A epistemologia é o estudo crítico da Ciência, inclusive de suas atuais (ou futuras) subdivisões, princípios, meios (métodos e instrumentos) e resultados das pesquisas científicas, oportunizando uma necessária e continua reflexão sobre seus fundamentos lógicos, valores, alcances, objetivos e aplicações. Portanto, a Epistemologia é a teoria ou a filosofia do Conhecimento, ou da produção do Conhecimento, devendo oferecer reflexões quanto ao porque, por quem, para quem, para quê, como, sobre quem ou sobre o quê, o conhecimento científico está sendo criado/produzido, e a respeito do processo do desenvolvimento da atitude científica e do pensamento científico, que é criativo, lógico e crítico.
A primeira consideração que merece ser feita é a de que a Ciência deveria ser um instrumento do desenvolvimento da Humanidade, em todos os seus aspectos. E a produção do conhecimento deveria ter como seu principal objetivo a melhoria de vida e o bem-estar de toda humanidade, em todas as suas dimensões (biológicas, emocionais, socioeconômicas), permitindo a vivência plena da experiência existencial e o equilíbrio e preservação de nossa Biosfera.
Em verdade, é inegável que a Ciência contribuiu enormemente para o aperfeiçoamento das condições de vida das sociedades modernas. Entretanto, como ela é feita por seres humanos, possui as mesmas qualidades e defeitos destes, e a pesquisa científica é feita à imagem e semelhança dos que nela trabalham sendo, portanto, necessariamente limitada e imperfeita. Em outras palavras, isso significa que a interpretação de qualquer fenômeno, independentemente da técnica e do método utilizado, é fortemente influenciada pela formação intelectual, filosófica, religiosa, econômica, social, política e existencial do pesquisador/cientista, valendo a pena abrir um parêntese para lembrar Rui Barbosa que certa vez afirmou que o “Homem é o erro a procura da verdade”.
Na produção do conhecimento devemos ter o cuidado de não cair na tentação de cultuar personalidades – muitas vezes trabalhadas pelo marketing científico, político, ideológico e econômico – comumente descritas como seres superiores, míticos, quase “não humanos”. Tal reverência personaliza um processo, uma atitude e uma prática que deve ser universal e acessível a qualquer pessoa. Aqueles que lidam com o conhecimento científico, seja produzindo, aplicando ou divulgando, têm que ter em mente que pesquisadores/cientistas são, em sua maioria, pessoas inteligentes – alguns brilhantes e geniais- mas por outro lado, também são, em número não desprezível, vaidosos, egoístas, arrogantes, sabidos, competitivos, dissimulados, carreiristas, maquiavélicos, venais e ávidos de poder e dinheiro. Isto é, humanos, demasiadamente humanos.
Ainda voga a máxima de Epiteto (ou Epicteto), filósofo grego, estoico, que viveu grande parte de sua vida como escravo, em Roma: “As aparências para a mente são de quatro tipos: as coisas ou são o que parecem ser; ou não são e nem parecem ser; ou são, e não parecem ser; ou não são, mesmo assim parecem ser. Identificar corretamente todos estes casos é a tarefa do homem sábio”. Portanto, é necessário tentar medir o que é mensurável e tentar tornar mensurável aquilo que não o é, mas com todo o cuidado para não cair nas “armadilhas” da metodologia científica e de suas limitações para entender a complexa e maravilhosa realidade. Nunca é demais lembrar que esse conjunto de normas, regras e procedimentos resultam numa linguagem universal que, como um novo vernáculo, pode ser aprendida por qualquer um, não sendo necessário nenhum pré-requisito ou atributo especial.
Além disso, é importante se ter em mente que o método científico pode até ser considerado um instrumento politicamente neutro, mas é a política que define como o instrumento científico vai ser usado. Portanto, a Ciência deveria ser neutra, mas não o é, assim como não o são os autores e pesquisadores/cientistas, por maior que seja o compromisso ético e cientifico. E eles podem influenciar/enviesar uma pesquisa em todas as suas fases, por mais que sua vontade não seja essa.
Ademais, é valoroso ter a clareza de que um grande número de interesses está envolvido na produção, na transmissão e na utilização do conhecimento. E o fator econômico é um dos que mais fortemente influencia, devendo sempre ser considerado como uma possível fonte de tendenciosidade já que, na maioria das situações, “quem paga a banda escolhe a música” e “quem toca a flauta escolhe o tom”. Além disso, deve-se ter sempre em mente a seguinte frase: “todo verdadeiro pesquisador/cientista pode até se influenciar por correntes de pensamento ou por autoridades científicas, políticas ou religiosas. Mas nunca deve deixar-se dominar ou escravizar-se por elas”.
