Não tenho nenhuma pretensão de apresentar o quadro geral da vida do Afeganistão a partir dos talibãs e de suas recentes reconquistas. Nem mesmo tenho elementos para escrever com autoridade sobre a vida das mulheres afegãs. Converso comigo e com algumas amigas impressionadas como eu com o tipo de notícias que circulam entre nós em relação ao sofrimento das mulheres afegãs.

 A impressão geral veiculada provoca em muitos de nós pena das mulheres e raiva do mundo islâmico e em especial dos talibãs acusados de tantos crimes. Fala-se que elas estão impedidas de continuar estudando e mesmo de sair de casa sem estar acompanhadas por um varão da família. Fala-se do apedrejamento e de outras formas de violência.

 Mostram-se também as falas das que foram mais privilegiadas pela presença americana e temem perder os lugares conquistados nos últimos anos. Porém elas são minoria num país pobre como o Afeganistão. Pouco se fala da grande maioria das mulheres em estado de pobreza, aquelas relegadas ao mundo doméstico e que quase não tiveram acesso ao mundo das letras e da comunicação global. Nada aparece de sua real luta cotidiana, de sua força para sobreviver e nem de sua pertença a movimentos por direitos sociais.

A pergunta que nós fazemos é em relação à parcialidade das informações que nos chegam e em especial a acentuação de notícias sobre a vida das mulheres vivendo o risco de serem aprisionadas, lapidadas e mortas. Mas, este é apenas um aspecto, um recorte sensacionalista!

 De uma forma mais atenta se pode verificar uma espécie de vitimização programada por uma certa imprensa internacional, sem dúvida com cores políticas ocidentais definidas sustentadas pela ideologia dominante. A quem interessa só mostrar a opressão das mulheres? As suspeitas em relação a essa pergunta são numerosas.

 A violência contra as mulheres parece ser o centro a partir do qual se chama a atenção do público internacional em relação aos talibãs. As notícias chegam a comover e a encher de raiva contra os violentos homens que estão ou estiveram no poder. Embora não neguemos a violência de que foram e são capazes há um recorte imposto de fora que nos impede de ver outros aspectos dessa problemática tão complexa. Imediatamente corremos o risco de pensar que os 20 anos de presença e dominação norte-americana foram uma espécie de paraíso terrestre, um oasis para as mulheres afegãs. Elas puderam se educar, frequentar universidades, viajar, participar de encontros internacionais e outras benesses nessa linha. E, de repente, muito de repente as mulheres foram dominadas e escravizadas de novo. Foram e se tornam de novo ‘objetos’ nas mãos de poderosos e violentos senhores que as consideram seres incapazes de discernimento pessoal e político. Cria-se a confusão das interpretações, o obnubilamento da realidade vivida, o desconhecimento de mundos culturais diferentes dos nossos e sobretudo da vida das mulheres.

 Há uma espécie de exploração de setores políticos dos Estados Unidos que apresentam este país. talvez o mais rico do mundo, como um governo de dimensão messiânica que vem salvar os injustiçados e oprimidos e em particular livrar as mulheres da violência da qual estão sendo vítimas. É como se a presença dos norte-americanos, de suas tropas e armamentos pesados nos diferentes lugares as mulheres estivessem a salvo das muitas formas de violência. Com a presença militar ‘salvadora’ e ‘protetora’ durante 20 anos as mulheres afegãs puderam afinal estudar e muitas vezes andar pelas ruas sem a burka. Puderam enfim, ser respeitadas como cidadãs. Passa-se a ridícula ideia de uma magia estupida, de um quase milagre proveniente da infinita bondade do imperialismo intervencionista capaz de transformar culturas milenares e dar-lhes um verniz ocidental de liberdade. Passa-se a ideia de que os Estados Unidos com a ocupação militar que fizeram apenas trouxeram benefícios às pobres mulheres afegãs.

 Entretanto, basta uma breve análise das recentes manifestações das mulheres nas ruas de Cabul e de outras cidades afegãs para verificarmos sua coragem, sua organização e sua força. E, sobretudo verificarmos os equívocos interpretativos em relação à sua situação real. Sem dúvida, em meio a estas mulheres há avós, mães, esposas, amantes, filhas, parentes de talibãs revoltadas com o obscurantismo manifesto e até forjado, para que os homens pudessem ser temidos e respeitados como superiores. Mas na realidade são elas que são temidas por eles. É a partir delas que políticas de participação e educação ampla das mulheres estão sendo possíveis e muitas reivindicações estão sendo aceitas. É preciso ler a história a partir de outro lado ou a partir do avesso da face ‘direita’ e direta que aparece em certos meios de comunicação. A história depende da perspectiva em que nos situamos, dos valores que defendemos e tentamos viver.

 Há uma foto que tem circulado na internet de um solado talibã que tem uma mulher, talvez a sua, atada por uma corrente ao seu próprio braço. A imagem cuja veracidade é duvidosa dada a postura dos personagens quer criar o horror, o repúdio e sobretudo a pena das mulheres tratadas como propriedade. De que vale a pena? De que valem as alertas contra o comportamento dos talibãs em relação às mulheres? Será que essa mesma violência embora com manifestações diferentes não existe em muitos países e inclusive nos Estados Unidos? Será a provocação do sentimento de pena no público na realidade não significa reforçar a boa imagem dos imperialistas do mundo, exaltar seus bons feitos apesar de terem sido atacados quando da destruição das torres gêmeas. Sem dúvida não querem perder sua imagem de salvadores e mantenedores de sua presença imperialista em diferentes lugares do mundo e, um vale-tudo mediático e mentiroso pode ao menos salvar-lhes a cara. Esse processo de atacar para salvar a própria pele se estende também pela América Latina de diferentes formas. Aqui também se demonizam mulheres feministas, se demonizam grupos libertáriosgrupos anti-racistasindígenas. Aqui se estupra e se mata impunemente.

