I – A família de Deus (Mc 3, 20-35)

Hoje o Evangelho nos apresenta dois textos que, à primeira vista, parecem não ter muito em comum. Sabemos que ambos vieram de tradições orais e que o evangelista Marcos colocou-os juntos, talvez pelo fato de mencionarem, ambos os relatos, os parentes de Jesus. Interessante é que os dois textos, embora tratem de temas aparentemente diversos, levantam questões que só são resolvidas quando confrontados um com o outro. Vejamos.

Na discussão de Jesus com os mestres da lei, estes últimos o acusam de expulsar demônios por força de Belzebu, o príncipe dos demônios. E como eles insistem na acusação, Jesus afirma que todo pecado tem perdão, menos o pecado contra o Espírito Santo. Esta afirmação parece invalidar que Deus seja misericordioso e sempre pronto para o perdão, como demonstram as palavras e as ações de Jesus nos demais relatos evangélicos. Também o texto seguinte apresenta outra dificuldade, pois parece afirmar que qualquer um pode ser irmão de Jesus e pertencer à família de Deus, desde que faça a vontade de Deus, mesmo sem conhecer o próprio Jesus. Isso é possível?

Atribuir ao demônio o que é próprio do Espírito Santo é negar sua existência e se fechar à ação do mesmo Espírito Santo. Numa palavra é recusar o perdão de Deus que nos vem concedido pelo Espírito Santo: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados” (Jo 20, 22s). A recusa a querer ser perdoado é que faz deste pecado um pecado imperdoável: Deus sempre oferece o perdão, mas o pecador não o aceita. Então não pode haver perdão. Respondida esta questão, vejamos a seguinte.

A família de Jesus se constitui por todos aqueles que fazem a vontade de Deus. Esta última nos foi claramente revelada nas palavras e nas ações de Jesus Cristo e pode ser sintetizada no mandamento do amor fraterno, que implica sem mais o amor a Deus. Quem ama seu irmão ama a Deus, sintoniza com o amor de Deus por todos nós. Porém o ser humano não consegue este objetivo com suas próprias forças, experiência que todos fazemos frequentemente. É o Espírito Santo, doado por Deus, que nos capacita a amar nosso irmão, pois toda sua ação em nós é a de nos fazer assumir a vida de Cristo, uma vida voltada para os semelhantes, uma vida de amor fraterno afetivo e efetivo.

Entretanto o Espírito Santo atua não só no interior do cristianismo, mas também em todas as culturas e religiões, como afirmou São João Paulo II em sua Encíclica Missão do Redentor. Portanto fazer a vontade de Deus, mesmo fora da religião cristã, é acolher a ação do Espírito Santo, é assumir a vida de Cristo, é, numa palavra, fazer a vontade de Deus ao ouvir a palavra do Espírito e ao obedece-la.

Encontramos nos membros de outras religiões testemunhos de caridade, de desapego dos bens terrenos, de compaixão pelos sofredores, de vida profissional e familiar exemplares, de piedade sincera, que podemos sem mais atribuir à ação do Espírito Santo. Como já afirmou um antigo teólogo: tudo de bom que se faz no mundo é, afinal, obra do Espírito Santo.

Afirmação importante numa época de tantas divisões provenientes da diversidade de raças, culturas, religiões. Devemos nos acolher mutuamente no respeito à diversidade, devemos juntos colaborar para uma humanidade onde todos possam conviver na paz e na justiça, ajudando-se mutuamente e construindo na história a grande família de Deus. “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.  Não é este o exemplo que nos tem dado o Papa ao acolher refugiados de outras religiões, ao insistir na concessão de vacinas para todos, ao enfatizar a necessidade de uma humanidade mais solidária? Cabe a nós, em nosso limitado espaço e tempo de vida, estarmos abertos ao diálogo, colaborarmos para diminuir as tensões, assistirmos os mais desfavorecidos, pois os enormes desafios postos á humanidade hoje exigem a colaboração de todos em vista de uma solução global. E certamente o Espírito Santo está agindo nos corações para alcançarmos este objetivo. E conta com nossa colaboração. MFM

II – O Reino de Deus em crescimento (Mc 4, 26-34)

A parábola da semente, que cresce sem que o ser humano perceba, ou o minúsculo grão de mostarda, que se transforma num grande arbusto, no fundo expressa a mesma verdade. O Reino de Deus é uma realidade que não pode ser medida ou controlada pelo ser humano. Para alguns estudiosos era a resposta dada por Jesus aos que duvidavam de seu amplo projeto do Reino em vista da pobreza de pessoas e recursos para tal.

Em ambas as comparações o desenvolvimento e o crescimento das sementes fogem ao controle humano porque acontecem pela ação de Deus. Pois Reino de Deus significa a nova humanidade querida por Deus, a família de Deus, invocado por todos como Pai e constituindo uma grande fraternidade, baseada numa convivência humana determinada pelo amor e pela justiça. Portanto o Reino de Deus sempre acontece e cresce onde surjam ações concretas de amor fraterno autêntico.

Pois Jesus deslocou o “sagrado” do setor religioso para o âmbito do humano: “cada vez que fizestes isso a um desses pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Sagrado para Jesus é o ser humano, amado por Deus que o chamou à vida e lhe prepara uma felicidade eterna na família trinitária. Cada vez que a pessoa rompe sua tendência egocêntrica e parte para a aventura de ajudar seu semelhante, ela sintoniza com a religião de Jesus, como aprece na parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-37).

Sabemos que é o Espírito Santo quem capacita o ser humano a amar seu semelhante (Gl 5, 22) e sabemos também que Ele atua em toda parte e em todo tempo, em todas as culturas e religiões. É Ele o responsável pelo crescimento do Reino de Deus, que acontece não só âmbito da religião, mas também fora dela e, muitas vezes, de modo escondido, imperceptível ao nosso olhar. O dinamismo intrínseco da semente e do grão de mostarda brota da ação do próprio Deus.

Consequentemente não podemos identificar Igreja e Reino de Deus. A Igreja está a serviço do Reino ao anunciar a Palavra de Deus, ao oferecer a ajuda dos sacramentos, ao constituir uma comunidade de construtores do Reino que nos movem com seus testemunhos. Portanto não podemos medir o crescimento do Reino pelas estatísticas eclesiais. Mais uma vez, o Reino é de Deus e escapa ao controle humano.

Verdade muito importante para uma época de profunda crise religiosa, de grande transformação da Igreja, de busca de novas formas de se viver a fé cristã. Pois não podemos controlar a ação do Espírito Santo e nem avaliar tudo de bem que se faz em nossos dias. A pandemia do coronavirus demonstrou que o Espírito Santo continua agindo. Muitos contemporâneos nossos se mobilizaram em socorro dos mais pobres, dos desempregados, dos famintos, com cestas básicas que superaram as melhores expectativas. E se sentiram felizes ao ajudarem os necessitados, porque corresponderam à ação do Espírito Santo neles atuante. O mal, os desastres, as tragédias, as violências, os escândalos são profusamente noticiados pelos meios de comunicação. Já o Reino de Deus cresce sem propagandas ou sensacionalismos. Como a semente ou o grão de mostarda das parábolas de Jesus. Elas nos ensinam a olhar a realidade com os olhos da fé que enxerga mais que nossa vista material. E a não sermos pessimistas, mas confiantes na força e no amor de Deus pela humanidade. MFM

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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