É relevante ter a compreensão de que as verdades científicas são provisórias e evoluem com o tempo, devido às novas descobertas da própria Ciência, pois ela, como tudo no Universo, é dinâmica e está em constante mudança. Por conseguinte, a Ciência não permite dogmas e uma verdade científica deve ser questionada e discutida todo momento. Ela jamais pode se tornar algo indiscutível ou dogmatizado. A dúvida sobre o que está sendo informado/apresentado é de suma importância na busca da “verdade científica provisória”, pois como dizia Cícero, o grande tribuno romano, “dubitando ad veritatem pervenimus”, isto é, duvidando, chegamos à Verdade. Em verdade, a dúvida, a crítica e a curiosidade devem ser consideradas três dos principais pilares da Ciência, inclusive porque nem tudo que é questionado pode ser modificado, mas nada será modificado até que se questione (James Baldwin).
Para ser, realmente, um homem ou uma mulher da Ciência, não se pode ter medo ou receio de fazer nenhum tipo de indagação. Mesmo as mais simples ou aquelas aparentemente descabidas, porque todo pesquisador deveria ser um curioso nato, um crítico, um irrequieto e um questionador. Portanto, todo/a pesquisador/a, todo/a cientista, tem que ser um Livre Pensador/a que reinterpreta e repensa a realidade, diuturnamente, com os novos instrumentos que o Conhecimento, a Ciência e a Tecnologia, sempre em construção, lhe oferecem. O desenvolvimento científico só pode ser realizado se você for capaz de questionar o Conhecimento já produzido e disponível. Portanto, a incredulidade e o cepticismo são dois excelentes companheiros de um bom pesquisador/a e a máxima “ainda não sabemos o suficiente”, deve ser a “estrela guia” de todo pesquisador/a que já atingiu sua maturidade científica.
É pertinente ressaltar que a Ciência é conservadora. Deste modo, as ideias originais têm uma maior chance de serem rejeitadas e, frequentemente, quando há uma descoberta, os pares inicialmente se opõem impetuosamente a nova verdade e, depois, muitas vezes, tentam monopolizá-la. Além disso, os seres humanos, a miúde, se mantêm na ignorância por causa de sua intolerância com o novo e de sua tendência a só crerem no que desejam crer (“pós-verdade”). E também não custa lembrar que a arrogância é uma característica dos ignorantes e, principalmente, dos “semieruditos”. Os sábios são sempre simples por que sabem que nada sabem ou sabem que sabem muito pouco.
Portanto, dentro desta abordagem epistemológica pragmática, vale a pena lembrar que não existe nada mais difícil de fazer, mais perigoso de conduzir ou mais incerto sobre o seu sucesso que tomar a liderança na introdução de uma nova ordem de coisas (Maquiavel), inclusive dentro da academia, particularmente na produção do conhecimento. E a história da Ciência está pontilhada de seres humanos que foram desprezados, perseguidos, condenados e, até mesmo, mortos por suas opiniões científicas, que iam de encontro à visão hegemônica do momento histórico, como, por exemplo, Copérnico, Giordano Bruno e Galileu Galilei.
Desta forma, para se tornar um verdadeiro cientista, além da intuição e da razão, é preciso coragem. E para se tornar digno do “apelido” de pesquisador ou cientista você deverá, na tentativa de compreender a realidade e seus fenômenos, ser sempre “um ponto de interrogação ambulante”, jamais aceitando que a Ciência atingiu o mais alto patamar em qualquer área do Conhecimento, pois o “novo” sempre vem.
Vale lembrar que um verdadeiro cientista não tem vergonha de mudar de opinião e, no setor Saúde, não confunde “valor estatisticamente significativo” com “risco versus benefício” e “custo versus benefício”, pois muitas vezes, mesmo não tendo significância estatística a intervenção é valorosa, sendo que o contrário também é verdadeiro. Na realidade, o valor da significância estatística apenas indica a chance de o acaso ser o responsável pelos resultados encontrados. E muitas boas intervenções não são empregadas porque ao invés de 95% de certeza que os resultados não eram obra do acaso, só se tinha 94%. Seria cômico se não fosse trágico, pois não é raro que intervenções de excelente custo-benefício-malefício sejam desprezadas por causa de um “dogma” estatístico, mal interpretado por muitos pesquisadores na área da saúde.
É importante lembrar que na construção do Conhecimento, a princípio, toda a hipótese é válida, pois uma hipótese pode até ser menos ou mais plausível, porém nenhuma pode ser descartada até ser testada, porque ganhar na loteria também é implausível, mas acontece quase toda semana. Portanto, uma mente aberta, sem rígidos padrões, dogmas e pré-conceitos, ajuda o raciocínio científico. Isso nos indica que no ambiente científico não se deve utilizar vocábulos ou expressões como: “óbvio”, “está na cara”, “absurdo”, “ridículo”, “nunca” e “sempre”.
