Falar da igreja católica é falar de uma história de longa duração. Ora, a ‘história de longa duração’ se caracteriza pelo fato de criar nas pessoas ideias, comportamentos e imagens que resistem à mudança, ou seja, a longa duração é conservadora. O tema é vasto e vou me deter apenas em três datas da história antiga do cristianismo (150; 325 e 410), para depois passar logo para uma data muito recente: 1960. É evidente que há possibilidade de trabalhar com outras datas significativas, pois há muitas maneiras de abordar o assunto. Serão cinco pontos: 1. O ano 150: palavras que não colam; 2. O ano 325: a sedução da corte; 3. O ano 410: a formulação do projeto católico; 4. O ano 1960: a desobediência da mulher; 5. O desafio atual. 1. O ano 150: palavras que não colam. Há como descobrir traços da atual igreja católica, como instituição, na história dos três primeiros séculos do movimento de Jesus? Os que tentam descobrir esses traços com a devida honestidade intelectual têm de reconhecer: os documentos disponíveis não correspondem às nossas perguntas. As palavras não colam. Isso se deve ao fato que fazemos perguntas a partir de uma igreja enorme, de mais de um bilhão de adeptos, e os documentos não respondem. Por volta do ano 150, quando emerge uma literatura cristã com certa envergadura, autores como Justino, Atenágoras, Barnabé e o autor anônimo da carta a Diogneto, não respondem aos questionamentos de hoje. Eles não falam em ‘religião’. Na carta de Tiago se lê: ‘o culto puro e sem mácula consiste em assistir a órfãos e viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo’ (1, 26). O termo grego utilizado por Tiago não corresponde ao nosso termo ‘religião’ (o que não fica claro na maioria das traduções), mas significa devoção, culto. Tiago escreve que os cristãos não praticam algum tipo de culto que os distinga dos demais. Esses autores recorrem a termos como ‘caminho’, ‘modo de vida’, ‘escola filosófica’, ‘seguimento’, vida ‘fora da cidade’ ou ‘fora das portas’ (na carta aos hebreus) para designar o movimento cristão. O termo ‘papa’, por exemplo, não corresponde ao que hoje entendemos quando falamos em ‘papa’ . Para os observadores de fora, os cristãos são ‘ateus’, ou seja, não participam de cultos programados pela administração do império. Desde o início ficou claro que não é fácil compreender a originalidade do projeto de Jesus . Marcião, no século II, afirma que nem todos os apóstolos entendiam Jesus. O mesmo se pode dizer de muitos cristãos hoje. Enfim, não encontramos a igreja católica nos escritos dos três primeiros séculos. A árvore genealógica’ do cristianismo, com um tronco do qual derivam as diversas confissões cristãs de hoje, não corresponde ao que os documentos dos três primeiros séculos nos informam. O que existe é a formulação e concretização de diversos projetos, todos provisórios, passageiros e incompletos, inspirados no evangelho de Jesus. Não existe uma linha de continuidade entre o projeto de Jesus e a igreja bizantina (ortodoxa) e, depois, católica, ou ainda protestante, etc. Jesus não fundou uma instituição religiosa. 2. O ano 325: a sedução da corte O ano 325 pode ser considerado a data de fundação da igreja ortodoxa, que por sua vez gerou a igreja católica em 1054. Nesse ano, bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, são acolhidos com todas as honrarias na própria residência de verão do imperador em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que está em plena construção. O fato é estranho e os primeiros a estranhar o ambiente são os próprios bispos. Quem não estranha nada é o imperador Constantino. Ele sabe o que faz. Não sabemos ao certo em que condições e quando os líderes do movimento foram atraídos por agentes imperiais e entraram aos poucos em contato com a corte romana. O que sabemos é que o imperador Constantino oferece aos bispos sua residência de verão para que eles aí realizem sua assembleia geral (325). O que ele tem na cabeça? Ao que tudo indica, Constantino percebe que a política de seu predecessor Diocleciano tem de ser interrompida. Ele observa com apreensão o surgimento, em muitos setores da administração, do chamado modelo egípcio (‘faraônico), ou seja, de um retrocesso a formas ditatoriais e totalitários. O novo imperador vê nisso um perigo para o tradicional ideal romano de cidadania livre (‘politeia’), calcado na polis grega. Ele procura forças vivas, de alto padrão ético, capazes de reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por corrupção e falta de ética e é nesse sentido que ele resolve mudar radicalmente a política diante de movimentos como o cristianismo. Em vez de perseguição vem o acolhimento. Há um relato do historiador Eusébio de Cesareia que mostra o impacto da coisa na mente dos bispos. Eles são tratados como senadores do império e ficam muito impressionados. Leio o texto para vocês: ‘Destacamentos da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do reino de Cristo, de um sonho, em vez da realidade . Eis um texto precioso, que flagra o momento exato em que tudo muda. Os mais diversos termos são utilizados pelos historiadores para descrever esse momento histórico. Uns falam em constantinismo, cesaropapismo, cristandade, outros em triunfalismo e cristandade. Uma formulação que me parece particularmente apropriada é inspirada num ensaio escrito em 1933 pelo sociólogo Norbert Elias, que tem como título: ‘A sociedade de corte’ . Elias não focaliza Niceia em tempos de Constantino, mas Versailles (subúrbio de Paris) em tempos do rei Luís XIV, às vésperas da revolução francesa. Ele faz da corte um paradigma histórico que volta ao longo de toda a sua produção literária: ‘O processo civilizador’ (Zahar, Rio de Janeiro, 1990-1993); ‘A sociedade dos indivíduos’ (Zahar, 1994), ‘Os estabelecidos e os outsiders’ (Zahar, 2000). Os temas são muito sugestivos e Elias analisa a luta pelo prestígio, a maledicência, o ritual, as cerimônias, o protocolo, o bom comportamento, a adulação, a arte de falar, a divisão do mundo entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’ (os outsiders), o papel do bobo na corte, etc. Ora, em Niceia o cristianismo vira uma ‘sociedade de corte’. Quem segue a maneira de trabalhar de Elias não fala mais em termos gerais como evangelização, missão, igreja missionária, cristandade. Ele vai direto à vida vivida. A coisa mais importante de Niceia não é o Credo, mas o impacto psicológico causado nos bispos pela brusca mudança na política imperial. Depois da perseguição de Diocleciano vem o aconchego de Constantino. Os bispos mudam: de simples, rudes, espontâneos, sinceros, soltos, diretos, eles se tornam em pouco tempo suaves, polidos, civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar, aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Enfim, mudam de hábito (no sentido original do termo). Paulo de Samósata (260-272), o primeiro bispo ‘cortês’ da história do cristianismo, já forma em seu redor uma pequena corte, miniatura da corte romana. Claro, não há só fascínio. Os bispos passam a desfrutar de residências melhores, meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas e igrejas. Mas a principal novidade consiste na aprendizagem das regras da corte. Apresento aqui sete pontos em que há ruptura flagrante entre o movimento de Jesus dos três primeiros séculos e a igreja católica do século IV por diante. Aparecem novas palavras, uma nova linguagem, novas vestes, uma nova administração, nova política, nova disciplina e nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida, não se pode dizer tudo. (1) Novas palavras. Aparece uma nova palavra no vocabulário cristão: ‘religio’. Ela provém da diplomacia imperial, não é bíblica nem encontra sua equivalência na cultura helenística. O termo ‘religio’ indica o culto ao imperador. Por meio dele, o imperador penetra no mundo sagrado e adquire uma autoridade inconteste. O cerne da questão é de ordem imaginária: divide-se espaço da vida em dois campos, o sagrado e o profano. As pessoas vivem a vida de cada dia no campo profano, ou seja, fora do templo, que é a imagem do mundo sagrado. O termo latino ‘pro fanum’ significa ‘anterior ao templo’. Mas quando elas se dirigem ao templo, penetram num campo sagrado. Trata-se de uma antiga metáfora religiosa, que a diplomacia imperial romana transforma em instrumento político. Muitos