(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Da mão da mãe para a mão do soldado, da mão do soldado para a mão do pai, da mão do pai para a mão das comissárias de bordo. Todas essas passagens para ser levado em direção a um futuro de hipotética liberdade. Esse foi o itinerário que muitas crianças afegãs percorreram nos últimos dias quando o Talibã tomou Cabul, a capital do Afeganistão.
Em uma situação de guerra e violência, as crianças são sempre as primeiras vítimas. Mais frágeis e vulneráveis, expostas a todas as agressões e perigos, muitas sucumbem à força do terror e da barbárie. Porém, outras sobrevivem misteriosa e milagrosamente. E, muitas vezes, graças ao gesto desesperado da mãe que arrisca separar-se da cria para que esta possa viver.
Nas cenas de Cabul, viu-se mulheres desesperadas com filhos nos braços, premidas pela multidão que se acotovelava na entrada do aeroporto. Na tentativa extrema de salvar o filho de ser esmagado e morto, levantavam as crianças acima de suas cabeças e os entregavam aos militares estadunidenses ou britânicos que se encontravam do outro lado do arame farpado.
Um dos pequenos afegãos, que devia ter menos de um ano, foi puxado por um dos braços a fim de fazer sua travessia em direção à esperança. Algum outro caiu em meio ao arame farpado. Outros ainda tiveram que ser encaminhados ao atendimento médico do aeroporto, afetados física e psicologicamente pela pressão a que foram submetidos.
Do outro lado da corrente de mãos estava o pai, ou um parente. Lá se encontrava ou chegou depois. Em todo caso, para que alguma criança pudesse embarcar nos aviões estadunidenses, era necessária a presença de algum familiar. E lá se foram os pequenos, tão cedo golpeados pela provisoriedade da vida e da condição humana. Ontem tinham um lar, uma família, paz e rotina. Hoje são passantes, passageiros, transeuntes que galgam as mãos que os conduzem onde não escolheram, em outra terra e outra cultura, na esperança de encontrar uma vida melhor.
Decidem por eles, esperam por eles, desejam por eles. Eles e elas são pequenos, não têm ainda condições de fazer opções importantes e devem seguir o que os pais escolhem. Mesmo que essa escolha os afaste do pai ou da mãe. Ou de ambos. Em todo caso da pátria, da língua, de todo o ambiente que começavam a reconhecer e aprender a chamar de seu.
No avião, as crianças afegãs eram vencidas pelo sono e o cansaço. E o chão da aeronave foi muitas vezes seu lugar de repouso. Como cobertor, o casaco de um uniforme militar emprestado para agasalhar e proteger do frio. Ao seu redor dezenas, centenas de compatriotas em trânsito para um destino incerto que naquele momento representa a única esperança.
Resta-lhes a vida. E não é pouca coisa. Outros pequenos não tiveram tanta sorte. Estavam na rota da explosão do ataque suicida. Passaram diante da mira da arma que atirou. A esses que passaram de mão em mão, resta a vida. E a vida pulsa, respira, espera, se movimenta. E o avião é como um pássaro de grandes asas que conduz as vidas inocentes e indefesas rumo a outra paisagem.
O que se passa na cabeça e coração de uma mãe para chegar a entregar o filho em outras mãos no momento do pânico e do desespero? Que força a move para fazê-la preferir entregar seu pequeno em mãos que não as suas, confiar seu precioso rebento a braços estranhos que não os seus?
Na história da humanidade, conhecemos a narrativa de várias ocasiões em que mães fizeram isso, a fim de salvar seus filhos. Separaram-se deles e os entregaram a outros como único caminho para salvar suas vidas. Assim a Bíblia Hebraica no segundo capítulo do livro do Êxodo. Os hebreus eram escravos no Egito e uma mulher hebreia concebeu de um homem da casa de Levi, devendo esconder seu filho para que nenhum mal lhe acontecesse. Após três meses, não podendo escondê-lo mais, levou-o em um cesto ao rio e ali o deixou. A filha do faraó encontrou o bebê e o levou para casa, sabedora de sua origem. No palácio, o menino se educou e cresceu, sendo chamado de Moisés, o salvo das águas. Será ele mesmo que, adulto, libertará o povo do cativeiro e da escravidão.
O primeiro livro dos Reis conta a história de duas mães que se apresentam diante do rei Salomão. Ambas tinham filhos. E um dos meninos morreu, sendo que cada uma afirmava ser seu o menino que estava vivo. O sábio rei disse então que cortaria o menino vivo ao fio da espada para que cada uma ficasse com uma parte dele. Uma das mulheres suplicou ao rei que o entregasse inteiro à outra em vez de matá-lo. Salomão reconheceu ser essa a verdadeira mãe, que preferia a vida do filho a tê-lo junto a si. E todo o povo reconheceu e reverenciou a sabedoria do rei.
As histórias da segunda guerra mundial têm em sua narrativa muitas mães igualmente heroicas que, ao sentir o perigo da deportação e da morte que se aproximava com apavorante certeza, separavam-se de seus filhos e os entregavam àqueles que os pudessem proteger e dar segurança. E assim um grande número de crianças judias se salvou, graças à coragem desses e dessas que os esconderam, e também ao instinto vital que fez suas mães escolherem dar-lhes um futuro em vez de guardá-los junto a si sob o risco de morte certa.
Nos tempos em que vivemos, sombrios e violentos, as crianças são as primeiras e mais certas vítimas. Sua fragilidade, sua pequenez, sua infância indefesa são presas fáceis e imediatas para a brutalidade e a barbárie. Frequentemente, a única coisa que pode salvá-las é a generosidade das mães, que mesmo ao preço de ter seu coração partido, os entregam em outras mãos. Passando de mão em mão, essas crianças feitas órfãs ainda que de pais vivos não sabem o que as espera. Viajam em direção ao desconhecido. Mas levam consigo o penhor do amor que as trouxe ao mundo e tudo fará para que possam seguir seu caminho em vida nas asas da esperança.
Nesse terrível momento, é justo e necessário reverenciar as mulheres afegãs, que além de verem ameaçados seus direitos duramente conquistados devem entregar seus filhos para passarem de mão em mão rumo à liberdade.
Obs: Maria Clara Bingemer, é autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas), entre outras obras.
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