Paulo Freire costumava dizer que o oprimido de hoje tende a se tornar o opressor de amanhã. O pensamento, cujas bases podem ser encontradas com o devido contexto no livro que é considerado sua obra-prima – Pedagogia do Oprimido, 1970 – é uma boa referência quando observamos o movimento das gravadoras que ficaram conhecidas como independentes.

Com a crescente antipatia pelas cinco gravadoras que controlam quase 90% do mercado de música no mundo inteiro, é natural que a insatisfação cedesse lugar a movimentos paralelos que culminasse na criação de gravadoras menores, mais intimistas e com políticas diferentes. A ordem natural é que os artistas menos acomodados, ou bastante insatisfeitos com os contratos atuais, mudassem de casa.

Há uma série de diferenças entre os dois modelos de gravadoras que atraem uma série de cantores famosos e iniciantes, mas também há uma série de semelhanças. Afinal, o mercado é um só e o produto, idem. Hoje em dia, o termo ‘independente’ tornou-se um chavão muito mais para atrair os compradores do que os produtores de música. Não à toa, temos a ridícula iniciativa de tachar como ‘independente’ algumas gravadoras estrangeiras que, na verdade, são apenas braços das gigantes (Universal, Sony etc.) que todos conhecem.

O fenômeno não é restrito à música, claro. Começou no cinema, uma indústria onde as críticas sobre a qualidade e as políticas comerciais são relativamente bem parecidas com as da indústria fonográfica. Os filmes ‘independentes’ são celebrados como a revigoramento da sétima-arte, como o verdadeiro trabalho autoral que não visa exclusivamente o lucro. O que poucos prestam atenção é o fato de boa parte dos principais filmes ‘independentes’, desses que faturaram inúmeros prêmios em Cannes, Berlim, Sundance e outros festivais, ser bancada pelos grandes e criticados estúdios – que abrem uma “salinha” ali do lado e coloca a placa de ‘ndependente’.

Quando o movimento começou no cinema, em seguida passando para a música, as principais empresas de cada setor reservaram uma cota para os ‘independentes’, uma espécie de investimento a fundo perdido – levando em consideração que fora do circuito comercial há filmes bons, mas também há bastante porcaria travestida de arte conceitual.

Não foi preciso muito tempo para a indústria perceber que o cinema/música independente poderia dar um lucro tão interessante quanto o esquema padrão. Trabalhado, estudado e com um marketing bem direcionado, qualquer filme independente levaria multidões às salas de cinema e, conseqüentemente, à compra de discos. Quem lembra do superestimado “A Bruxa de Blair”, em 1999? Os exemplos seguem.

Para uma determinada corrente de pensamento, o chavão da independência na indústria, seja ela fono ou cinematográfica, nada mais seria do que o anseio da sociedade de sentir um gostinho de subversão, em uma época cujos valores éticos parecem inexistir e os valores comerciais nos chegam em todas as formas possíveis e imagináveis. Como se estivéssemos dentro de uma camisa-de-força, amarrados ao que a indústria nos empurra e nos diz como “certo”, “bom” e “necessário”. Por instinto, precisaríamos de uma válvula de escape, um ponto de fuga para dizer que somos contra tudo o que está aí, contra o “establishment” (mesmo que você não saiba explicar o que seja isso), contra as verdades do primeiro mundo.

É tudo muito bonito, ideologicamente lindo, mas talvez seja a hora de começarmos a analisar melhor o conceito de independente quando falamos de música e internet nos dias de hoje.

O FATOR CHICO –

Será irresistível. Quando alguém perguntar sobre gravadoras independentes no Brasil, impreterivelmente uma bela resposta será: antes ou depois do fator Chico Buarque? A essa altura do campeonato – com a Backstage nas bancas e na sua bancada de leitura – é possível que nem todos lembrem. O lançamento do novo disco de Chico Buarque, pela Biscoito Fino, uma das independentes.

Chico Buarque não é o primeiro artista do alto escalão a integrar o leque da Biscoito Fino. Pelo contrário, a gravadora possui um vasto gabarito de qualidade, inclusive, com aqueles que são considerados “artistas exclusivos”: Mônica Salmaso, Francis Hime, Maria Bethânia, Simone Guimarães, Olivia Hime, Quarteto Maogani, Tira Poeira, Zé Renato e Sérgio Santos. Fora outros do catálogo, como Paulinho da Viola, Luciana Souza, Billy Blanco, Dominguinhos, Chico César, Toquinho, Bibi Ferreira, Yamandu Costa, Dori Caymmi e até o cantor-ministro Gilberto Gil.

O lançamento do álbum ‘Carioca’, de Chico Buarque, mudou boa parte dos conceitos ideológicos que se tinha sobre uma gravadora independente. A questão passa longe de ser apenas o maniqueísmo de querer ser independente com artistas desconhecidos, não se trata disso. Mas, sim, pela forma como se conduz os lançamentos, a propaganda, o marketing e, especialmente, a forma como o consumidor vai receber toda essa bomba de informação.

Os jornais brasileiros ¿ por motivos óbvios, principalmente as publicações cariocas – derreteram-se em uma apoteose de reportagens, capas e críticas sobre o novo álbum de Chico. Todos os méritos de bom grado, devidamente merecidos, mas nossa interrogação é: não é exatamente o que sempre acontece com as cinco gravadoras que controlam a música no mundo? Campanhas milionárias de mídia, capas em todos os jornais, singles nas rádios o dia todo e todo o dia?

Em um dos jornais consultados pela coluna, pouco antes do lançamento oficial de Carioca, encontramos o trecho: “Chico Buarque não precisava, mas ele faz amanhã uma coletiva com jornalistas para apresentar o novo disco. Não precisava, porque suas músicas já falam muito mais deste novo momento da música nacional que qualquer declaração que possa ser dada por ele.” De fato, não precisava. Mas fez. E lá se foram quase todos os jornais do Brasil e, depois de inúmeras matérias antes do lançamento, agora outras capas sobre a entrevista com Chico.

OPRIMIDOS –

Destarte, os céticos de plantão hão de pensar como serão os próximos lançamentos bombásticos, não apenas da Biscoito Fino, mas de qualquer gravadora considerada (pela mídia?) independente. Pode ser apenas um devaneio, uma ilusão, mas o apurado que tiramos de toda a celeuma e do clichê de independência é apenas um: na hora de pagar a conta, os oprimidos de Paulo Freire continuam no mesmo lugar e sob as mesmas condições impostas de cima. Afinal de contas, o CD Carioca, de Chico Buarque, custa a bagatela de R$ 36,70 – o valor oficial divulgado pela Biscoito Fino.

Outros álbuns, que podem ser consultados pelo site da gravadora, constam com preços nem um pouco independentes. Quase todos na faixa de R$ 30. Ao morrer, Paulo Freire deve ter se juntado ao escritor americano Mark Twain, que também costumava dizer: “meu filho, não se iluda. O liberal de hoje é o conservador de amanhã”.

05/05/2006

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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