líderes cristãos caem na armadilha e aceitam a distinção entre profano e sagrado, o que aumenta sua autoridade junto ao povo. No mundo sagrado, os termos são superlativos: santíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo. Isso ainda se verifica na missa de hoje: quando o sacerdote diz ‘oremos’, ele costuma ler palavras superlativas: ‘Deus todo-poderoso e onipotente, olhe com benevolência…’. O mesmo se verifica nas primeiras palavras do símbolo de Niceia: ‘Creio num só Deus, pai onipotente, criador do céu e da terra…’. (2) Nova linguagem. Essas novas palavras fazem parte de uma nova linguagem, baseada na divisão entre o profano e o sagrado. Os líderes das comunidades se tornam ‘ministros sagrados’. Quanto ao apóstolo Pedro, ele se transforma em sacerdote. De pescador e (depois da colaboração com Jesus) exorcista de sucesso, Pedro se torna ‘pontifex’ no decorrer do século IV. Ainda no século III, o escritor cristão Tertuliano usa o termo como um insulto (em seu tratado ‘De pudicitia’). Ele chama o bispo de Roma ironicamente de ‘pontifex romanus’, como quem diz: ‘tenha vergonha, você se comporta como um pagão!’. Mas no século IV, a sensibilidade muda completamente. Pedro é pontificado, entronizado e revestido de vestes sacerdotais, faz seu introito na basílica e se dirige à ‘cathedra Petri’, o trono de onde distribui bênçãos com benevolência. Doravante, os bispos são ‘sucessores dos apóstolos’, conforme construção literária do historiador Eusébio de Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua história eclesiástica, elabora longas listas ‘dinásticas’ para as principais cidades, criando a imagem de uma ‘sucessão apostólica’ e dinástica ininterrupta, que atravessa os séculos. (3) Novas vestes. No século IV, a veste talar faz sua entrada no cristianismo. Até Jesus ganha uma roupa que o cobre até os pés. Um afresco na catacumba de São Calisto, em Roma, do século III, ainda apresenta Jesus como o bom pastor, vestido por uma túnica que vai até os joelhos e deixa pernas e braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão direita as pernas de uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma chaleira, caldeira ou panela, provavelmente para preparar alimentos. Depois do século IV, esse Jesus da vida diária nunca mais aparece. Os bispos herdam dos sacerdotes de Mitra as suas mitras (o termo ficou até os nossos dias). Mas o importante mesmo é a veste talar. (4) Nova administração. Impressionados com as facilidades organizatórias, os bispos embarcam na política romana de unificação do império. Eles combatem as heresias e qualquer ameaça à unidade do império. A igreja adota o modelo diocesano, ou seja, divide o universo cristão em ‘territórios’. A diocese é uma opção administrativa fundamental, pois ela possibilita a implementação do grande projeto católico no século V. Outro procedimento administrativo consiste na divisão entre clero e laicato, ou seja, na separação entre ‘os de dentro’ e ‘os de fora’ (os outsiders). O leigo é o outsider do sistema católico. Quem quiser entender melhor como isso funciona leia o livro de Norbert Elias ‘os estabelecidos e os outsiders’. (5) Nova política. No século IV, os clérigos cristãos se engajam numa árdua luta com os sacerdotes da oficialidade romana. Eles não se sentem integrados nem devidamente respeitados e, para ter mais força, se unem numa corporação. Doravante a igreja será uma corporação clerical, dentro da qual vigoram os comportamentos da corte: Alguns historiadores chegam ao ponto de afirmar que essa capacidade ‘cortesã’, que implica na arte de enganar, caracteriza a cultura ocidental como um todo. Assim, num ensaio estimulante, Todorov mostra, em seu ensaio sobre a ‘conquista’ do México, como o espanhol Hernan Cortez consegue enganar o líder azteca Montezuma. Essa capacidade teria sido fundamental na colonização da América latina . (6) Nova disciplina. Disciplinar do riso é um dos requisitos fundamentais da vida na corte, onde o riso é entendido como entretenimento, relaxe, diversão. É o riso do ‘bobo na corte’, que ganha seu pão divertindo o público e fazendo com que as cerimônias na corte sejam menos entediadas. Segundo