I – Palavras de vida eterna (Jo 6, 60-69)

A crise de fé de alguns discípulos que abandonam Jesus não deixa de ter semelhança com o mundo em que vivemos. Eles não conseguiam entender que Jesus desse seu corpo, isto é, sua vida para a salvação da humanidade. De fato, a afirmação não podia ser captada por sua mentalidade que evocava antropofagia. Hoje vivemos numa época desafiante para os que têm fé, pois a mentalidade dominante na atual sociedade está encerrada no âmbito da ciência experimental e submetida à lógica da economia produtiva. Todo o resto que se situa fora destas coordenadas é relegado ao mundo da fantasia, do sonho, das sensações, dos afetos, das preferências individuais. Deste modo a fé em Deus deixa de ser um fator que incide na vida social, quase desaparecendo numa sociedade secularizada, ou em vias de secularização como a nossa.

Pois Deus, por ser Deus, não pode ser um elemento do nosso mundo, uma realidade sob o domínio da nossa inteligência ou objeto do nosso conhecimento, o qual só alcança o que é finito e limitado. Porém Deus como fundamento de tudo o que existe é simplesmente infinito, não podendo ser contido por nossa inteligência finita. Deus é mistério para nós, já que por nossas próprias forças somos totalmente incapazes de percebê-lo ou de encontra-lo em nosso caminhar.

Portanto só Deus pode nos levar a Deus. De fato, se temos fé em Cristo é porque o Espírito Santo nos possibilitou esta opção (1Cor 12, 3), se invocamos Deus como Pai é porque o Espírito Santo atuou em nós (Gl 4, 6), se assumimos o modo de vida de Jesus é porque fomos impulsionados pelo Espírito Santo (Gl 5, 25), igualmente se reconhecemos os dons de Deus (1Cor 2, 12) ou se esperamos a ressurreição dos mortos (Rm 8, 11). As realidades espirituais só são conhecidas por um olhar espiritual, dom que recebemos do próprio Deus.

Consequentemente só Deus pode nos fazer experimentar Deus, a saber, sentir sua presença atuante em nosso dia a dia. Como Isso é possível? Vejamos. Deus livremente nos criou, pois sendo Deus nada podia obriga-lo a tal. Existimos por uma opção livre de Deus que nos chamou à vida porque nos quis, porque nos amou. Porém o amor não só é motivação para a criação, mas constitui a realidade mesma de Deus, devido ao amor eterno e mútuo entre as pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Daí a afirmação de São João: “Deus é amor” (1Jo 4, 8).

Este amor impulsionou toda a vida de Jesus Cristo, expressão do amor divino atuante ao longo de sua história. Impulsionado pelo Espírito de amor (Lc 4, 18) ele dedica sua vida a cuidar dos mais necessitados, percebe o Espírito de Deus agindo nele (Mc 1, 12) e o envia a seus seguidores (Jo 20, 22). Espírito Santo, Espirito de amor, Espírito que nos leva a amar, a imitar Jesus Cristo, a sintonizar com Deus que é amor.

Aqui está onde podemos encontrar Deus na atual sociedade que descarta Deus. Ao cuidar de meu próximo, dentro de minhas possibilidades, experimento a ação do Espírito que me impulsiona a fazer o bem, experimento Deus, encontro Deus, pois “todas as vezes que fizestes isso a um destes pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25, 40).

E todos aqueles que correm a aventura da fé confirmam experimentalmente a presença atuante de Deus em suas vidas, trazendo-lhes paz, alegria interior, certamente uma felicidade desconhecida do mundo, cuja lógica não consegue entender a realização plena de uma vida caracterizada pelo altruísmo e pelo amor. Viver o amor é experimentar Deus, pois o que chamamos de “divino” é simplesmente amor. E quem o experimenta pode repetir o que disse Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).
MFM

Nossa vida cristã deve ser alimentada pela experiência pessoal de Deus. Saibamos valorizar estas ocasiões que o próprio Deus nos proporciona

II – Fé pessoal e religião (Mc 7, 1-8.14-15.21-23)

Uma simples crítica feita pelos fariseus e mestres da lei aos discípulos de Jesus provocará sua reação, fornecendo-nos, de modo claro e direto, uma característica fundamental da fé cristã. Pois decisivo para Jesus não é o que vem “de fora” como tradições alimentares, hábitos de higiene, ritos mecanicamente observados, mas o que brota “de dentro”, a saber, do interior da pessoa, ou do coração na linguagem daquele tempo. Esta tentação, denunciada por Jesus, se origina na própria natureza do ser humano, que é espiritual e material. Deste modo o que se encontra em seu interior normalmente irá se manifestar em seu exterior através de seus sentidos corporais.

