professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Kenny e Betty Anne Waters tiveram uma infância dura e difícil. Pai ausente, mãe problemática, dificuldades várias. Isso os fez ficarem mais unidos, em uma aliança que significava para os dois a sobrevivência psicológica. A ponto de quem os conhecia em sua pequena cidade do estado de Massachussets (EUA) dizer nunca ter visto dois irmãos que se gostassem tanto e fossem tão companheiros.
Ao mesmo tempo nunca se viu dois irmãos tão diferentes. Enquanto Betty Anne era a estátua da responsabilidade e do bom comportamento, Kenny era impossível. Travesso em criança, insubordinado quando adolescente e jovem, continuou com um perfil transgressor, protegido pela irmã, que sempre encobria e resolvia as trapalhadas em que se metia.
Casaram-se ambos e tiveram filhos. O casamento de Kenny não deu certo e isso o fez voltar a uma vida boêmia. Quando a solidão batia forte, ia procurar a irmã, que sempre o acolhia de braços abertos. Um dia, uma senhora que habitava a cidade foi barbaramente assassinada e Kenny acusado de ter cometido o crime. Sem recursos para contratar um bom advogado, foi condenado por unanimidade a prisão perpétua. O caso parecia encerrado. Seu tipo sanguíneo era o mesmo que aparecia nas provas misturado ao da vítima. Todos acreditavam que era culpado.
Todos, menos Betty Anne, que estudou Direito e formou-se para poder provar a inocência do irmão. Kenny já estava preso há 16 anos quando aconteceu a descoberta do DNA, que revolucionou o mundo jurídico. Filas de pessoas presas injustamente por crimes não cometidos batiam às portas dos advogados a fim de fazer os testes e comprovar inocência.
Encontrando toda sorte de obstáculos à sua frente, Betty Anne investigou os arquivos em custódia para rever as provas, pediu a reabertura do processo. Feitos os testes nas amostras colhidas, comprovou-se a inocência de Kenny, que foi libertado após longos vinte anos de reclusão injusta. Seis meses depois morria de uma queda, ao subir em um parapeito de janela. O casamento de Betty Anne desfez-se, pois o marido não suportou sua dedicação em tempo integral no encalço da comprovação da inocência do irmão. Seus dois filhos decidiram morar com o pai pelo mesmo motivo.
À filha de Kenny, que ele ficou impedido de ver por vinte anos, a mulher forte e destemida que era Betty Anne Waters disse, após comunicar a libertação do pai: “Se o estado de Massachussets tivesse pena de morte em sua legislação, hoje seu pai estaria morto.” Kenny escapou da pena da pena capital que lhe ceifaria a vida inocente pelo acaso feliz de haver nascido em Massachussets e não no Texas ou outro estado qualquer que tenha a pena de morte em sua legislação.
No dia 2 de maio de 1960, Caryl Chessman – conhecido como o “bandido da luz vermelha”- não teve a mesma sorte. Afirmando e reafirmando até o fim sua inocência, Chessman – que estudou Direito para fazer sua própria defesa – esgotou os recursos de apelação à Suprema Corte e morreu na câmara de gás do presídio de San Quentin, Califórnia. O mundo inteiro se comoveu, houve intercessões de todas as partes, até do Papa, pedindo clemência para o condenado. Caryl Chessman, que provavelmente era inocente, foi executado.
Aí repousa o centro da reflexão sobre a justiça retributiva e a pena de morte. Todo aquele ou aquela que comete um crime ou viola a lei deve, sim, ser extraído do convívio da sociedade a fim de poder refletir, ser rehabilitado e reintegrado à mesma sociedade que feriu com sua transgressão. No entanto, o que vemos, mesmo em países desenvolvidos? Cárceres que são, na verdade, fábricas de criminosos e não escolas de reabilitação. Homens e mulheres inocentes – em geral pobres e sem recursos – que inflam a população carcerária e pagam por crimes que não cometeram.
Toda essa situação se torna mais degradante e terrível em níveis exponenciais se aí entra a pena de morte. Quem tem o direito de condenar outro ser humano à morte? Nas mãos de quem está o juízo sobre o fim de uma vida cuja origem foi dom gracioso e inefável do Criador?
A partir da acessibilidade dos testes por DNA, mais de 240 pessoas puderam ser libertadas depois de passarem amargos anos na cadeia embora inocentes. Apesar de haverem perdido os melhores anos de suas vidas, puderam talvez desfrutar ainda de algum tempo em liberdade, junto a seus seres queridos. E os que foram executados? Quem lhes devolverá a vida que perderam injustamente? Tomara que o exemplo de Betty Anne Waters possa inspirar a outros e outras a não poupar esforços a fim de que a inocência não seja penalizada e a vida humana ceifada injustamente.
Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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