Ao Reverendo Clero, a Ministras e Ministros Pastorais Auxiliares, às Lideranças Leigas e a todo o Povo de nossa Diocese
Saudação e bênção no Senhor
Já estamos a entrar na 3ª semana do tempo da Quaresma. Na 4ª feira de Cinzas começava-se deixando intensamente claro o sentido deste tempo. Ao receber a imposição das cinzas escutávamos: “Lembra-te, ó ser humano, que tu és feito do pó da terra, e em pó te hás de tornar”. A expressão “ser humano”, “homem”, na verdade, quer dizer “ser feito do humus”, “do pó da terra”.
Por que é preciso lembrar nossa condição de pó? Nosso passado, viemos do pó; e nosso futuro, caminhamos para virar pó outra vez. Simplesmente porque esquecemos, vivemos como se fôssemos mais que pó e como se nunca fôssemos voltar ao pó. A prova de que esquecemos é que nos exaltamos por cima de tudo, julgando ser “alguma coisa”. Com facilidade buscamos dominar as pessoas e as coisas, querendo tudo só para nós. Pensemos no que fazemos com o planeta, reduzindo-o a servo de nossos caprichos de consumo. Em outras palavras vivemos como se não fôssemos morrer. Quantos apegos aos bens materiais, quanta vaidade, quanto orgulho, quanto sentimento de superioridade e desprezo pelas outras pessoas, quanta dificuldade de relacionamento entre nós só por causa disto, esquecemos que vamos morrer! Hoje em dia, particularmente, só julgamos ter valor quando conseguimos ter muitas coisas, nosso valor pessoal se mede pelo poder de possuir e, sobretudo de consumir.
Pois bem, a Quaresma chega-nos na contramão da mentalidade do sistema do “mundo”. O chamado da Palavra de Deus é para concentrar-nos na oração, na meditação da Bíblia, na avaliação de nossas fraquezas e defeitos, na austeridade de vida, na partilha do afeto, do tempo, dos dons e dos bens. A disciplina e vigilância que nos impomos prepara-nos melhor para nos relacionar com as outras pessoas; a simplicidade e austeridade de vida, a começar dos costumes e gastos de nossa própria casa, dá-nos possibilidade de abrir as mãos para compartilhar e ajudar pessoas que necessitam mais do que nós. Diminuir a bagagem para tornar os pés mais ligeiros em direção as pessoas que gritam de raiva ou imploram, humilhadas,por socorro.
É este o sentido do “jejum” quaresmal: decidir limitar-se, renunciar a alguma coisa, privar-se até, em função de partilhar. É bom reler o capítulo 58 do Profeta Isaías, que nos fala do “jejum que agrada a Deus”. Há pessoas que costumam impor a si mesmas alguma disciplina bem concreta neste período, e isso pode fazer muito bem como experiência de sentir-se forte para dominar-se, para não submeter-se a impulsos espontâneos, para corrigir-se. Por exemplo, não tomar nada de álcool durante a Quaresma; abster-se de fumar; evitar freqüentar bailes; não comer doces ou chocolate; visitar pessoas enfermas; fazer as pazes com quem estamos em relações difíceis, etc. Tudo isso pode ser útil para nosso crescimento espiritual como seres humanos. Eu mesmo tenho o costume de escolher um livro como “leitura da Quaresma”. Este ano meu companheiro tem sido “Jesus”, de Antonio Pagola, Editora Vozes, muito bom.
Em associação com o jejum, a Quaresma nos traz o tema da “esmola”. Essa palavra, na origem, quer dizer misericórdia, compaixão, solidariedade. Sentir como própria a miséria de outrem, compartilhar de seus sofrimentos (paixão), sentir-se um único sólido com quem necessita, uma vez que todos e todas participamos da mesma condição humana. Por isso, o sentido original de “esmola” é partilha e solidariedade. Para que? Para restituir a quem foi defraudado e prejudicado pelo sistema social de desigualdade e, assim, restabelecer a justiça. Por isso, “esmola” hoje não deve ser dar duas ou três mnoedinhas,mas aproximar-se de quem precisa, ajudar com o que podemos e, sobretudo, dedicar-nos a lutar pela justiça, cada qual em seu lugar e de acordo com suas possibilidades, e em esforço organizado e coletivo.
