(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Há filósofos que concebem a filosofia como um exercício do pensar, entendendo pensar em conexão direta com a razão e o que dela deriva.  Há outros filósofos que, sem deixar de assim entender seu ofício, encaram-no como exercício espiritual. Veja-se por exemplo, a esse respeito, o grande filósofo francês Pierre Hadot, que concebia a filosofia como exercício espiritual, entendendo por isso um projeto de transformação e mudança da própria maneira de viver. Os exercícios espirituais não se restringem, portanto, a atividades do pensamento, mas referem-se à capacidade de elevação do indivíduo à vida em conexão com o Todo.

Hadot defendeu a filosofia como modo de vida, e assim tentou fazê-la e elaborá-la durante sua vida. Sustentava que a filosofia antiga propôs à humanidade uma arte de viver.  Era crítico da filosofia moderna que, a seu ver, aparecia sobretudo como a construção de um serviço meramente técnico, reservado a peritos e especialistas.

Tarcísio Padilha é um filósofo que viveu exercitando-se para alargar e dilatar seu pensamento e espaços interiores e comungar com a realidade. No exercício da docência de filosofia, da escrita de reflexões filosóficas e dos cargos de direção e responsabilidade de diversos órgãos, como a Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente. O Centro Dom Vital, que conduziu por vários anos, deixava transparecer essa integração harmoniosa entre pensamento e vida não só na objetividade das conferências, aulas e textos, como no trato com as pessoas.

Conjugava uma seriedade profunda em tudo que fazia, com uma doçura e flexibilidade encantadoras.  Prestigioso filósofo, transitava em altas esferas e relacionava-se com nomes como Jean Luc Marion, entre outros. Era de uma simplicidade maravilhosa, prodigalizando a todos o mesmo luminoso sorriso que se prolongava da boca aos olhos e a essa descia iluminando o rosto por inteiro.  Essa maneira de ser também o levava a jamais aceitar qualquer tipo de privilégio, como passar na frente na fila do elevador quando alunos e jovens lhe ofereciam.  Esperava como todos, com sorriso e bom humor.

Nossa amizade começou por contatos acadêmicos, mas também e não menos por sintonia de fé.  Tarcísio era católico e vivia sua fé com transparência e alegria.  Mas também com um imenso respeito pelo sentimento religioso ou não religioso dos outros com quem convivia. Em vários eventos aos quais me convidou para participar como conferencista pude constatar essa liberdade de espírito, que o fazia aberto e receptivo a todas as correntes de pensamento e opções políticas.

Como presidente da Academia Brasileira de Letras tinha o respeito total dos colegas que o consideravam – como me disse uma acadêmica em conversa pessoal e amistosa – um “cardeal”, querendo por isso significar um líder que tinha o consenso dos colegas acadêmicos.

Tarcísio nutria grande afeto e admiração pelo Papa João Paulo II, com quem esteve e conversou mais de uma vez.  Um dos últimos eventos por ele organizado foi o lançamento de um livro que intitulou, em homenagem ao papa polonês, “O cura da aldeia global”.  A clara alusão ao “cura de aldeia”, famosa obra do escritor francês Georges Bernanos, não escapa ao leitor que frequenta a obra do último.  Mas é de se notar a feliz analogia que o filósofo elabora para apresentar a figura do admirado e querido Papa.

Em conversas pessoais, confidenciou-me que admirava muito a sensibilidade e o capacidade de comunicação de Wojtyla e como se dirigia com força a multidões pelo mundo inteiro com uma imensa força espiritual.  Concordo com meu querido amigo quanto à capacidade de comunicador de João Paulo II. Todos recordamos seu encontro, em 1980, com os jovens em Belo Horizonte cantando A Barca.  Convidada por Tarcísio, participei como conferencista do encontro do Papa com as famílias, em 1997, e pude constatar que, apesar dos anos que se passaram, a força comunicadora continuava intacta.

Esse filósofo, que fazia do pensar um exercício espiritual, nos deixou no último dia 9 de setembro, vitimado pela Covid-19. A filosofia, a docência, a academia brasileira e a comunidade eclesial católica sentem o vazio da saudade e abraçam sua esposa Ruth e toda a sua família. Eu, pessoalmente, sinto também a saudade da presença do grande amigo, verdadeiro irmão que se foi.  Porém, o lastro de sua presença luminosa é companhia permanente e inspiração para seguir fazendo do pensar um exercício espiritual e um modo de viver. Obrigada, Tarcísio.

Obs: Maria Clara Bingemer é  autora de Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados, entre outros livros (PUC-Rio e Editora Vozes).

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