”. Quando o povo fala que “obedece quem tem juízo”, não está exatamente entregando seu poder, apenas usa uma forma realista de resistir. Como nem sempre é consciente, essa atitude pode esconder, simultaneamente, submissão e reação.
Uma explicação para esse tipo de sabedoria poderia estar na escala de valores. Para o povo brasileiro o valor da amizade é superior ao fato de ser direto e objetivo. No seu interior ele sempre diz o que pensa, mesmo se suas palavras digam o contrário. Se o não agrada, ele usa o não; se o sim garante a amizade, ele diz sim. Por isso, o povo acha uma grosseria ser duro e direto – “quem tem vergonha não faz vergonha pros outros”. Ele não acha que está mentindo quando acha uma desculpa, adoece um parente, inventa uma urgência, desde que não perca o amigo. Mas, quem está ligado vai perceber a sua sinceridade, expressa num gesto de hesitação, de adiamento ou numa anedota e numa metáfora,
24 de outubro de 2006.