professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A novidade da revelação cristã de Deus exige um ser humano novo, uma nova criatura. Sendo revelação de um mistério, só pode ser captada pela fé. Por isso, quando os Evangelhos apresentam Jesus, seus atos e palavras, eles o fazem de maneira misteriosa e velada.
Aqueles que no tempo de Jesus detinham o poder religioso e a interpretação oficial da verdadeira religião, declarando-a única e legítima, interpretaram Jesus como alguém que agia movido pelo espírito de Belzebu, e não pelo Espírito Santo. Consequentemente, por ser interpretado assim, Jesus devia morrer. Esse conflito o levou à condenação e à morte.
É aí que se levanta a grande questão que interpela a teologia e coloca a fé em cheque. O acontecimento da condenação e morte de Jesus é que vai pôr o selo definitivo na questão sobre sua natureza divina e sobre a identidade do Deus da revelação. Jesus é preso, acusado, condenado, torturado e morto. E diante de sua morte, seus seguidores silenciam e se dispersam, deixando-o sozinho. Fracassado e abandonado, ele e seu projeto são expostos à execração pública, aparentemente fracassados e destruídos. E não somente as testemunhas se calam. Deus também se cala. O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, que não suportou ver o povo sofrendo no Egito e no cativeiro da Babilônia, que mantinha com Jesus de Nazaré diálogo permanente e amoroso, de Pai para Filho, em profunda intimidade, retira-se e silencia diante da tragédia por que passa o Filho bem-amado.
A cruz de Jesus é o sinal de seu amor fiel à causa do reino de Deus. Não se pode separar a morte de Jesus do resto de sua vida. O martírio de Jesus toma seu sentido pleno como consequência dramática e coerente de sua mensagem e de sua obra; a cruz é o símbolo de sua absoluta fidelidade ao Pai. É, portanto, inseparável das perseguições e conflitos que a precederam; dos critérios, opções e atitudes de Jesus; do conteúdo de sua pregação.
Porque Jesus revelou o Deus verdadeiro; questionou a decadência religiosa e as deformações do discurso oficial sobre Deus; fez publicamente dos pobres e pecadores os preferidos de sua solicitude; combateu os ídolos de sua sociedade; questionou seus falsos valores; Jesus desatou o conflito que o levou à cruz. Portanto, para o cristão, o sofrimento – ou seja, as cruzes da vida – são a sequela coerente do seguimento fiel de Jesus Cristo. Frequentemente certa devoção cristã separou a cruz do resto da vida de Jesus. Isso fez com que a cruz fosse também dissociada da vida cristã em sua cotidianidade. Na verdade, ela está sempre presente, já que seguir Jesus é tornar-se interpelação e contradição no meio do mundo.
Em seu aspecto sombrio e negativo, a cruz nos ensina que o mal estará sempre presente enquanto dure a história. Por mais que o combatamos, sempre reaparece de novas maneiras. Sua persistência é uma trágica realidade. Sua oposição aos valores do Reino de Deus é constante. Por isso, é capaz, hoje como sempre, de trazer para a Igreja e sua missão duros fracassos.
A cruz nos ensina que a conversão do mundo contém a dimensão profunda de uma luta contra o mal (o pecado), expresso hoje em formas concretas: a corrida armamentista, todas as espécies de ameaças contra a vida, a corrupção do amor, a exploração do homem pelo homem, a fome, a miséria, o materialismo e todas as formas de injustiça, a agressão à natureza e ao planeta colocando em risco mortal o futuro da vida.
A Paixão e morte de Jesus de Nazaré, encarnação da inocência e do bem, recorda-nos hoje em dia que os inocentes e justos da terra, os fracos, os pobres e os desamparados continuam sendo crucificados. Pela cruz, a paixão de Cristo é a paixão do mundo, e a paixão do mundo é a paixão de Cristo.
Mas a paradoxo é que a cruz é decisivamente também sinal de esperança. Apesar da presença do mal, sobrepondo-se a ele, a cruz é sinal de esperança certa no reino, de sua eficácia e de sua vitória definitiva sobre todas as formas de pecado.
O paradoxo da cruz consiste em que o que em primeira instância parece um fracasso – a morte de Jesus e o fracasso da causa do reino; a perseguição e a derrota dos bons e o aparente triunfo do mal – por causa do poder de Deus que ressuscita Jesus dentre os mortos, transforma a cruz em fonte de nova vida e de libertação total, e constitui o começo irreversível da destruição do mal em sua raiz.
O mal, para ser superado, requer redenção. A perseguição e a cruz são a dimensão redentora da fidelidade. Ali onde os meios humanos são impotentes para atacar as raízes de todos os males e de todas as injustiças, o sofrimento e as cruzes que acompanham a vida cristã incorporam tudo aquilo que sofrem os discípulos à perseguição e ao martírio do Mestre, Jesus de Nazaré. Assim “completamos o que falta à paixão de Cristo em benefício de seu Corpo, a Igreja” (Col 1,24).
A cruz é o sinal da esperança cristã, porque nos ensina que na história o mal, o egoísmo, a injustiça, não têm a última palavra. A última palavra na história é do bem, da fraternidade, da justiça e da paz encarnados e testemunhados por Jesus e confirmados por Deus Pai na Ressurreição de Seu Filho.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
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