o intelectual cristão Clemente de Alexandria, o cristão ‘sério’ não grita, não se altera, não ri. Mais tarde, João Crisóstomo chega a afirmar que Cristo nunca riu . Em geral, nos escritos dos padres da igreja, o tema do prazer e da expansão dos sentimentos é abordado de forma negativa. Os cristãos se educam antes para o sofrimento do que para o prazer, ficam mais ocupados com afazeres intelectuais e espirituais do que com os carnais. Em seu romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário de um mosteiro medieval bem sabe que ‘o riso é incentivo à dúvida’ (p. 159 da edição brasileira) e não permite que os jovens monges discutam sobre o riso de Cristo. Os monges não podem conhecer o Cristo brincalhão, só no arquivo secreto da biblioteca se guarda sua memória. Pois Jesus alegre contradiz a sisudez do abade, do bispo e do papa. Inútil dizer que tudo isso pode desembocar em regimes políticos de feição tensa e punho fechado, braço levantado e bandeira erguida. Depois de visitar Adolfo Hitler em 1938, o escritor americano Henry Miller anotou no seu diário: ´Aqui as coisas andam mal. O homem não sabe rir´. É dentro desse contexto que germina a ideia do seminário, um dos maiores sucessos da história do catolicismo. O seminário visa antes de tudo o autocontrole, que no fundo pertence à educação da da classe A. Os trabalhos de Peter Brown mostram que o controle do corpo , que desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no sentido de rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior. O cidadão de classe superior tem de mostrar superioridade diante dos escravos e dos empregados por meio do autocontrole. (7) Nova liturgia. Entrando na corte, a liturgia cristã se ‘teatraliza’, ou seja, deixa de ser comunitária e imita o cerimonial romano. Isso repercute imediatamente na arquitetura das igrejas, que parecem antes salas de teatro que casas comunitárias. A primeira basílica cristã, a Hagia Sofia de Constantinopla (hoje Istambul), é uma sala de teatro. Por sinal, até hoje as pessoas falam em ‘assistir à missa’. O aspecto mais negativo da teatralização da liturgia consiste no fato que ela deixa o indivíduo isolado. A liturgia deixa de criar laços, como se pode verificar nas famosas missas do papa dos dias de hoje. 3. O ano 410: a formulação de um projeto ‘católico’. Até agora tratei da reviravolta operada no seio do cristianismo pela política do imperador Constantino. Um ponto seguinte consiste em considerar como se formula um projeto que merece o nome de ‘católico’, ou seja ‘universal’. Esse projeto é igualmente resultado de condicionamentos históricos. Em 410, Roma, a invicta e invencível cidade eterna, é tomada pelas tropas de Alarico, o visigodo, e saqueada por três dias (os dias 24 a 26 de agosto de 410 ficam por muito tempo gravados na memória). A vítima é a imensa população escrava que ficou na cidade, pois os ricos fugiram para longe. É um desastre. A população da cidade cai bruscamente de um milhão a 200 mil. Lactâncio, autor cristão, atribui o desastre à ‘ira de Deus’, e muitos concordam com ele. O rumor atinge o norte da África, onde o talentoso escritor Agostinho é bispo da pequena cidade de Hipona. O bispo se sente tão impressionado pelo quadro do mundo de referências que desmorona diante de seus olhos, que se dedica durante quinze anos à elaboração de uma obra gigantesca em 22 livros: a ‘cidade de Deus’. Essa cidade é um sonho grandioso da salvação da humanidade depois da queda de Roma, identificada com a ‘cidade do homem’, a cidade de Caim, marcada pelo sinal indelével do pecado (original), caminha para a perdição. Enquanto isso, os peregrinos da ‘cidade de Deus’, a cidade de Abel, ou seja, a comunidade dos justos desde Abel até o final dos tempos, caminham para a salvação. Os da cidade de Caim andam à toa, pois só buscam o poder e a glória, enquanto os habitantes da cidade de Abel peregrinam, em meio a muitas dificuldades, em demanda da vida eterna na presença de Deus. Uma imagem fascinante, que perdura até hoje em muitos ambientes eclesiásticos. O atual papa, por exemplo, pensa como Agostinho, ele também vê a igreja católica como uma luz de santidade