(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Séries da Netflix são às vezes ambíguas. Sobretudo quando filmadas nos Estados Unidos. É quase inevitável o happy end e outras constantes. No entanto, boas surpresas acontecem. Resolvi assisti-la por ter lido a sinopse e porque sou mulher, tenho duas filhas e três netas.
A história de Alex vai além do conto de fadas pós-moderno. Seu personagem central é uma jovem mulher que vivencia uma situação eventualmente camuflada: a pobreza nas sociedades de abundância, que pode ser mais cruel que nos países menos desenvolvidos. Não por acaso a autora do livro que deu origem à série, Stephane Land, pesquisa e escreve sobre a pobreza nos Estados Unidos.
Alex é uma mulher que tenta sobreviver a uma mãe louca, uma realidade financeira mais do que precária e um companheiro alcóolatra e abusivo. Sua motivação máxima é a filhinha Maddy, de três anos. Por ela, Alex sai de casa no meio da madrugada sem saber aonde ir. Acaba em um abrigo para mulheres que sofrem violência de gênero. O sistema do país mais rico do mundo lhe oferece entraves que bloqueiam possibilidades. Seus inumeráveis intentos de conseguir levantar a cabeça vão sendo desmontados um a um por um esquema social feito para ricos.
Para viver é indispensável carro, dinheiro para pagar a creche da filha a fim de poder trabalhar, um lugar quente e seco para morar. É preciso evitar que a criança sofra de bronquite e acabe com pneumonia. Mas acidentes acontecem. A mãe de Alex trafega incessantemente por namorados vários e, assim, não pode cuidar da neta para ajudá-la. O que a jovem ganha não lhe permite morar em um lugar onde o mofo não seja um companheiro inseparável. Os elementos do conjunto falham e toda a engrenagem vem abaixo. A vida de Alex balança por um fio, novamente vulnerável às investidas do namorado bêbado e violento.
No meio dessa dura realidade, a protagonista, enquanto limpa banheiros, cozinhas e salas em casas abastadas, escreve. Em cadernos e a lápis, vai descrevendo e narrando suas experiências. A fantasia imaginativa a faz sobreviver e manter-se na superfície do permanente maremoto que ameaça submergi-la na depressão, na miséria e no medo. Entre faxinas e escritas, e agarrada na mão da pequena Maddy que a vai salvando mais da vida do que da morte, vemos Alex manter-se viva e encontrar companheiras do mesmo infortúnio: a violência de gênero.
Nesse movimento, a jovem mãe aprende que violência não é só física, nem apenas a que deixa equimoses pelo corpo, olhos roxos e marcas de estrangulamento no pescoço. É também psicológica, feita de gritos, ameaças, cerceamento de liberdade, exigência de sexo não consentido, quebradeiras, copos de bebida jogados na parede, espelhos partidos e móveis quebrados.
Com essa violência colaboram outros atores: a mãe que a repreende por querer separar-se do companheiro agressor; o pai que em sua infância abusou da mãe e em quem não pode confiar; a sociedade machista e patriarcal que a supõe feita para aguentar humilhações e desditas pelo simples fato de ser mulher.
Pouco a pouco, emerge do fundo da saga dessa mãe solo – solteira e solitária – a descoberta de uma nova solidariedade, cujas parceiras são outras mulheres: amigas, companheiras de abuso, clientes ricas e infelizes, meninas pequenas como sua filha, que merecem uma vida melhor. A sororidade é a oportunidade de redenção da faxineira e escritora Alex.
Em meio a todas as suas fragilidades, essa mulher tem duas forças a seu favor: a maternidade e o talento literário. Ambos lhe darão forças para continuar acreditando na vida e sobreviver a cada tombo. A filha, que não abortou como era o desejo do namorado, lhe devolve em afeto e amor o dom da vida que nasceu da decisão de deixá-la nascer. As letras que traça no papel lhe abrirão o caminho para os estudos que a transformarão naquilo que sempre sonhou: ser escritora, narradora, contadora de histórias que povoam mentes e encantam corações.
A série “Criada” fala de todas essas mulheres sobreviventes de um sistema que faz tudo para esmagá-las. Descreve a vida heroica dessas que são imbatíveis em resiliência, criatividade e engenho. Atesta a força hercúlea do chamado ridiculamente sexo frágil. E revela que a mais bela criação de Deus é Eva, a vivente e mãe dos viventes, que a cada dia assegura à humanidade sua existência e permanência.
Obs: Maria Clara Bingemer é autora de “Mística e testemunho em Koinonia – a inspiração que vem do martírio de duas comunidade do século XX” (Paulus Editora), entre outras obras.
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