Maria José 1 de setembro de 2021

Vestido branco, longo, véu e grinalda. Sonhava com o dia de me parecer com uma noiva. Tinha sete anos. Repetidas orações até aprendê-las e muita doutrinação sobre os mistérios de Deus, o exame de consciência e, por fim, a confissão com o padre. Esta parecia a pior parte dessa preparação, que só se daria perto do dia.

 Mas, o grande desafio: que era mesmo pecado? Chamar nome feio, diziam que era. E quem se atrevia a chamar aqueles palavrões para levar bolo de palmatória? O dia, recheado de inocências, nele não havia lugar para maldades. As brincadeiras suadas tinham cheiro de mato, de sol e brilho de luar. Em que momento se podia fazer pecado?

Aproximava-se o esperado dia. O vestido costurado pela madrinha estava quase pronto. Exatamente como eu lhe havia pedido. Orgulhosa, só pensava ser alvo de mil olhares na igreja lotada na missa do domingo. A alma, no entanto, essa ia se apertando com medo de entrar na berlinda do confessionário. Que vou dizer? Companheira do mesmo tope e que não ia fazer a Primeira Comunhão se envaidecia: “Pois eu chamo nome feio e me escondo na moita com os meninos…” Abestalhada, sequer entendia o que tinha de mal nisso.

Oito dias antes, a temida confissão. Angústia e alegria no compasso de espera se digladiavam no mesmo espaço da inocência. Quantos pecados conseguira pôr na lista? Enfim, juntei as raivas com a mãe – que me tirava da melhor hora de brincar – e umas brigas com os irmãos. Só com isso, a lista continuava pequena… Será que o frade, gringo brabo, iria brigar? Dor de barriga, chegou o momento. Ajoelhei-me. Olho grelado, ouvido encostado na treliça de madeira. O coração mais parecia que acabara de pular corda no terreiro, quase a sair junto com o que nem chegava a ser uma lista. Quase um parto, foi saindo feito vômito, de uma só vez. Alívio. De penitência: rezar ave-marias. Esqueci o número, mas fui generosa para ter a sensação de me livrar da culpa.

 Restava uma semana de expectativa para o dia considerado o mais feliz da vida, diziam. Precisava repetir – para não esquecer – as rezas e esperar com a alma limpa a visita divina. Mas, qual não foi a minha tensão quando recebi, não sei de quem, a advertência: “Agora, é ter todo cuidado para não pecar, senão vai perder a Primeira Comunhão”. Meu Deus, como seria viver os próximos dias e não estragar tanta preparação? Antes, a tortura para arranjar pecados. Agora, para não cometê-los. No final, que dia feliz seria esse que me aguardava?

 Enfim, chega o tão esperado. Na véspera, dormi na cidade, casa de uma prima, bem perto da igreja. A noite pareceu longa demais, acordando e olhando para o vestido pendurado e a grinalda sobre a mesinha ao lado. Mal amanheceu, fui despertada para iniciar os aprontamentos. O frio me dificultava vestir a roupa leve, cheia de babados, mas a sonoridade do sino ia penetrando no quarto como lembrete do grande momento. E pela calçada saí arrastando pedaços de satisfação.

A missa, a comunhão, tudo decorreu num clima de encantamento. Pouco entendi. Todos olhavam para a menina vestida de Primeira Comunhão, enquanto eu, não me cabendo de tanta felicidade, me sentia realizada parecendo uma noivinha. Sonhos femininos desde cedo acalentados.

Sabia que algo de muito bom estava me acontecendo, mas não tinha consciência de que ali eu estava assumindo um compromisso de fé. Fé que – só bem mais tarde aprendi -, se não transforma, não vale. Tenho certeza de que o Senhor acolheu a minha ingenuidade, pois haveria tempo para eu descobrir os seus caminhos.

Depois veio o café na casa de um tio, em frente da igreja. A seguir, o retorno para a fazenda com a família reunida em clima de festa, de eucaristia. Feliz, saltitava alma e veste brancas. As muitas recomendações para não sujar a roupa mais me fixavam nela. E eu esperava ansiosa a volta para me mostrar aos que não me tinham visto, os meus companheiros de folia. Girar pela velha casa, desfilar pelo alpendre, dar meia volta no terreiro, meu pedaço de mundo. Chegar ao galinheiro, ao curral. Sentar embaixo do jasmineiro e segredar-lhe a novidade. Ninguém me conhecia assim vestida na brancura daquele momento. Rolando na fantasia, deixei o braço preso na porta do carro que nos levava. Vexame que logo passou.

Tal qual o vestido, imaginei que esse também seria um longo dia. Luminoso tal qual a brancura da veste e da alma sem pecado. O dia mais feliz, dia da visita de Jesus Eucaristia, pela primeira vez, à intimidade do meu ser. Um dia de comunhão, pleno de fantasias. De repente, uma impetuosa voz:

 “Vá pedir a sua mãe para tirar essa sua roupa!”.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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