em meio à perversidade do mundo. Agostinho é um sonhador, ele não se preocupa com as questões administrativas que a eventual transformação de seu sonho em projeto político poderia acarretar. Não enxerga, por exemplo, que na ‘cidade de Deus’ não há espaço para a liberdade, pois tudo está baseado na obediência. Leiamos uns trechos da obra de Agostinho, pois eles dizem mais que os melhores comentários. – ‘A paz da cidade é a concórdia bem ordenada dos cidadãos na obediência. A paz é a tranquilidade da ordem. Essa ordem é a disposição de seres desiguais, que indica a cada um o lugar que convém. Os miseráveis, que são infelizes, certamente não têm a paz, não gozam da tranquilidade da ordem. Mesmo assim, não podem ficar fora da ordem. Pois, caso se revoltem contra a lei pela qual se rege a ordem natural, serão mais infelizes ainda’ (Cidade de Deus, livro 19, capítulo 13, 1). – No capítulo 16 do mesmo livro, Agostinho trata da ‘paz doméstica’. E escreve: ‘Se, na casa, alguém perturba a paz doméstica por sua desobediência, deve ser corrigido por palavras ou chicote (chibata), por todo castigo justo e legítimo, em conformidade com o que a sociedade humana permite, e fim de conduzi-lo de novo, em seu próprio interesse, à paz da qual se separou’ (19, 16). – A igreja é um instrumento de educação das massas. Eis como Agostinho se dirige a ela: ‘É você que educa e ensina. Você submete as mulheres aos seus maridos por uma casta e fiel obediência. Você confere aos maridos autoridade sobre suas mulheres. Você submete as crianças aos seus pais por uma espécie de servidão e coloca os pais acima das crianças numa piedosa dominação. Você ensina aos escravos a respeitar seus amos, não tanto pela necessidade de sua condição como pelo charme do dever. Você ensina aos reis como vigiar sobre os povos e adverte os povos a se submeterem aos reis’ (De moribus ecclesiae catholicae, 1, 30, 63). Com o tempo, Agostinho se agarra sempre mais à ideia da obediência salvífica, a tal ponto que nos últimos quinze anos de sua vida ainda se mete numa infeliz disputa com o monge Pelágio, que defende a liberdade. O grande escritor se afunda no fundamentalismo e termina sua vida no amargor, como se pode verificar lendo as Confissões. Mesmo assim, as lideranças católicas se empolgam com Agostinho, pois ele confere uma aparência de legitimidade ao que de fato acontece na igreja em termos de dominação e poderio. No entusiasmo do momento, poucos percebem que a ‘cidade de Deus’ é na realidade uma cópia da sociedade imperial romana, onde os súditos obedecem e se submetem à vontade dos governantes. Historicamente, o sonho de Agostinho se concretiza na paróquia. A paróquia é a expressão mais clara do projeto católico. O viajante pelo interior da Europa pode observar como as casas, nas aldeias, se agrupam em torno da igreja paroquial. Parecem pintinhos em baixo das asas da galinha. O ‘pastor’ cuida das ovelhas (os paroquianos) e os defende diante dos perigos de fora. A paróquia é uma defesa, ela é defende a ‘cidade de Deus (dos seguidores de Abel)’ diante dos ataques da ‘cidade de Caim’, que são os judeus, islamitas, vagabundos e heréticos. A paróquia não é feita para acolher os que pensam de forma diferente, e é por isso que constitui um contra-senso falar em paróquia missionária. O paroquiano é o contrário do missionário, ele tem um comportamento defensivo. Na paróquia, as pessoas se acomodam a uma vida na obediência. Quem não aguenta essa vida vai para a cidade. Já na idade média, a cidade se torna um refúgio dos que não agüentam viver ‘em baixo da torre da igreja’. Há um ditado alemão que expressa bem isso: ‘Stadtsluft macht frei’ (o ar da cidade liberta). Não é, pois, unicamente por motivos econômicos que as pessoas procuram a cidade. Ainda nos dias de hoje, há quem foge da prisão paroquial e procura a cidade. O filme ‘Meia-noite em Paris’, de Woody Allen, mostra como Paris, ainda no século XX, é um refúgio de artistas e intelectuais que não agüentam o ar sufocante do mundo paroquial (Picasso, Buñuel, Henry Miller e muitos outros). Nem Nova Iorque escapa inteiramente ao ‘espírito paroquial’, ela não cria o mesmo clima de liberdade que se