I – Reino de Deus e felicidade humana ( Mc 7, 31-37)
Sem dúvida alguma a pandemia do coronavirus não só acarretou mudanças significativas em nossa vida, mas também atingiu profundamente o modo como a concebíamos. Mudou não apenas nossos hábitos, mas também nossos juízos, nossas expectativas e nossos objetivos diante da realidade que vivemos. Para muitos de nossos contemporâneos a felicidade que imaginavam e ansiosamente buscavam se viu repentinamente irrealizável, com consequências sérias como desânimo, tristeza, pessimismo, e depressão. Pois a nova situação provocada pela pandemia vetava viagens, espetáculos, restaurantes, contatos sociais frequentes, reduzindo o espaço vital de cada um, levando-o à introspecção e a refletir sobre sua vida.
Quem nesta hora reflete com honestidade e lucidez, não poderá negar a fragilidade e a instabilidade inerentes à vida humana, ao constatar o mundo inteiro dominado por um minúsculo vírus. Mas também será questionado em sua concepção de felicidade fortemente caracterizada pela atual cultura individualista e consumista. Pois subitamente cai na conta do vazio aberto pela falta de contatos com parentes e amigos, de relações sociais gratuitas e desinteressadas, que alertam para a insensatez de uma existência voltada para uma corrida frenética por sucessos profissionais, sensações novas, consumismos incontidos.
O texto evangélico deste domingo tem estreita relação com esta temática. Jesus nunca escondeu que o sentido de sua vida era proclamar e realizar o que chamava de Reino de Deus. Depois de seu batismo (Mc 1, 15), na sinagoga de Nazaré ao assumir para si o texto de Isaías (Lc 4, 21), ao demonstrar para os discípulos de João, então encarcerado, que ele era realmente o messias esperado (Lc 7, 18-23), Jesus atesta quem realmente ele era através de ações humanitárias e não por meio de arrazoados teóricos. Libertar os seres humanos dos males que os oprimiam, sejam eles físicos (enfermidades), sociais (marginalizações), ou morais (pecados), significa que o sentido do Reino de Deus era o de uma humanidade feliz, tendo já início neste mundo com sua realização perfeita na vida em Deus.
A noção cristã de felicidade não exclui saúde, bem-estar, competência profissional, realização afetiva, mas insiste que decisivo mesmo é o modo como nos relacionamos com nossos semelhantes. Pois tal foi a vida de Jesus Cristo: vida para os demais, vida para fazer o bem (At 10, 38), vida para servir os outros (Mt 20, 28). Assim deveria ser caracterizada a vida do cristão enquanto discípulo de Cristo.
Sem negar a importância de conhecermos a Palavra de Deus, de participarmos dos sacramentos, de sermos membros da Igreja, o cristianismo nos apresenta algo muito original. O encontro com Deus está menos nestas realidades do que em nosso relacionamento com o semelhante. Ao irmos ao encontro do outro repetimos o que fez Jesus, promovemos o Reino de Deus, vencemos nosso egocentrismo, numa palavra, encontramos Deus (“tive fome e me destes de comer…”).
Se a recente pandemia nos alertou sobre a importância das relações humanas para nossa felicidade, o Evangelho de hoje nos ensina que a verdadeira felicidade está em procurar fazer felizes os demais, sempre dentro de nossas possibilidades, sejam eles familiares, amigos, pessoas sofridas, marginalizados, mendigos, solitários, etc. Pois foi o que fez Jesus em sua vida terrena. Implica nova modalidade de nos relacionarmos com nossos semelhantes, nem sempre facilmente praticável, mas que nos faz mais felizes porque em sintonia com a ação do Espírito Santo em nós, a mesma que levou Cristo a viver e dar a vida por todos nós. MFM
II – Quem é Jesus (Mc 8, 27-35)
Se Jesus nos fizesse hoje a pergunta que fez a seus discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?”, certamente todos nós teríamos algo a dizer. Realmente, na cultura ocidental, palavras, imagens, livros e músicas sobre Jesus Cristo se encontram por toda parte. Alguns estudiosos se dedicam a pesquisar sobre sua pessoa nos textos do Novo Testamento. Mas será que o conhecem realmente?
Pois Jesus não é apenas um personagem histórico, como outros do passado. O pouco que sabemos de sua vida, vivida num recanto insignificante do império romano, numa família simples, talvez dedicado à carpintaria, antes de iniciar sua breve pregação e sofrer um fim trágico, não explica de modo algum a repercussão que teve na história da humanidade. Personagens do passado muito mais importantes não conseguiram plasmar a sociedade humana como ele. Portanto apenas estudos históricos não bastam.
Porque os evangelhos foram escritos por pessoas que tinham fé em Jesus Cristo, isto é, viam nele não só um grande mestre, por suas palavras e ações, mas alguém em quem confiavam. Estavam convencidos que ele tinha “palavras de vida eterna”, que vinha de Deus, que lhes incutia força e ânimo, que lhes oferecia sentido para suas vidas. Daí se tornarem seus discípulos e transmitirem a outros a sua própria fé.
Ter fé em Jesus é, portanto, fazer da vida dele modelo para a própria vida. Não com palavras, mas com atos. Só então cada palavra, cada reação, cada gesto, cada olhar de Jesus passa a ter enorme importância para seus seguidores. Os relatos de seus dias, descritos pelos que nele acreditavam, devem repercutir em nós que temos fé e que hoje procuramos viver como ele.
Neste momento começamos a conhecê-lo melhor, a valorizar como rezava, como tratava as pessoas, como falava de Deus, como admirava a natureza, como era livre de ambições humanas, como cuidava dos necessitados, como foi coerente até o fim com o que pregava aos outros. Um conhecimento que nasce da sintonia, embora imperfeita, da nossa vida com a dele. Paulo que moldou sua vida pela de Cristo, embora não tenha conhecido Cristo pessoalmente, pôde, entretanto, afirmar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).
Só chegaremos realmente a conhecer Cristo, a poder responder a sua pergunta, se assumimos a sua vida. Ao conhecermos suas palavras e suas ações devemos nos perguntar se elas de fato influenciam nosso modo de viver, nosso relacionamento com os outros, nossas opções de fundo, nossas convicções íntimas, nossas experiências humanas, alegres ou tristes, nossos desejos de felicidade e de paz interior.
Todo cristão deveria ter um momento em seu dia para contemplar Jesus em algum relato do Evangelho. Ler o texto, deixar que a cena me interpele, imaginar-se dentro dela, vendo e ouvindo Jesus, sabendo que sua pessoa é decisiva para minha vida hoje. O Evangelho não é para ser sabido, mas vivido. Afinal sou cristão, acredito em Cristo, ele é a matriz de minha existência. Só então poderei dizer como São Pedro: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68). MFM