Saúde pode ser considerada tanto um bem pessoal como um bem coletivo compartilhado por todos os cidadãos. Assim sendo, ela compreende duas dimensões essenciais: a dos indivíduos e a da coletividade. Seu conceito, por ser multidimensional, pode (e deve) ser considerado “elástico”, pois Saúde pode ser algo definido e percebido de formas díspares em diferentes épocas, assim como diversamente por distintos grupos sociais, profissionais e populacionais.
Até o fim da II Grande Guerra Mundial, a visão mais comum era a de que saúde era sinônimo de ausência de doenças ou enfermidades. Foi quando a Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua Constituição de 1947, mais especificamente, no seu primeiro Princípio, estabeleceu que Saúde não seria apenas a ausência de doenças ou enfermidades, mas o estado de completo bem-estar físico, mental e social.
Essa definição, além de mais abrangente do que a anterior, impulsionou a visão de que se poderia refletir o “conceito saúde” sob diferentes perspectivas e ênfases, levando-se em conta as muitas variáveis a ela associadas, direta e indiretamente, que vão desde os seus possíveis determinantes socioeconômicos e políticos, passando pelas subjetividades das experiências individuais sobre doença, indo até o papel da assistência à saúde. Assim, passou a ficar mais claro que o processo saúde-doença era muito mais complexo, multifatorial e multidimensional do que a abordagem hegemônica anterior concebia.
Dentro desse rico e complexo contexto a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, também conhecida como Conferência de Alma-Ata, em 1978, organizada pela OMS e a UNICEF, emitiu, ao seu final, uma declaração, também conhecida como “Saúde para Todos no Ano 2000”, na qual apontava que saúde era um “direito humano fundamental”. Além disso, deixava claro que o título do documento era a mais importante meta social mundial a ser alcançada, para qual se fazia necessária a ação e cooperação de muitos setores da sociedade (afora o governamental), que iam além da área específica, no intuito de que todos os povos do mundo tivessem, no final do século passado, um nível de vida saudável, produtivo e feliz.
Vale também destacar a Carta de Ottawa, de 1986, que foi como ficou conhecido o documento elaborado e aprovado na Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Essa carta de intenções defendia a promoção da saúde como fator fundamental de melhoria da qualidade vida (uma nova dimensão trazida à baila) e a capacitação da comunidade nesse processo. Além disso, reforçava a responsabilidade de todos os setores da sociedade para um bem-estar global.
No Brasil, em decorrência desse momentum mundial, o debate sobre essa concepção de saúde dependente de diferentes setores da coletividade se intensificou, culminando com a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, também em 1986, que passou a agregar à definição da OMS a preocupação com os determinantes que levariam a esse bem-estar. Entre muitos, o relatório final explicitou e destacou: lazer, salário justo, acesso aos serviços de prevenção e assistência à saúde, moradia, transporte, educação, saneamento e emprego.
Esse documento muito influenciou os deputados constituintes de 1987 que, ao elaborarem a nova Constituição Brasileira de 1988, estabeleceram, no artigo 196, que a saúde seria definida como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços, para sua promoção, proteção e recuperação.
Posteriormente, a Lei 8.080, de 1990, também conhecida como a “Lei Orgânica da Saúde”, dispôs sobre as necessárias condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como da organização e funcionamento do setor Saúde, inclusive dos serviços de atenção à saúde, isto é, do Sistema Único de saúde (o SUS). Em seu artigo 3º, essa lei reforça o conjunto de determinantes e condicionantes para se obter saúde, já mencionados no relatório da VIII Conferência – ressaltando também a importância da alimentação, meio ambiente e acesso aos bens e serviços essenciais.
Além de tudo isso, o surgimento da Bioética e o aumento da consciência sobre a crise climática planetária, tornou ainda mais premente a ampliação do conceito de saúde, englobando os desafios ambientais, havendo atualmente uma pressão para que à definição da OMS seja incorporada a importância do meio ambiente e de toda a biosfera para a saúde da população mundial.
Mais recentemente, a OMS, através dos grupos de estudos sobre qualidade de vida, a American Association of Medical Colleges, a Joint Comission for the Accreditation of Healthcare Organizations, a Associação Mundial de Psiquiatria e a Sociedade Brasileira de Cardiologia, através de suas Diretrizes de Prevenção, dentre muitas outras instituições, reconheceram a relevância de se incluir uma reflexão sistematizada sobre as relações da saúde com a espiritualidade (particularmente com os sentimentos e crenças religiosas e espirituais dos pacientes que tanto podem impactar de maneira positiva quanto negativa o complexo binômio saúde-doença) como também a importância das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) e dos Cuidados Paliativos. Vale ressaltar que vinte e nove PICS são oferecidas, atualmente, pelo SUS.
Portanto, finalizando essas breves reflexões, é preciso reconhecer e realçar que, atualmente, existe uma necessidade de modificação e ampliação do conceito de Saúde da OMS, embora não haja, nesse momento, um consenso. Além disso, existem aspectos concernentes à área da saúde que necessitam de uma clara definição do que se deve considerar como sendo saúde, tais como: tipos de serviços oferecidos à população; mensuração dos níveis de saúde de uma comunidade; entendimento do que seria visto como “um problema de saúde”; elaboração de diretrizes para planejamento, monitoramento e avaliação de intervenções na área de Saúde, dentre muitos aspectos objetivos e pragmáticos.
Pessoalmente, defendo, há vários anos, que a melhor definição para saúde (em coerência com o quantitativo e a qualidade de informações produzidos em diversas áreas do conhecimento científico) deveria ser “não apenas a ausência de doença, mas o completo bem-estar físico, emocional, social, existencial e espiritual, num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável”.
Finalizando essas breves reflexões, pugno que esse conceito, mais holístico e integrativo, deve ser realçado e divulgado até se tornar hegemônico, passando a ser referência balizadora não só para a concepção das políticas de saúde e da prática da assistência à saúde (e para todas as métricas utilizadas para avaliar o estado de saúde, a qualidade de vida e o bem-estar dos indivíduos ou de uma coletividade), mas também para contribuir no enfrentamento da potencialmente catastrófica crise climática que se avizinha e na necessária aproximação entre a Ciência e a Espiritualidade, pois como teria dito o célebre escritor e intelectual francês, André Malraux: “ O século XXI será espiritual ou pura e simplesmente não será”.
Obs: O autor é educador, Livre-Pensador, profissional de saúde, professor universitário, pesquisador, escritor, gestor de Políticas Públicas e militante/ativista da Bioética, do Humanismo e Da Inclusão Científica.
Formado pela UFRJ, é Ph.D pela Universidade de Leeds-Inglaterra, e membro das Academias Pernambucanas de Ciências e de Medicina.
Foi Secretário Executivo de C&T e Ensino Superior do Estado de Pernambuco e Secretário Executivo de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco.
É autor dos livros Ética, Bioética e Humanismo na Pesquisa Científica; Contribuição ao Conhecimento; Iniciação em Pesquisa Científica; Flunático: fluminense fanático e lunático, Um Outro Mundo é Possível (2021) e criador da aula espetáculo Somos Todos Cientistas.
Atualmente é Coordenador do Curso de Medicina da UPE e membro da Câmara de Bioética do CREMEPE.