Assim falou, uns anos atrás, o Cardeal alemão Gerhard Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Ele disse: as palavras do Papa não são palavras de um estadista. O Papa não resolve nada, não decide nada. Proponho que fiquemos uns momentos com essa avaliação do Cardeal Müller.
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E se o Papa não quer ‘resolver’ nada?
O cardeal, com essas breves palavras, pretende definir o papel de um papa na igreja. Ele seria a última instância, teria de resolver as coisas e, desse modo, se comportar em ‘estadista’, ou seja, defensor do estado eclesiástico e dos interesses relacionados a esse estado. É isso? O papado serve para isso? Eis que estamos metidos numa discussão de grande amplitude, que de certo modo excede a questão do papado. Para exemplificar esse ponto, proponho que nos desloquemos, na imaginação, para a Rússia em meados do século XIX, pois aí houve uma troca de opiniões, entre figuras proeminentes da época, que, de qualquer modo, tem algo a ver com o que nos ocupa aqui. Talvez mais que se costuma pensar.
Entramos num país que nos é largamente desconhecido, mas mesmo assim conseguimos identificar algumas figuras e delinear alguns movimentos. Na Rússia Czarista dos anos 1850 reina a miséria na população, tanto camponesa como operária. Diversos grupos se inquietam com essa miséria e procuram uma solução política. Há os seguidores de Karl Marx (1818-1883), de diversas tendências. Há quem segue a figura de Mikhael Bakunin (1814-1876), e aparece igualmente, embora em relevo menor, a sedutora figura de Piotr Kropotkin (1842-1921). Só trago aqui os posicionamentos, em breves linhas.
Marx é resoluto: há de se conquistar o poder do estado, conseguir ter o governo em mãos. Pelo processo de uma (temporária) tomada de poder por parte dos pobres (dos ‘proletários’), ou seja, de uma ‘ditadura do proletariado’ surgirá a ‘sociedade sem classes’, justa, feliz e digna do ser humano, a sociedade do ‘bonum commune’ (bem comum’) sonhada pelos teólogos medievais (a expressão é de Tomás de Aquino).
Bakunin concorda com o mestre alemão Marx para dizer que, na sociedade, há oposição sistêmica entre pobres e ricos, uma desigualdade social que gera injustiça, violência e inúmeros sofrimentos. Mas ele discorda quanto ao processo da reversão de tão insuportável situação. Ele não acredita que algum tipo de estado (governo), por mais que seja controlado pelo ‘proletariado’, possa ser instrumento do ‘bonum commune’. Bakunin afirma: o estado sempre será o patrimônio de alguma classe privilegiada. É uma máquina, e toda máquina serve para um determinado fim. Fabricado por privilegiados (mesmo quando oriundos de classes operárias), ele só funciona para privilegiados. O estado é uma máquina cuja finalidade consiste em produzir pessoas que obedecem sem entender. Quanto mais perfeita a máquina do estado, mais ignorantes as pessoas que ficam presas em suas engrenagens.
Karl Marx conhece pessoalmente Bakunin, sabe das prisões e torturas que esse sofreu por parte do poder czarista e manifesta o maior respeito por seu colega. Mas, ao mesmo tempo, ele se assusta com a radicalidade de seu pensamento e afirma categoricamente que esse tipo de colocação não leva a nada, é niilismo, anarquismo. O termo, de conotações negativas, perdura até hoje.
Marx não arreda pé e continua dizendo que o ‘proletariado’, explorado pelo poder do dinheiro, tem de se unir e tomar o poder: proletários do mundo inteiro: uni-vos (Manifesto Comunista de 1848). A revolução, para Marx, consiste na tomada do poder do estado pela classe operária, representada pelo partido operário, ou seja, um partido formado por operários ou por revolucionários companheiros dos operários, o partido comunista. A formação desse partido é uma etapa necessária para que se alcance a paz social e a prosperidade para todos e todas. Eis a tese básica do marxismo, o dogma marxista.
