Djanira Silva 15 de agosto de 2021

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Acordo com vontade de desligar o mundo, ou, quando nada, desligar o sol. Alguém teve a mesma idéia. Chove. Penso em desligar as nuvens. Chuvas não apagam nem o dia nem a noite nem as marcas do tempo. Caminho para um mundo escuro, seco, sem vento, sem nada.
Estranhos ruídos na minha cabeça perturbam meu juízo. Um remexido, um movimento de ratos no baú, rasgando roendo minhas idéias. Abelhas, formigas, pernilongos nos meus ouvidos, palavras inúteis sem coerência, sem sentido, ruídos que não respeitam sonhos e devassam segredos. Será que começa assim? Lembrei-me de que, antigamente, os velhos caducavam. Faziam coisas estranhas, esqueciam de tudo, não reconheciam nem os próprios filhos. Depois, a caduquice ganhou outro nome – esclerose – logo substituído por outro mais modernoso. Para este ensaio de saída da vida, inventaram um nome próprio, próprio mesmo, nome de gente, com maiúscula e nível universitário – Alzheimer. De qualquer forma uma velhice esclerosada é mais decente do que uma caduquice amalucada ou uma esclerose mal resolvida. Será que mudando o nome da coisa a coisa será diferente?
Quero inventar minha própria demência. A cabeça é minha, o juízo é meu e a velhice me dá o direito de fazer as mesmas esquisitices dos velhos de antigamente. Ou será que velho só serve para ficar nas filas, pagar contas e entrar no ônibus pela porta da frente?
A quem importa a minha idade? Quem padece dela sou eu. Não me avisaram que envelhecer doesse tanto. Ossos desunidos que brigam quando se encontram.
Todos os dias, convenço-me de que é meu aniversário. Num faço quinze anos, no outro, vinte, quando vou me aproximando do agora, volto. E assim, todas as manhãs canto parabéns sem vela e sem bolo, mas com uma velha que dá um bolo na velhice.
Minhas avós viveram uma velhice tranquila, sem medo de rugas, de ossos partidos e sem sorrisos paralíticos e bochechas plastificas.
Outro dia, fui ao enterro de uma conhecida que perdeu boa parte da vida tentando driblar a velhice. No caixão, maquilada, exageradamente, lembrava um kabouki do teatro japonês. A esquisita defunta, com sobrancelhas definitivas, contornos dos lábios exagerados era uma cópia da Emília do Sítio do Pica Pau. Agora, tudo nela era definitivo.
Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz, foi me olhar no espelho. Olhos empapuçados, bochechas caídas, cabelos brancos aparecendo por cima das orelhas de papafigo e alguns rebeldes, fugindo pelos buracos da venta. O pescoço, uma sanfona prestes a ensaiar um xaxado. Então me perguntei: pra que me enganar por fora se por dentro a caveira continua esburacada?
Fui dormir, conformada de fazer, sem medos e sem cuidados, os meus gloriosos, não sei quantos janeiros, fevereiros e marços, que serão comemorados ano que vem com Missa de Ação de Graças, parabéns pra você e muita conversa mole do tipo: nem parece, ainda está lúcida, ainda está equilibrada, ainda está tão jovem. Nada me irrita mais do que esse ainda.
Espero que não enterrem tão cedo uma velhinha tão precoce

Obs: A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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