vive na cidade de Paris. As virtudes da paróquia são as virtudes feudais: fidelidade até a morte, coragem (imagem da espada), proteção ao fraco (cavaleiro medieval), voto perpétuo. A cruz e a espada, as duas espadas, a cruzadas, o bom combate contra os hereges, luta, fraternidade, lealdade, o rei sagrado (padre, bispo, papa). A paróquia é uma távola (tabula) redonda do rei Artur, ou seja, do vigário. Aí Parsifal, Tannhäuser, Tristão (e Isolde), Orlando, Sigfrido são os leigos engajados, destemidos, totalmente dedicados à boa causa. Eles defendem as ovelhas contra os perigos de fora. 4. O ano 1960: a desobediência da mulher. Demorei em escolher uma data que pudesse apresentar aqui a ruptura com o modelo agostiniano. Figuras não faltam: Lutero, Spinoza, Nietzsche, mesmo o teólogo recém-falecido José Comblin. Finalmente optei por apresentar o que aconteceu no ano 1960, pois se trata de um fato que em minha opinião é da maior relevância: a desobediência da mulher. Para entender o que aconteceu em 1960, recorremos mais uma vez à ‘história de longa duração’. A imagem da mulher construída pela igreja ao longo dos séculos está ligada à imagem de Maria ‘mãe de Deus’, tal qual emerge no ano 431 em Éfeso. Os bispos estão reunidos para tratar de temas da igreja e se defrontam com o fato que o povo venera Maria usando uma expressão que não lhes soa bem: ‘Maria mãe de Deus’. Além de não ter base no novo testamento (onde a figura de Maria não é realçada), essas palavras designam a deusa pagã Cibele. As minutas (anotações redigidas na hora) registram longas discussões em torno desse ponto. Os bispos chegam a discutir sobre como acentuar o termo grego ‘theotókos’. Uns dizem que Maria é ‘theotókos’, ou seja, ‘criada por Deus’, outros que ela é ‘theótokos’, ou seja, ‘genitora de Deus’. Mas, finalmente, eles se rendem diante da força da religiosidade popular. E com razão: caso não aceitem ‘Maria mãe de Deus’, os bispos arriscam perder o contato com o povo. Afinal, o que é um bispo sem a religiosidade popular? A lição de Éfeso é contraditória: de um lado fica claro que o povo carrega a igreja, mais: que a mulher carrega a igreja. De outro lado, os bispos percebem que a apresentação de Maria mãe não cria problemas para a hierarquia. A imagem de Maria que resulta das discussões em Éfeso é a imagem de virgem e mãe, mas não de mulher que se posicione diante do patriarcalismo reinante. Vale a pena observar aqui que a imagem de Maria, que assimila rapidamente as mais diversas deusas do panteão romano (Isis, Demeter, Cibele, Magna Mater, mas principalmente Isis) não assimila Vênus. A mulher católica é virgem ou mãe. Como mostra a terrível perseguição às bruxas, entre os séculos XIV e XVII, a mulher sexuada é um perigo: mais de 100 mil mulheres morreram em fogueiras como bruxas. Mas no ano 1960, no momento em que o papa João XXIII pensa em convocar um concílio, Vênus faz sua inesperada entrada no recinto católico. As mulheres não obedecem mais aos padres. Elas querem ser donas de seus próprios corpos e encontrar os seus maridos sem pensar em gravidez. No ano 1960, a pílula anticoncepcional oral entra em cena e seu sucesso é imediato. Liberada pelos serviços de saúde pública dos Estados Unidos, a pílula conquista o mundo em poucos anos. O sucesso já dura cinquenta anos. Hoje, no mundo inteiro, cem milhões de mulheres recorrem à pílula ou a outros métodos contraceptivos (camisinha, dispositivo intra-uterino, diafragma, diversos produtos espermicidas). Em 1994, a organização das nações unidas (ONU) aprova oficialmente o planejamento familiar e declara que ele colabora com a saúde e o bem-estar da mulher, dos filhos e da família (conferência do Cairo). Elabora-se uma nova arquitetura do estado com a finalidade de promover saúde, educação, bem-estar das famílias, assim como atendimento médico-hospitalar baseado na ideia da regulamentação dos nascimentos. Enquanto isso, a igreja católica não entende o que está se passando. Já na década de 1940, quando se constata a diminuição da prática sacramental na França, não se faz a ligação com o tema da libertação da mulher. Em 1943, o padre Henri Godin, em seu livro ‘França, país de