Bakunin, pelo contrário, afirma que o poder efetivamente capaz de beneficiar o povo reside em forças emergentes da sociedade civil, nunca no estado (governo). Ele tem frases impactantes a esse respeito: Se você pega o mais ardente revolucionário e o investe de poder absoluto, dentro de um ano ele será pior que o próprio Czar. Por que? A resposta é direta: o ser humano é assim. Bakunin não parte de considerações teóricas, mas de uma observação do dia-a-dia: o ser humano é assim. Eis uma constatação capaz de sensibilizar historiadores, pois o estudo da história mostra efetivamente que, ao longo da história, os que conquistam o poder do estado, por bem-intencionados que sejam, se tornam afinal, de um ou outro modo, dominadores. Basta o exemplo do século XX, que nos deu Adolfo Hitler, Joseph Stalin, Benito Mussolini, Salazar e Franco. Nazista, comunista, católico, ortodoxo, crente ou descrente, tanto faz. Da esquerda ou da direita, tanto faz: todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto (Lord Acton). O estado é a maior e mais ousada de todas as conspirações. É indesejável, desnecessário e nocivo. Qualquer posição privilegiada mata o intelecto e o coração do homem. O homem privilegiado é um homem depravado no intelecto e no coração (Bakunin). Eis um tipo de reflexão que, nem na Rússia do século XIX, nem hoje, é do agrado de quem ocupa alguma posição dentro das engrenagens do estado. Nem agrada aos grandes meios de comunicação. Por isso, não se divulga nem se discute muito. Pois a atuação perniciosa do estado tem de permanecer no escuro para funcionar a contento. Exposta à luz do sol, evapora. No momento em que as pessoas começam a perceber o que se passa realmente, elas reagem contra o estado. Por isso, o estado faz de tudo para se apropriar dos meios de comunicação: a partir do momento em que o público só aceita noticiários partidários (dirigidos à tomada de poder do estado ou emanados desse poder), a repressão de cima se torna supérflua e a estupidez corre solta.
Não há como negar: a história está do lado da tese de Bakunin, contra a tese comunista. O maior desmentido histórico da tese comunista veio com as duas Guerras Mundiais do século XX, que a seu modo (por fatos, não por palavras) demonstraram a fraqueza epistemológica da filosofia comunista. Nelas se viram operários combatendo operários, camponeses matando camponeses em massa, com convicção e extrema crueldade, sob o mando de oficiais que pertenciam à classe que segundo o Manifesto Comunista de 1848 é inimiga jurado do operário e do camponês. Os combatentes de ambos os lados, em sua maioria provenientes de classes que Marx define como proletárias, se comportaram 100 % como soldados a serviço da pátria e se mostraram orgulhosos em matar os que o referido Manifesto chama ‘companheiros’. Eis o que os fatos nos ensinam. E contra fatos não há argumentos: o sentimento nacionalista (patriótico) funciona, a ‘consciência de classe’ nem sempre. Bakunin: o ser humano é assim.
Ainda cito aqui umas palavras a respeito de outro anarquista, Piotr Kropotkin. Nascido príncipe, recusa os benesses de sua origem e passa a conviver, em condições miseráveis, com camponeses na Rússia e na Finlândia. Preso diversas vezes, na Rússia e na França, escreve livros importantes de inspiração anarquista, como A Conquista do Pão (1892) e O Mutualismo (1902). Escreve considerações que merecem ser lidas e relidas sobre o valor ‘revolucionário’ da ‘mutualidade’ na vida cotidiana. Em contraste com a maioria dos revolucionários de sua época, Kropotkin, em suas reflexões, parte da cotidianidade pacífica de ajuda mútua vivida pelo povo e escreve: deixando de lado as ideias preconcebidas da maioria dos historiadores e sua evidente predileção pela parte dramática da vida humana, vemos que os documentos, que eles trazem habitualmente, focalizam a parte da vida humana que se entrega à luta e não apreciam devidamente o trabalho pacífico da humanidade. Os dias claros e ensolarados se perdem de vista, enquanto tempestades e terremotos entram em foco (em: Mutualismo, 1902, capítulo IV). O nome Kropotkin (que nome lindo!) evoca os dias claros e ensolarados de um pensador excepcional, infelizmente pouco lembrado em discussões e análises.
O funeral de Kropotkin, em 1921, constitui o último grande encontro de anarquistas numa Rússia doravante dominada por bolcheviques marxistas.
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A velha sabedoria anarquista.