Atenção: a competição dentro da Ciência é feroz e existem grupos (e instituições/empresas) que dominam os Encontros/Congressos Científicos e a maioria das revistas científicas. E para a publicação de um artigo científico sempre existe uma arbitragem (formada por pares, isto é, por outros pesquisadores), geralmente competente, mas também competidora. É também pertinente e valoroso chamar a atenção de que não existe pesquisa ou trabalho científico perfeito. Mas algumas vezes, trabalhos e pesquisas são recusados apenas para permitir a publicação de um concorrente ou impedir o compartilhamento de uma informação que fere interesses. Além disso, quando você não faz “parte da turma”, há sempre boas razões para a recusa de seus trabalhos, pesquisas e ponto de vista.
Mesmo no meio científico e acadêmico, se faz necessário lutar contra a ignorância, a má vontade e “brigas pelo poder”. Dessa forma, em uma linguagem popular, poderíamos dizer que a Ciência é “complicada”. E apesar de também estar ligada a filosofia, uma boa parte dos pesquisadores/cientistas não nutre muita simpatia pela Sabedoria, que pode ser definida como o Conhecimento a serviço do desenvolvimento pleno do ser humano e da humanidade.
Jamais devemos nos esquecer do aforisma de Francis Bacon: “saber é poder”! E o potencial de “saber” da atual da Ciência é incomensurável, e o conhecimento científico vem sendo produzido numa escala exponencial. Infelizmente, esse saber serve tanto para a beneficência quanto para a maleficência, individual ou coletiva. Entretanto, apesar da Ciência e da Tecnologia não serem neutras, como dito anteriormente, elas não podem nem dever ser “satanizadas”. Mas é importante que haja um mínimo de controle social, coletivo e externo, sobre a produção do conhecimento e seus atores. Um dos possíveis caminhos são os Comitês de Ética em Pesquisa e de Bioética que tentam proteger não só os participantes de uma pesquisa, mas também a própria Humanidade e a Biosfera, visando aumentar beneficências, diminuir riscos (individuais, coletivos e também para os ecossistemas) e valorizar o Princípio Bioético da Justiça e o da Precaução. Esse último nos diz que a ausência de evidência de risco não significa a evidência de ausência do mesmo. Portanto, quando “se faz” Ciência, todo cuidado é pouco, e não se pode dar chance para que uma maleficência ocorra. É importante nunca esquecer a “Lei de Murphy”: aquilo que pode dar errado, dará errado!
Seja qual for o caminho que sigamos, vale lembrar que o mais importante é o ardente desejo de encontrar a Verdade e que, através da educação, o homem se supera. Também não custa recordar que um intelectual, um erudito, um Livre Pensador/a, um homem/mulher da Ciência que não milita e não se torna uma ativista na luta por um mundo melhor é, absolutamente, um desperdício para a sociedade e para a Humanidade.
Além disso, os pesquisadores e acadêmicos devem se esforçar para que a discussão, na busca da “verdade provisória”, seja menos erística e ardilosa e mais amorosa, tolerante e, principalmente, respeitosa como o divergente. Em realidade, num debate de ideias, apenas três coisas podem acontecer: ou você solidifica a sua visão, ou a aperfeiçoa ou a modifica totalmente. Portanto sempre ouça, reflita e agradeça o ponto de vista diametralmente oposto ao seu, inclusive num debate científico, pois só através das diferenças e do contraditório podemos evoluir.
Finalizando essas considerações epistemológicas pragmáticas, podemos afirmar, como dizia Bertrand Russel, que o grande problema do mundo é que os bobos e os fanáticos estão sempre absolutamente convictos de suas posições, enquanto os sábios estão cheios de dúvidas.
ps: todo fanatismo é filho da ignorância. Inclusive o “fanatismo científico”.
Obs: O autor é educador, Livre-Pensador, profissional de saúde, professor universitário, pesquisador, escritor, gestor de Políticas Públicas e militante/ativista da Bioética, do Humanismo e Da Inclusão Científica.
Formado pela UFRJ, é Ph.D pela Universidade de Leeds-Inglaterra, e membro das Academias Pernambucanas de Ciências e de Medicina.
Foi Secretário Executivo de C&T e Ensino Superior do Estado de Pernambuco e Secretário Executivo de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco.
É autor dos livros Ética, Bioética e Humanismo na Pesquisa Científica; Contribuição ao Conhecimento; Iniciação em Pesquisa Científica; Flunático: fluminense fanático e lunático, Um Outro Mundo é Possível (2021) e criador da aula espetáculo Somos Todos Cientistas.
Atualmente é Coordenador do Curso de Medicina da UPE e membro da Câmara de Bioética do CREMEPE.