missão?’, constata com amargura que a França não é mais o país católico de antes, mas não suspeita o que a mulher tem a ver com essa ‘descristianização’. Aliás, ninguém suspeita isso. O sociólogo Gabriel Le Brás atribui o declínio na assistência à missa à secularização, que será por décadas o bode expiatório das análises eclesiásticas. E quando, nos mesmos anos 1960, se constata um rápido declínio de vocações para o sacerdócio, também não se enxerga nisso uma mutação na relação entre jovens e suas respectivas mães. As mães não controlam mais seus filhos como antes, o seminarista se sente mais livre para deixar o seminário. Os primeiros estudos que apontam nessa direção são dos anos 1990 (Drewermann) . Lembra José Oscar Beozzo, o maior especialista do Brasil em Vaticano II, que nenhuma mulher é convidada a ajudar a preparar o concílio Vaticano II e que só na terceira sessão (1964) se admitem algumas ouvintes femininas. Ele escreve: ‘Só no quarto e último período (1965), um casal do México, Luz e Pepe Icaza, presidentes latino-americanos do movimento familiar cristão (MFC), foi arrolado entre os auditores e auditrices conciliares’ . Tudo isso muda rapidamente. Ultimamente aparecem, de forma sempre mais insistente, as ‘incômodas filhas de Eva’, que ‘rompem o silêncio’ (Ivone Gebara) . As religiosas começam a se mexer e a desobedecer também. Recentemente, o vaticano teve a ousadia de mexer com uma importante associação de religiosas norte-americanas e não sei em que isso vai dar, só sei que o barulho é grande. No dia 15 de maio passado apareceu um artigo no New York Times sobre o assunto. 5. O desafio atual Penso que ficou claro que defino aqui a igreja católica como um projeto histórico, surgido no decorrer do século IV e que teve sua formulação magistral no século V. Essa definição da igreja como projeto histórico possibilita uma discussão sobre sua permanência no palco da história. O historiador inglês Arnold Toynbee formulou uma lei da história que me parece interessante para a discussão. É a ‘lei do desafio e resposta’, exposta no final de seu livro monumental ‘Um Estudo de História’ (Martins Fontes, São Paulo, 1986). Depois de estudar o surgimento, apogeu e declínio de 21 civilizações, Toynbee conclui: todo projeto humano é formulado para responder a determinados desafios, o que faz com que seja necessariamente incompleto, provisório e passageiro. Nenhum projeto humano pode aspirar à eternidade. Essa colocação, aplicada à igreja católica, merece duas considerações. Em primeiro lugar, não se trata de desconsiderar aqui o modelo formulado no século V e que funcionou por 1500 anos. Sabemos que esse modelo teve grandes méritos em muitos campos da vida humana. Se não tratei disso em minha exposição, é que meu tema é outro. Em segundo lugar, a questão hoje é de se ver se há condições de reformar o modelo, tornando-o capaz de responder aos desafios do momento. Não se pode responder a tudo, há sempre deficiência, mas penso que a atual situação consiste numa inaptidão generalizada. Voltemos a Toynbee. Seguindo seu raciocínio, a revolução francesa, do final do século XVIII, constitui uma resposta apropriada aos anseios do tempo. Dai seu sucesso. Os povos querem ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, e a revolução responde positivamente. Uma postura totalmente diferente é a do papa, no início do século XIX, quando se opõe às tentativas de Cavour no sentido de unificar a Itália. O papa não consegue corresponder aos anseios do povo italiano, ele luta para preservar os estados pontifícios. Toynbee atribui a derrota do papa nesse caso à ‘embriaguez da vitória’. Por encarnar o poder supremo por tantos séculos, o papado vive num mundo irreal, não sabe mais o que se passa na realidade e isso constitui um sinal de decadência. Seguindo o raciocínio de Toynbee não se sabe o que pode acontecer com a igreja católica. De qualquer modo, aqui não se trata de um drama. Os projetos passam, a história passa. Os projetos humanos são todos provisórios. O sonho de Agostinho deu origem a um grande projeto, que moldou o Ocidente. Mas ficou na contramão do desejo de liberdade hoje se manifesta de mil maneiras. Os