Como escrevi acima, os comunistas se encarregaram de qualificar os seguidores de gente como Bakunin e Kropotkin, de ‘anarquistas’. Um termo nada simpático, pois faz pensar em depor as armas, não querer saber de nada. Boemia, individualismo, derrotismo, ‘niilismo’. Mas o movimento histórico, tachada de ‘anarquismo’ não é nada disso. Pelo contrário, é uma atitude revolucionária, ativa e participativa, que se caracteriza pelo realismo, tem os pés no chão da vida. O pensamento anarquista ativa movimentos, na sociedade civil, que clamam por saúde, educação, segurança, bem-estar. Nesse ponto, muita gente fica confusa e pensa que, em determinadas circunstâncias, o estado age como um pai bondoso e generoso. Se esse estado se mostra dessa forma, é por ceder diante de forças oriundas da sociedade civil, forças ‘anárquicas’. Assim, por exemplo, o famoso ‘Welfare State’ (estado do bem-estar) europeu no período pós-segunda guerra mundial não agia por vontade própria, mas era impulsionado por poderosos movimentos que atuavam na sociedade civil (e que, em muitos casos, se autodenominavam de ‘socialistas’). Aqui, como sempre, os termos pouco importam. O que importa é observar o que acontece na realidade. Após a queda do muro de Berlim, quando o ‘perigo socialista’ esvaecia, o ‘Welfare State’ entrou num processo de gradativo desmantelamento (neo-liberalismo).
O tipo de análise, promovida pelo anarquismo, ajuda a ver claro num ponto que a tradicional filosofia ocidental não clareia suficientemente. Tomás de Aquino, o mestre medieval, se limita a dizer que o ‘status’ (estado) tem de servir ao ‘bem comum’. Isso é impreciso demais. Precisamos especificar em que condições o estado cede diante de movimentos de ‘democracia participativa’, ‘movimentos populares’, ‘comunidades de base’, ‘mística popular’, ‘experiências de baixo para cima’. Movimentos que podem ser taxados de ‘anarquistas’, como se demonstrou acima em relação à Rússia do século XIX. Conquistar o poder do estado (ganhar as eleições) fica num segundo plano. Cria apenas uma plataforma favorável de desafios, nada mais. Um anarquista relativiza a importância das eleições. A história recente do PT é eloquente nesse ponto, como Frei Betto não deixa de nos lembrar. Quando o partido chegou ao poder, aconteceu exatamente o contrário do que muitos militantes esperavam: em vez de ativar os movimentos populares, a conquista do estado fez com que muitos movimentos populares depusessem as armas, pensando que tinham alguém lá em cima que os representasse. A conquista do poder do estado paralisou (ou pelo menos enfraqueceu) os movimentos na sociedade civil.
Hoje, em dias de incertezas e dúvidas, percebemos melhor o valor do ‘anarquismo’. Não é por nada que, em não poucos ambientes, as experiências de movimentação na base entram no foco. Não é por acaso que se estudam hoje movimentos que atuam desde tempos imemoráveis na história da humanidade. Estudos históricos mais aprofundados mostram que, sob as mais diversas formas, um tipo de ‘anarquismo’ já foi praticado por sábios chineses do século VI aC (corrente ligada ao taoísmo), por filósofos cínicos na Grécia (Diógenes) e, para surpresa de não poucos, no movimento de Jesus de Nazaré.
Fiquemos uns instantes com o cinismo e sua aproximação com o cristianismo. Todos conhecemos a história de Diógenes de Sínope, que viveu entre 400 e 320 aC e foi pejorativamente chamado de ‘cínico’ (parece que foi por Aristóteles). O termo é derivado de ‘kuôn’, que em grego significa ‘cachorro’. Realmente, Diógenes, segundo a lenda, manifestou uma impassibilidade ‘canil’ no famoso encontro com Alexandre Magno, o conquistador do mundo. Sentado num tonel, ele escutou Alexandre dizer: Você pode me pedir tudo que quiser. E respondeu prontamente: Então, pares de me fazer sombra. É que ele estava tomando um banho de sol.