Há inúmeras possibilidades de fazer isso. Começa com a capacidade profissional para influir na construção da sociedade de maneira competente. Não basta, porém, sermos competentes, é preciso que sejamos honestos(as) para que ninguém seja prejudicado por nós. Ainda não é suficiente, é necessário abrir os olhos para a multidão de pobres e miseráveis a nosso redor e exercer, de muitas formas, a solidariedade.
À medida que nos aproximamos dos pobres, que somos tomados de “com-paixão”, percebemos que é preciso ir além da solidariedade. Não basta compensar a falta e curar feridas, é urgente trabalhar para eliminar as causas da falta e das feridas. E isso se faz quando assumimos “lutar para transformar as estruturas injustas da sociedade”, como nos diz a Comunhão Anglicana ao definir a missão de evangelizar. É o nível politico de nossa ação, exigido pela fé do Evangelho.
Hoje temos de ir até além disso. A luta pela justiça inclui fazer tudo o que nos é possível pela salvação do planeta, pois a própria vida da terra está ameaçada. A exploração das pessoas se estende à exploração da natureza, o sistema social nos leva a dominar pessoas e as coisas só para nós, como condena o Profeta Oseias (cf. Os 4, 1-3). Se cremos que o mundo é criação de Deus, faz parte de nossa fé trabalhar para salvar a vida, em todas as suas manifestações. A salvação de nossa humanidade depende hoje da salvação do planeta.Isto quer dizer que a justiça já não é apenas social, mas cósmica, ecológica, holística, isto é, da totalidade.
Como vemos, vários são os níveis de nosso compromisso de fé. Para cumprir esse compromisso temos de começar do estilo de vida, de nossas pessoas e famílias, da Igreja, da comunidade de moradia, da categoria profissional, das organizações de que participamos pelo voluntariado, de nosso partido político, etc.
Este ano, muitas comunidades eclesiais, provocadas pela Campanha da Fraternidade, estão empenhadas em refletir e agir em relação ao tema do meio ambiente: “A criação inteira geme e sofre dores de parto até o presente” (Rm 8, 22). Que essa provocação nos desperte a nós também! Cada vez dispomos de menos tempo para reverter o quadro de ameaça à vida: escassez der água, poluição das águas e do ar, lixo, degradação do solo e das cidades, uso de veneno no cultivo e na produção de alimentos, crescente uso de fumo e de álcool, uso inadequado do automóvel, aquecimento global… com previsão de grandes catástrofes “naturais” provocadas por nós. A terra já não suporta nosso estilo de vida e a exploração que lhe impomos para manter e expandir nosso nível de consumo.
Quaresma é oportunidade de rever nossa mentalidade, costumes e ações, particularmente nosso desbragado consumismo.E isto por causa da fé. O que está em jogo é algo que diz respeito a Deus no qual cremos. Está em jogo a preservação de Sua criação, a conservação e renovação dos recursos da terra, a salvação da vida e de nossa qualidade humana de ser.
Quaresma é tempo de conversão, isto é, de mudança de sentir, de pensar e de agir.
Quaresma é tempo de tomar decisões corajosas em relação ao quotidiano e à participação na vida pública da cidade, do país e do mundo.
Que Deus nos conceda lucidez e coragem para mudar e suportar a dor do crescimento, para nascer de novo e viver “como crianças apenas renascidas” nos braços de Deus! Só assim celebrar a Páscoa terá a autenticidade de uma real passagem do menos ao meio, dos critérios de ter aos critérios de ser, da irresponsabilidades à responsabilidade pela vida e pela sociedade, das trevas da morte à luz de uma vida nova em Cristo.
Recife, 27 de Março de 2011
3º Domingo da Quaresma
Dia da Juventude Anglicana na IEAB
+ Sebastião Armando, Recife
* Bispo da Diocese Anglicana do Recife – DAR
www.dar.ieab.org.br