Já faz tanto tempo, não sei se ela ainda está viva, mas tenho saudades de Dona Bina. Apesar de eu ter calafrios a ponto de querer sair correndo para bem longe.
Conheço gente com medo de palhaço, conheço gente com medo de anão e tem muita gente com medo do bicho-papão. Eu tenho medo de velhinhas simpáticas.
É que as velhinhas conseguem olhar a gente pela alma. Vão ficando cegas com a idade, mas os olhos delas nos atravessam e tenho certeza de que conseguem ler nossos pensamentos. Às vezes, vão além e identificam até nossos arrependimentos.
Quanto mais tempo perto delas, mais desconforto sinto.
Noto quando elas me observam, curiosas, sugando mentalmente todas as informações que eu não gostaria de passar. Elas entendem o que a gente ainda vai entender.
Os homens quando envelhecem ficam carrancudos. A gente duplica a chatice e triplica a rabugice. Aprendemos a reclamar até das pedras. Com as mulheres, parece que acontece alguma coisa diferente no meio do caminho e elas se transformam em entidades muito mais desenvolvidas.
Eu sei exatamente quando tem uma velhinha perto de mim, mesmo quando não consigo enxergá-la ao redor. Meu metabolismo acelera. Todos os meus instintos de sobrevivência são acionados. Entro em estado de alerta, a adrenalina se espalha por todo meu corpo fofo e fico em dúvida entre dar uma voadora na velha ou sair correndo para bem longe dali.
Por uma sacanagem do universo, muitas velhinhas gostam de me parar no meio da rua para pedir informação ou perguntar se estão na estação certa. Eu queria pensar que isso ocorre porque elas se sentem seguras pela minha cara de desenho animado e pelas minhas bochechas grandes. Mas é uma farsa. Elas querem mesmo é exercitar esse poder extrasensorial de ler nossos arrependimentos e frustrações.
Quanto mais simpática, mais medo eu tenho.
Porque veja bem, meu bem, a simpatia na terceira idade não faz o menor sentido. Vai contra toda a lógica do tempo e espaço.
Quanto mais velho a gente fica, mais próximo chegamos ao fim da linha. Manter a simpatia sabendo que a Dona Morte está ali de plantão, bem pertinho da gente, esperando a próxima gripe virar uma pneumonia e a próxima queda virar uma bacia quebrada, e mesmo assim ser simpática com as pessoas e o mundo, não pode ser natural, não é lógico, não é de deus, não é terráqueo.
As velhinhas simpáticas só podem ser simpáticas porque já foram até o outro lado, viram o que tem lá e voltaram para cá com esse poder de decifrar nosso subconsciente e saber o que estamos pensando.
Escrevi errado o nome de Dona Bina, mas foi de propósito.
É que mesmo depois de vários anos, ela nunca conseguiu dizer meu nome direito. Quando eu chegava, as pessoas diziam: “chegou Rebêlo, ele vai aí lhe dar um abraço” e ela respondia “venha cá me dar um abraço, Medeiros“.
Todo mundo achava graça e se desculpava pela falha de audição da velha. Eu nunca achei graça nenhuma. Meu espinhaço congelava. Porque eu sabia que ela ouvia muito bem, não pelos ouvidos, mas pelos pensamentos. Talvez em alguma outra vida, ou plano astral, meu nome era Medeiros e a gente deve ter alguma dívida de sangue. E Dona Bina devia saber disso também, para sempre me chamar assim com toda certeza deste mundo e dos outros.
Dona Bina ficava em silêncio e observava. Eu sentia o olhar dela sobre mim. E eu sabia exatamente o que ela sabia, porque só ela sabia: que provavelmente eu nunca seria capaz de fazer a neta dela feliz.
Dona Bina me dizia isso por pensamento a cada abraço. Por mais que eu quisesse, por mais que minhas intenções fossem verdadeiras, por mais que eu lutasse contra mim mesmo. Era apenas uma passagem.
Na hora de ir embora, eu dava outro abraço na velha e sentia de novo o terror da ternura. Apesar da idade, ela me abraçava forte. Como se quisesse me passar forças para aceitar e não ficar triste comigo mesmo.
Dona Bina sentia o que eu não aceitava e, ao mesmo tempo, entendia o que a neta dela ainda ia entender um dia. Talvez por isso Dona Bina nunca se despediu dizendo: Medeiros, cuide bem da minha neta.
Ela pedia apenas para eu me cuidar. Não é fácil, Dona Bina; mas continuo tentando.
Obs: Imagem do autor
Foto em destaque:
Julho 2007.
Zabé da Loca, a rainha do pife.
Zona rural de Monteiro, sertão da Paraíba.
Sony DSLR-a100 | 1/100s | f/8.0 | 45mm | ISO 100
Obs.: Isabel Marques da Silva, a Zabé da Loca, uma das velhinhas que admiro e tenho medo, faleceu em agosto de 2017, aos 93 anos, dez anos depois que a conheci para esta reportagem.