Mas a grande surpresa, para quem estuda as origens do cristianismo, está na aproximação entre o cinismo e o movimento de Jesus. Verificou-se efetivamente, por volta do ano 50 dC, em pleno surgimento do movimento de Jesus, em todo o âmbito do mundo mediterrâneo, uma renascença da antiga filosofia cínica. Diversos documentos revelam uma aproximação entre essa filosofia e o nascente movimento de Jesus de Nazaré. O conhecido historiador e frade dominicano norte-americano John Dominic Crossan, em seu livro O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo (Imago, Rio de Janeiro, 1994; a edição americana é de 1991), não sem ousadia, qualifica Jesus de camponês judeu cínico (p. 459). Efetivamente, diversos textos da primeira geração falam do jeito ‘cínico’ de Jesus e de seus discípulos de Jesus. Jesus não manda seus apóstolos andar pelas aldeias sem nada para a caminhada senão um cajado, nem pão, nem sacola, nem moedas na cintura, só sandálias nos pés. E nada de túnica de reserva!? (Mc 6, 8-9). Isso não traz à lembrança o filósofo Epíteto (55-135 dC), que dizia: tenho apenas o céu e a terra e um velho manto? Ou aqueles, que, conforme consta em cartas que deles se conservam, diziam que têm a sola dos pés como calçado, o mundo inteiro como morada, e a fome como prato principal? Ou ainda aqueles cínicos que dormem no chão, em casas de banho e outros lugares públicos, andam pelos mercados a mendigar, comem apenas verduras com água, não cortam os cabelos nem a barba, e dizem: tudo que é preciso para viver cabe numa sacola?
Tanto os filósofos cínicos quanto os apóstolos de Jesus partem da situação de pobreza em que o povo vive. E relacionam pobreza com liberdade. Sêneca (4aC-65dC), um filósofo estoico influenciado pelo cinismo, escreve: Uma cobertura de palha costuma abrigar homens livres; sob um telhado de ouro e mármore existe apenas escravidão (cit. Crossan, p. 111). O Imperador Julião (331-363 dC), também estoico, reconhece no cinismo uma filosofia universal, talvez a mais natural de todas, pois não exige nenhum estudo especial. Cinismo e cristianismo reagem da mesma forma contra uma cultura de ostentação e fachada, hipocrisia e luxo. Figuras que contestam a sociedade vigente por seu modo de ser, cuja pobreza intencional tem forte impacto sobre a sociedade e que praticam a pobreza com dignidade, altivez e independência, desafiando a seu modo o mundo do desejo e do dinheiro. Determinados textos cristãos das origens, como – por exemplo – a Carta anônima a Diogneto, adotam um estilo cínico: Eles (os seguidores de Jesus) amam a todos e são por todos odiados; os que os odeiam não conseguem dizer por que.
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O que tudo isso tem a ver com o Papa Francisco?
Não é comum evocar o anarquismo ao falar de um Papa. Mas, no caso de Francisco, faz sentido. Ao escrever isso não quero, nem de longe, sugerir que o Papa Francisco tenha tido algo a ver com algum movimento anarquista eventualmente existente na Argentina, no seu tempo de episcopado naquele país. O que pretendo dizer neste texto é que se percebe, em falas e ações do Papa, uma sintonia com a ‘velha sabedoria anarquista’. É o que passo a comentar aqui.
– No avião que o traz de volta da Jornada da Juventude no Rio de Janeiro em 2013, poucos meses depois de sua eleição, um jornalista pergunta ao Papa sua opinião acerca dos gays. E ele, prontamente, responde: Quem sou eu para impedir um homossexual de se aproximar de Deus? Essa frase, famosa, delineia com clareza a figura do Papa Francisco. Ela evoca os dias claros e ensoleirados de Propotkin, não as tempestades e terremotos tão ao gosto de cardeais briguentos. Pois é claro, o Cardeal Müller vai dizer que o Papa se revela adepto de permissividade sexual e passa por cima da orientação costumeira: quem sente atração por uma pessoa do mesmo sexo, tem de guardar a castidade. Senão, adere, conscientemente ou não, a um ‘movimento’ de caráter totalitário, que intenta desconstruir a família, etc. Eis a tempestade na cabeça do Cardeal. Ele tenta arrastar o Papa para a arena de uma contenda com a opinião pública que, sempre mais, considera o casamento gay como algo normal. Mas o Papa não se deixa ‘arrastar’, ele prefere ficar com pensamentos claros e ensoleirados. Prefere manter um saudável comportamento ‘anarquista’.
