(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Quando em 1968 Geraldo Vandré obteve o segundo lugar no Festival Record da canção, aclamado pelo auditório, cantou sobre flores e canhões.  O título de sua composição era justamente “Para não dizer que não falei de flores”. A audiência, a maioria composta por jovens, cantava a plenos pulmões as estrofes da canção, entre as quais se destacava essa: Pelos campos há fome em grandes plantações/ Pelas ruas marchando indecisos cordões/ Ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ E acreditam nas flores vencendo o canhão.

Muitos talvez não atinassem para o fato de que o título e a canção de Vandré escondiam uma estratégia não isenta de ironia e engenhosidade.  O Brasil vivia seus anos de chumbo.  A ditadura militar ceifava vidas e esperança.  Os efeitos da censura que pesava sobre convicções e manifestações políticas atingiam também a cultura e suas expressões.  Infelizmente a música popular não escapava a essa tenebrosa vigilância. Os organizadores do festival foram instruídos a não dar a vitória a Vandré, restando-lhe o segundo lugar.  Alguns dos jurados sentiram-se profundamente frustrados, chegaram mesmo a retirar-se do evento.

Na verdade, a canção de Vandré, aguerrida e bela, era um hino e uma convocação.  Não se intimidava em criticar todos os que optavam pela imobilidade e pretensa neutralidade, incluídos os movimentos que pregavam “paz e amor”.  O poder das flores não era tido em alta conta pelo compositor diante da espessura violenta do ataque das armas que ameaçavam toda uma geração.

Parece que aqueles anos voltam em certa maneira hoje.  Sentimos outra vez a linguagem da violência habitando os discursos oficiais.  As armas são enaltecidas em seu poder destruidor e até da tortura se faz apologia. Segmentos vulneráveis da população são ameaçados.  Além da pandemia, outras nuvens encobrem o horizonte.

Entre estes segmentos fragilizados, destacam-se os povos indígenas.  Não bastasse a vulnerabilidade que apresentaram frente à pandemia da Covid 19, esses povos que vivem no Brasil e constituem nações com culturas riquíssimas agora se defrontam com a ameaça de um projeto de lei que ameaça alterar a legislação sobre a demarcação de suas terras. O projeto tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Seu texto é ambíguo e polêmico por passar a exigir comprovação de posse até 1988 para que as terras sejam demarcadas.  Além disso, no conteúdo do texto, aparece a flexibilização do contato com povos isolados, a proibição da ampliação de terras já demarcadas e abertura da possibilidade de permissão para exploração de terras indígenas por garimpeiros.

Sentindo-se ameaçados, vários indígenas acompanharam a sessão de exame e votação do projeto de lei.  Além disso, no último dia 15 de junho, um expressivo grupo realizou protesto em Brasília na esplanada dos ministérios.  No dia 23, houve outro protesto.  E a polícia se fez presente, com bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral para dispersar o movimento.  Alguns manifestantes reagiram com flechas e chegaram a atingir policiais, que foram atendidos e não tiveram maiores consequências em decorrência do revide.

 O que queremos aqui é não tanto comentar esses elementos que são tão comuns em toda manifestação pública: violência maior ou menor, armas, enfrentamento.  O que ilumina e faz única essa manifestação última foi a presença das flores. Sim, as flores que Vandré lamentava que provocassem a alienação do contexto político onde vivíamos.  As flores, que muitas vezes serviram de arma indolor para que o patriarcalismo exercesse seu silencioso e perverso domínio sobre as mulheres e suas potencialidades.  As flores, que com sua suave beleza perfumam e enfeitam ambientes e são consideradas inofensivas e supérfluas.

Em vez de armas, bombas e flechas, as mulheres indígenas ofereceram flores aos perplexos policiais. Rosas. E os que vimos e participamos desse momento de inaudita beleza nos perguntamos, envergonhados: Mas são esses os povos ditos “primitivos”?  São esses os que figuravam na Constituição Brasileira até 1988 como incapazes e menores de idade?

Ali estavam, respondendo com beleza e paz à violência, aqueles e aquelas que foram insistente e permanentemente espoliados de suas terras, transferidos à revelia para outros espaços, tutelados por um Estado que jamais os protegeu, ao contrário explorou sua vulnerabilidade, não reconhecendo a eles capacidade civil.

O ato dos indígenas de oferecer flores aos que os reprimiam e os atacavam é surpreendente e pedagógico.  Retoma e ultrapassa todas as pedagogias de pacificação e justiça acontecidas na história, entre elas o evangelho de Jesus. O biblista Carlos Mesters, em seu livro Flor sem defesa, fala na força do que é pequeno, vulnerável e indefeso no mundo, que consegue questionar e interpelar a força e o poder. Os indígenas reinterpretam e dão novo sentido, hoje, à canção de Vandré no longínquo Festival da Canção de 1968.  As flores têm palavras e falam.  E podem, sim, vencer o canhão.  Quando muito, falam eloquentemente sobre a vaidade e a inexatidão das avaliações humanas, que consideram primitivo e atrasado aquilo que é proteção e cuidado da vida e da beleza.  Ao mesmo tempo que considera bela e poderosa a força bruta que vem com as armas da destruição, deixando um rastro de morte atrás de si.

Obs: Maria Clara Bingemer, é  autora de Crônicas de cá e de lá, entre outros livros.

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