tempos mudam e isso é bom. O importante consiste em apoiar as energias positivas que atuam dentro do catolicismo ., da mesma forma em que se devem apoiar as forças vivas existentes no candomblé, na igreja universal do reino de Deus, no pentecostalismo e em todos os projetos que procuram trabalhar para melhorar a vida da humanidade e a sobrevivência do planeta como tal. Hoje, o drama é outro, o desafio é outro. O que importa é que o cristianismo signifique algo para os 50 % da população mundial que vive curvada sob pobreza e miséria. No planeta em que vivemos, 25 mil pessoas morrem por dia de inanição e 16 mil crianças de fome. 852 milhões de pessoas passam fome. As fortunas das três pessoas mais ricas do mundo é superior ao PIB de 48 países. Os 5 % mais ricos ganham 114 vezes mais que os 5 % mais pobres. As pessoas que dormem na rua, as 864 favelas do Rio, as 20 a 25 pessoas que morrem por dia de forma violenta, no Rio, e que nem merecem mais uma menção no noticiário. Isso dá vergonha, isso é o drama. Que entre as 20 cidades mais desiguais do mundo, 5 são brasileiras (Goiânia, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília e Curitiba), eis o que dá vergonha. Que mais de 10 milhões de brasileiros vivem com menos de 39 reais por mês e que a Globo nunca dá esses números, eis a vergonha, eis o apelo para o cristianismo. O drama é que 10 % das pessoas que vivem neste país detêm 75 % da riqueza que o país produz, que 5 mil famílias (1 %) controlam 45 % da riqueza do país. Hoje, é importante dinamizar o cabedal das energias que atuam dentro da igreja católica em benefício da humanidade como um todo e, de forma ainda mais ampla, em benefício do planeta em que vivemos. Apêndices. Apêndice 01: o termo ‘papa’. O termo ‘papa’ é um diminutivo latino que significa ‘paizinho’ e que portanto, tem um sentido carinhoso. É por meio desse termo que o povo de Cartago, por exemplo, se dirige ao bispo Cipriano, em meados do século III. Outro papa desses tempos é o patriarca Atanásio de Alexandria (293-373). No decorrer dos séculos IV a VI se percebe que o termo vai progressivamente ficar reservado ao bispo de Roma e finalmente recebe o sentido técnico que hoje lhe atribuímos. No início do século IV, Eusébio de Cesareia descreve na sua ‘História Eclesiástica’ (2, 14, 6) que Pedro viaja a Roma para combater o ‘mago’ Simão o samaritano. Ele escreve: ‘A providência universal conduziu pela mão a Roma o valoroso e grande apóstolo Pedro, o primeiro entre todos pela virtude. Autêntico general de Deus, munido de armas divinas, trazia do oriente ao ocidente a preciosa mercadoria da luz inteligível’. Sem dificuldade, Pedro (que é um exorcista de sucesso), derrota Simão (15, 1). A narrativa de Eusébio carece de base historiográfica. É verdade que At 12, 17 informa que Pedro, no início do reino de Cláudio (43), vai ‘para outro lugar’, mas, em 49, como informas os mesmos Atos dos apóstolos, Pedro se encontra com Paulo em Jerusalém. Só depois Paulo encontra em Corinto um casal expulso de Roma (Áquila e Priscila). Nas ‘novas histórias da igreja’ (Daniélou e Jedin), escritas no contexto do Vaticano II, Eusébio é qualificado de pouco confiável. Ele comete sistematicamente anacronismos, sendo o maior a lista de bispos monárquico, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica. Na década de 1960, no período durante e depois do concílio, houve uma intensa discussão, na revista Concilium, sobre o chamado ‘primado petrino’. Trabalhei o tema em meu livro ‘A memória do povo cristão’ Apêndice 02. O cabedal de energias dentro da igreja católica. O cabedal de energias que atuam na igreja católica e considerável: 50 % dos cristãos são católicos, 36, 7 % protestantes; 11, 9 % ortodoxos. A igreja (no sentido do Vaticano) dispõe de 1.100.000 de fiéis; 5000 bispos; 450.000 padres; 1 milhão de freiras. Ela mantém relações diplomáticas com 178 estados. O grau de confiança do povo nas conferências episcopais da América latina é alta: 76 % no Paraguai; 78 % na Bolívia e 74 %´ no Brasil. Só no Chile, a confiança do povo na igreja é particularmente baixa: 38 %. (23.12.2012)
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.