– No dia 9 de julho de 2013, o Papa viaja à Ilha de Lampedusa, situada a pouco mais de cem km. ao sul da Sicília, exatamente em meio-caminho entre o continente africano e o continente europeu, onde continuamente aportam levas de imigrantes provenientes da África. É a primeira viagem fora de Roma, planejada por ele mesmo (pois a viagem anterior ao Rio de Janeiro já estava programada para o Papa Bento XVI). A visita a Lampedusa repercute no mundo inteiro. O Papa fala pouco, ele apenas lamenta: nós nos tornamos incapazes de chorar. Ou seja, o drama mundial de refugiados pouco nos toca.
Para os cardeais briguentos, essa viagem é mais uma ‘encenação’ feita para impressionar a opinião pública, como quando manda parar o papamóvel para abraçar um doente em seu carrinho, visita padres casados, oferece carona a refugiados, conversa com ortodoxos, judeus, islamitas, e até ateus, beija a face de um cego, lava os pés de criminosos presos, figura em fotos ao lado de camponeses peruanos e indígenas colombianos. Comportamentos nada convenientes a um papa ‘estadista’.
– Nos dois sucessivos Sínodos sobre a Família, entre 2014 e 2015, não entra em pauta nenhuma questão que agita a opinião pública: um divorciado pode receber a comunhão eucarística? a igreja aprova a limitação de nascimentos? Qual o posicionamento diante da Encíclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI, que condena peremptoriamente a limitação de nascimentos? etc. Os Sínodos terminam e não se ‘decide’ nada. Acena-se apenas para o agente de pastoral eventualmente confrontado com algum desses problemas: ‘que ele aja segundo sua consciência!’. Mas o Papa não deixa de soltar, de passagem, mais uma de suas frases: Os católicos não são obrigados a se reproduzir como coelhos.
– O mesmo acontece com o texto Amoris Laetitia de 2016, em que aparecem palavras inusitadas: Não se deve dar preferência a espaços de poder frente aos tempos, por vezes largos, dos processos. Nosso poder consiste em colocar em marcha processos, mais que ocupar espaços. Ora, desde a Idade Média, os intentos da igreja consistem basicamente em ‘ocupar espaços’, tanto territoriais (a paróquia) quanto institucionais (capelanias, assistências eclesiásticas, diretorias, assessorias), tanto imaginários quanto políticos. O Papa dá a impressão de desconhecer tão impressionante painel histórico. Simplesmente deixa cair uma frase que desmancha tudo: Não se deve dar preferência a espaços de poder. Trata-se de incentivar processos, dinamizar a ação, colocar a igreja em marcha. Abandonar a ideia da centralidade da igreja na construção da sociedade, militar na construção da justiça e da misericórdia, do encontro e do diálogo, sem se ocupar com espaços de poder? Um programa abrangente, uma convocação para além de clausuras culturais e confessionais. Todos são convocados: crentes e descrentes, católicos e ateus, cristãos e islamitas, comunistas e liberais, chineses e ocidentais.
– O Papa Francisco sabe o que está dizendo e é exatamente isso que faz com que encontre oposição em determinados setores da igreja. No início não se dá muita atenção ao que ele diz, pois ele tem um jeito manso e calmo de falar, sem levantar tempestades. Assim, por exemplo, não se presta muita atenção à fala do então Cardeal Bergoglio diante de seus colegas cardeais, no dia 9 de março de 2013, poucos dias antes do início do conclave que o elegeria papa:
A igreja deve sair de si mesma, rumo às periferias existenciais.
Uma igreja auto-referencial prende Jesus Cristo dentro de si
e não o deixa sair.
É a igreja mundana, que vive para si mesma.