 Muitos, para mostrarem-se aparentemente distantes de tais aberrações demonizam a cultura violenta e misógina dos talibãs como se fossem isentos dos mesmos vícios embora em formas diferentes aparentemente mais discretas. A hipocrisia não nos falta como tempero de nossas ações políticas e religiosas.

 A maioria das pessoas que se impressionam apenas com a violência imposta não percebe que a violência atual é de fato também fruto dos muitos processos de emancipação das mulheres afegãs, uma reação violenta à emancipação que elas mesmas são as autoras e atoras principais há muito tempo. Não é de hoje que a organização de mulheres afegãs existe. Não é de hoje que temos eminentes porém ‘desconhecidas’ intelectuais e ativistas atuando no país e tentando reler suas muitas culturas à luz do mundo de hoje e em diálogo com muitos grupos nacionais e internacionais. Mas elas não contam para o imperialismo mediático global. Suas mentes esclarecidas não têm espaço na mídia internacional capitalista, suas formas de organização são pouco conhecidas. Não podem expressar um outro Islão afegão, não podem revelar a força de suas tradições reinventadas na atualidade e as inúmeras formas de pressão através das quais garantem sua dignidade mesmo com os talibãs.

 Nas minhas muitas andanças pelo mundo afora tive o prazer de encontrar algumas poucas afegãs em foros internacionais. Infelizmente não me lembro de seus nomes, mas me impressionou sua presença e a defesa que faziam de sua tradição e de sua liberdade. A liberdade diziam não precisa ser segundo o modelo único do ocidente. Não precisa apenas parecer livre e imitar um modelo estilizado de liberdade vivido por mulheres de elite quer francesas, inglesas ou norte-americanas. O ocidente acredita que só o seu modelo de liberdade é liberdade, só o modelo ocidental de ser mulher é democrático e respeitoso da diferença. De que liberdade estão falando? Que proposta de liberdade estão buscando? Que sentido lhe dão?

 A violência contra as mulheres é estrutural e pandêmica em nosso mundo. O que fizeram os ‘Casque-Bleu’, soldados da ONU nos países da África, no Haiti e em tantos lugares do mundo? Estupraram mulheres, aproveitaram de sua situação de poder internacional, dominaram, mataram e deixaram rastros de sangue e desolação. Quantas mulheres depois da partida dos soldados tiveram que arcar com uma gravidez indesejada e com o abandono total da prole pelos bravos e valentes soldados. De cabeça erguida e com fuzis nas mãos esses guerreiros foram buscar outras aventuras bélicas em outros lugares do mundo. Com esses feitos muitos foram considerados e coroados como heróis, considerados salvadores dos pobres oprimidos e até defensores das mulheres.

 As ambiguidades da história presente são enormes. As narrativas parciais fazem das vítimas o troféu dos vencedores em muitas direções. Os muitos interesses nessa história fazem com que muitas histórias e interpretações possam ser narradas, porém nenhuma pode pretender ser a única narrativa verdadeira a ser lembrada. Precisamos estar alertas e atentas para não cairmos nas redes do reducionismo das grandes empresas políticas, econômicas e de comunicação do mundo.

 É nessa perspectiva que desejo louvar a luta das mulheres afegãs contra o obscurantismo dos poderes que dominam seu país e o mundo. Quero lembrar e reconhecer publicamente sua força de análise das muitas situações de seu país inclusive do resgate que têm feito do islamismo reduzido à mera cumplicidade de forças violentas e cegas. O Islã, ou seja, a religião da paz (Salam) entre as pessoas está sendo pisada em nome de interesses do ocidente e em nome de grupos do oriente que politizam a religião islâmica em favor de poderes e interesses escusos. Ela é bem mais do que isso!

 Fica feio declarar publicamente que o medo às mulheres é patente. Os talibãs temem as mulheres. Elas são as avós, as mães e as filhas do povo e não se dobraram mais às fantasias de um poder anacrônico e beligerante que as desvaloriza e exclui. Elas estão mais organizadas do que imaginam, mais lúcidas do que eles, mais articuladas entre elas e mais desejosas de mudar seu mundo de outras maneiras. Elas mudarão ainda mais a história de seu país e já a estão mudando.

 Embora algumas testemunhas midiáticas mesmo do Afeganistão só falem da opressão, só se lamentem frente às câmeras de televisão sobre a ação dos opressores talibãs e chorem suas perdas e privilégios a situação real é bem mais complexa.

 Há que deixar cada vez mais claro o protagonismo político e religioso de muitas afegãs, sua força, a força de sua voz e de sua resistência nos diferentes rincões do país e sobretudo de diferentes maneiras.

Elas tornarão o Afeganistão uma nova nação, elas concretizarão o sonho de muitas, sonho real de respeito e de convivência com a riqueza cultural das diferenças.

 Elas de fato buscam um Salam (Paz) real que se expressa na construção de relações justas desde as pequenas ações solidárias cotidianas e domésticas até as instâncias governamentais de decisão de seu país. Não faltarão dificuldades, não faltaram novas formas de violência e decepções. Mas, a luta pela dignidade humana e a dignidade de um país são sempre maiores e não se deixarão sucumbir frente as dificuldades. 09 Setembro 2021
Viva as mulheres afegãs! 

Artigo postado em

 http://www.ihu.unisinos.br/612706-as-bravas-mulheres-afegas-contra-o-obscurantismo-do-mundo

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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