Quando estou alegre ou triste, com boa saúde ou sofrendo alguma dor, diante de alguém que me é simpático ou antipático, entusiasmado ou não ante uma obra de arte, todos estes sentimentos íntimos se expressarão em minha fisionomia ou em meus gestos. O ser humano é alguém incansável em produzir símbolos para expressar seus valores, suas convicções, suas interpretações da realidade, sempre através da linguagem corporal que abrange palavras, celebrações, obras artísticas, músicas, tradições sociais, etc.

Consequentemente o símbolo é meio de expressão e não propriamente fim em si, pois aponta sempre para o que quer exprimir. É caminho, não ponto de chegada. Permanecer preso ao símbolo significa esvaziá-lo de seu sentido último: ser ponte para além de si. Entretanto os símbolos são visíveis, claros, evidentes, ao alcance de nossos sentidos, dominados por nossa inteligência e por nossa liberdade. O mesmo não se dá, muitas vezes,  com as realidades que eles expressam. Daqui nasce a tentação de ficarmos retidos nas expressões exteriores, sem valorizarmos suficientemente a realidade que elas apontam ou pressupõem.

Tudo o que vimos até aqui repercute fortemente na vida cristã. Pois sendo Deus mistério para o ser humano, Ele só poderá ser alcançado através de símbolos, que não são Deus, mas que para Ele remetem. Ter fé em Deus, acolher a pessoa e a mensagem de Jesus, é uma adesão livre e interior, que necessariamente se manifestará externamente no que chamamos de religião: doutrinas, celebrações, textos sagrados, tradições religiosas de todo gênero, normas éticas, etc.

Aqui mora a tentação: contentar-se com as expressões religiosas sem considerar o que as mesmas pressupõem, exigem ou simplesmente remetem. Pois nesse momento se instala a separação entre religião (símbolo) e vida (realidade). Aqui se situa o núcleo da crítica de Jesus a seus interlocutores. Pois fundamental mesmo é o amor de Deus e do próximo, como eles mesmos afirmavam (Mt 19, 18s). Todo o aparato religioso deveria exprimir, promover e realizar este núcleo da fé presente no coração humano. Sem ele tudo perde o sentido (1Cor 13, 1-3; 1Jo 4, 19-21).

Jesus enfatiza o coração como fator decisivo na relação com Deus e com nossos semelhantes. Sem sua presença efetiva o culto perde o sentido: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7, 6). Fato observado nos tempos bíblicos, fato que também encontramos em nossos dias. Pois a enorme preocupação de alguns com a exatidão de ritos, de doutrinas e de normas não vem acompanhada por uma autêntica vida de caridade e, às vezes, nem por uma vida moral, como já censurava Jesus em alguns fariseus (Mt 23, 23-28).

Sem dúvida o cristianismo necessita de doutrinas, celebrações, sacramentos, comunidades, e tradições, para conservar sua identidade e sua força transformadora ao longo da história. Tudo isto tem sentido desde que levem o ser humano ao amor fraterno, à misericórdia, pois no final de nossa vida seremos julgados pelo amor, como afirmava João da Cruz, fundamentado nas próprias palavras de Jesus: “o que fizeste a um desses pequeninos, a mim o fizeste” (Mt 25, 40).

Há gente que não perde missa todo domingo, mas cuja vida egoísta e insensível aos mais necessitados, demonstra que o farisaísmo está muito presente na Igreja. Pois comungar (ação visível) é acolher e aderir à vida de Cristo, uma vida voltada para os demais (efeito invisível). Entretanto comungar não só remete e pressupõe o amor fraterno, mas também nos fortalece para vivê-lo em nosso dia a dia. A comunhão consciente é alimento importante para nossa vida cristã. MFM

O texto evangélico deste domingo nos mostra como a Palavra de Deus atravessa os séculos e é sempre atual.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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