O texto se encontra no livro ‘Grandes Metas do Papa Francisco’, escrito pelo Cardeal Hummes (Paulus, São Paulo, 2017). Aqui já se prenuncia a expressão igreja em saída, que só é entendida corretamente quando colocada diante de um amplo painel histórico. Temos de recuar até os séculos XII e XIII, ir até os três grandes papas da Idade Média: Gregório VII (1073-1085), Inocêncio III (1198-1216) e Bonifácio VIII (1294-1303), para encontrar três papas grandes organizadores de uma igreja voltada para si mesma. Esses papas, e a corte que os rodeava, se imaginavam que o crescimento da instituição cristã implicava automaticamente na maior divulgação do evangelho. Esse era o postulado. Desse modo, a igreja se tornava sempre mais auto-referencial, autocentrada, triunfalista e até narcisista (outro termo do Papa Francisco). Líderes eclesiásticos eram valorizados na medida em que se mostravam bons empresários. Sempre mais se valorizava a eficiência administrativa. A igreja se encontrava num círculo vicioso e não se dava conta. Olhava para si mesma, só enxergava o mundo a partir de si mesma. O clericalismo crescia exponencialmente, seu controle sobre a população aumentava sempre mais. Quando autoridades eclesiásticas falavam em ‘reforma da igreja’ (e falavam muito), era sempre no sentido de aperfeiçoar os instrumentos de controle sobre a sociedade. Tudo era direcionado para esse fim: os sacramentos, as paróquias, as indulgências, as devoções, as peregrinações. Orgulhosa de seus grandes feitos de engenharia administrativa, a igreja alimentava, em seus colaboradores, tendências ao carreirismo. Clérigos eficientes podiam contar com um futuro esplendoroso, inclusive com aceitação garantida por parte do ‘povo fiel’.
Tudo isso acabou criando uma neurose que se expressou de forma aguda na tão falada Inquisição. Essa decorria da extremada vontade de controlar tudo, até os recônditos da consciência e da imaginação. Durante séculos, uma mentalidade inquisicional se instalou na igreja e se apoderou da hierarquia. Essa mentalidade virou um mostro, devorava tudo e nem poupava os próprios inquisidores. Pois, não raramente, os inquisidores morriam de medo uns dos outros, já que todos eram potencialmente suspeitos de heresia (os pais, os avós, algum dia, andaram com um herege ou ouviram alguma palavra herética?). Era um inferno. Todos tinham medo de todos, ninguém confiava em ninguém. A história da igreja virou um emaranhado inextricável de tramas, histórias, intrigas, conspirações e corrupções.
Será que os cardeais, em 2013 reunidos em Roma para eleger um novo papa, captam mesmo o alcance das palavras do Cardeal Bergoglio? Seja como for, eles o elegem papa. Três dias depois de eleito, ele exclama: Ah! Como eu queria uma igreja pobre e para os pobres. As mesmas palavras voltam no documento Evangelii Gaudium (EG), um dos primeiros por ele assinados: uma igreja pobre e para os pobres, uma igreja que faz opção pelo pobre (EG, 198). E, ao longo de sucessivas falas, em diversas ocasiões, Francisco vai forjando um vocabulário todo próprio: uma igreja que se move, que faz opção pelos últimos, que vai à periferia, que sai de si mesma, que anda pela rua (‘los sacerdotes callejeros’); uma igreja inclusiva, não excludente, não autocentrada, não narcisista, que não vive para si mesma, não é cartório; uma igreja inteiramente missionária (EG 34), discípula missionária (EG 40), um hospital de campanha, um campo de refugiados. Ainda se pode citar EG 195, 197 ou 199.
A expressão de maior realce, dentro desse novo vocabulário, é ‘igreja em saída’:
Sonho com uma opção missionária
capaz de transformar tudo:
os estilos, os horários, a linguagem,
numa atitude constante de saída (EG 26-27).
– Em maio 2019, com palavras calculadas, no Decreto Praedicate Evangelium, o Papa afirma que a Cúria Romana não é um órgão a auxiliar o papa na administração da igreja, mas um órgão missionário, a serviço da igreja em saída. Não é pouca coisa. Pois, com isso, o Papa enfrenta regulamentos que remontam ao ano 1588, logo depois do Concílio de Trento, quando se estruturou a Cúria como organizadora do poder católico frente ao luteranismo e outros movimentos centrífugas. Regulamentos não revogados na reforma da Cúria empreendida em 1988 pelo Papa João Paulo II (Pastor Bonus). No momento em que Francisco declara que a Cúria Romana deve estar a serviço do colégio episcopal no tocante à evangelização e à missão, ele provoca uma turbulência de resultados imprevisíveis.
– Ainda há uma sucessão de frases esparsas nas diversas declarações do Papa Francisco: Lutero não se equivocou; o Islã pode ser considerado uma ‘verdadeira religião’; o divorciado pode participar da eucaristia; o celibato pode ser questionado; a mulher merece um lugar mais importante na igreja; o aborto nem sempre é condenável; a união entre homossexuais não é, em si, pecaminosa. É como se ele repetisse as palavras no avião, em 2013: ‘Quem sou eu para julgar o posicionamento de Lutero? Quem sou eu para me pronunciar sobre o Islã? Quem sou eu para mexer com a vida de um divorciado? Quem sou eu para dizer à mulher quantos filhos ela deve ter e como ela tem de se comportar na igreja? Quem sou seu para dizer que o sacerdote deve ser necessariamente um celibatário? (Quem sou eu para dizer que o candomblé não é uma ‘verdadeira religião’?).
Palavras anarquistas, soltas ao vento, diametralmente opostas a um discurso hoje hegemônico nos grandes meios de comunicação. Palavras que fazem pensar. O Papa sabe da repercussão dessas palavras, sabe que elas são potencialmente ouvidas por não menos de 1,3 bilhão de pessoas (os católicos), o que não é pouca coisa (para não contar os que não são católicos e ouvem o papa). Resta saber como entender o teor dessas palavras.
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Palavras designativas versus palavras questionadoras.
Por fim umas palavras sobre o uso de palavras. Ao longo dos oito anos sob o Papa Francisco, uma ala da hierarquia continua usando verbos segundo o costumeiro modelo designativo. Cito em negrito algumas expressões de cardeais opositores ao Papa Francisco: ‘a imigração constitui uma invasão’; ‘ o Islã se vê destinado a governar o mundo’; ‘o Islã ameaça a cultura verdadeira’; ‘as palavras do Papa Francisco não são palavras de um estadista’; ‘o movimento gay é de caráter totalitário, intenta destruir a família’; ‘a pedofilia provém de frouxidão doutrinal e atitude laxa diante da homossexualidade’, ‘o Papa não resolve nada, não decide nada’. Tudo designativo, como – aliás – estamos habituados a ouvir por parte dos poderosíssimos meios de comunicação.
O uso que o Papa Francisco faz de palavras se destaca claramente desses usos costumeiros: Quem sou eu para julgar? Quem sou eu para dizer que Lutero não estava certo? Quem sou eu para dizer que o divorciado não pode participar da eucaristia? Será que o sacerdote tem de ser celibatário? Será que a mulher não pode dirigir a liturgia? Será que o Islã não contém nada de valioso?’ O Papa não ‘designa’, não define. Ele questiona, exorta, convida, faz refletir, mas não define.
Desde Sócrates e Aristóteles, os filósofos, ao tratar da cognição, recomendam cuidados com enunciações designativas. Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar que a verdade consiste em detectar, numa mensagem recebida, aquilo que é (id quod est), não deixa de alertar para o imperativo ético: nem sempre ‘aquilo que é’ me agrada, está em conformidade com meus interesses. Como me comporto diante do que se contrapuser aos meus interesses? Pois não faltam, na vida da gente, imperativos não éticos, interesses pessoais, vantagens financeiras, lutas pelo poder, exercícios do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opção por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação a situações existentes.
Discursos designativos, não raramente, ocultam intencionalidades no sentido de exercer um domínio sobre as mentes, firmar consensos, enfim, exercer poder sobre pessoas.
Para muitos católicos, fica mais fácil entender o que diz o Cardeal Burke, o Cardeal Brandmüller ou o Cardeal Müller. Mais difícil resulta captar o sentido das palavras do Papa Francisco, que contêm sempre algum tipo de questionamento. Fica mais fácil dispensar um pensamento mais aprofundado, seguir a rotina de palavras sempre repetidas, dizer as coisas de sempre (e se deixar enganar). Resulta bem mais difícil refletir sobre as palavras de um Papa que diz que Lutero talvez não se tenha equivocado, o Islã pode ser uma ‘verdadeira religião’, o divorciado pode participar da eucaristia, o celibato pode ser questionado, a mulher merece um lugar mais importante na igreja, há aborto e aborto, a união entre homossexuais não é, em si, pecaminosa, etc.
Não é pouca coisa poder contar com um Papa que segue a velha sabedoria anarquista!
02.10.12
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.