Boas músicas, boas comidas, bons filmes e bons livros. Precisa de algo mais? Talvez boas mulheres, se a coluna fosse para uma revista masculina. Como não é o caso, vamos deixá-las temporariamente ausentes da história. Na verdade, a gente não quer é receber e-mails desaforados das neofeministas de plantão, pois não temos porte de arma. Ainda.
BOAS MÚSICAS –
Música boa é cada vez mais difícil de encontrar. Em lojas de CDs, há décadas só lhe empurram as mesmas figuras, com regravações assépticas e edições acústicas comportadas – que geralmente nada mais são além das mesmas regravações, ainda mais comportadas, porém com convidados de credibilidade duvidosa e agradecimentos fingidos.
Quando você encontra uma banda nova, um som diferente e interessante, descobre que o disco é importado e custa quase o preço pago por algumas pessoas (eu) de condomínio, todo mês. Sem dinheiro para comprar o disco, você recorre à Internet para conhecer melhor a banda finlandesa recém-descoberta. Desiste no terceiro minuto de download, ao imaginar sua irmã levando nissin-miojo no presídio, após você ter sido julgado e condenado por pirataria e violação de direitos autorais.
Afinal, caso você não saiba – possivelmente não lê nossas colunas mensais na Backstage, com toda razão – aos olhos da indústria fonográfica você é um criminoso lato. E os seus downloads representam um verdadeiro furto, quase um latrocínio, contra as diretrizes humanitárias dos pobres executivos da indústria multinacional de entretenimento, os quais nunca enganam os credores e jamais mascaram números relativos aos próprios lucros. Estão em crise, diz a imprensa.
BOAS COMIDAS –
Sem boas músicas, sobram as boas comidas. Infelizmente, a gastronomia brasileira passa por uma apimentada crise de identidade e, hoje, aqueles saborosos pratos que os gringos vêem no cinema só existem no… cinema. E no cinema gringo, porque a sétima arte nacional quer ser moderninha e só mostra os atores comendo em locações do tipo McDonald’s e outros ícones da culinária ameri… digo, globalizada.
Acontece que agora não temos tempo para almoçar, porque a empresa reduziu o horário do almoço de duas horas para uma. Logo, somos obrigados a nos entupir de carboidratos, triglicerídeos, lipídios, colesterol e gordura saturada com a chamada fast-food, que a gente insiste em chamar de fast-food para parecer ainda mais moderno e globalizado.
Pedimos um sanduíche duplo, aliás, pedimos um double-alguma-coisa. Sem esquecer do sotaque acentuado no dábôu, pois assim todos na fila podem perceber como você é fluente no inglês. Inglês britânico, é claro.
Como a idade não nos permite mais determinados excessos, a borracha requentada precisa vir acompanhada de um refrigerante diet. Ou seria light? Na dúvida, melhor pedir uma cerveja. Ah, mas onde vende borracha-comestível não tem cerveja. Seria um exemplo ruim para as crianças cada vez mais alienadas pelos pais. O jeito é pedir aquele ki-suco de máquina, cheio de corante, cujo motivo eu desconheço de a garçonete chamar de ’suco natural da fruta, sem conservantes’.
Existe suco natural que não seja de alguma fruta? E como é que não tem conservantes se o suco sai pronto da máquina sem ninguém colocar uma fruta sequer? Não importa. Importante é lembrar de não chamá-la de garçonete em público, pois, de acordo com as ONGs, o termo pode denegrir a imagem da profissão de garçonete perante à sociedade. O nome agora é ‘funcionário de atendimento’. Provavelmente com hierarquia júnior, sênior e premium.
Depois do trabalho, se você for um felizardo em conseguir sair antes das 22h, pode tentar ir a um restaurante e desfrutar de um prato melhor. O problema é que os restaurantes decidiram que comida decente é coisa chique. Somente os engravatados da indústria fonográfica podem custear mais este supérfluo capricho.
Com o salário atrasado, isto é, se você tiver a sorte grande de ser empregado e a sorte maior ainda de ter um salário fixo, o jeito é parar naquele trailer cuja placa diz “Hambúrguis do Tio Zé”. Você pede um X-Tudis a um preço camarada, mas sem abrir o pão para ver o que tem dentro. Porque da última vez você jura ter visto algo se mexendo.
FILMES –
Ao chegar em casa, satisfeito após uma refeição não-borracha, graças ao Tio Zé, você terá bons filmes para assistir. Na televisão, vai passar pela centésima vez (este ano) algum blockbuster da década de 80. A única mudança é que agora a gente fala blockbuster, ou melhor, blockbûstár. Sotaque britânico, não esqueçam.
E esses atores nunca envelhecem e nunca engordam, é incrível. Pior é reconhecer que você também conhece a fórmula mágica do rejuvenescimento: Photoshop para imagens estáticas e Final Cut Pro para imagens em movimento. Falta apenas aprender a usar, pois um único dia de aula custa mais do que o CD importado que você deixou de comprar somado ao valor da comida decente que você deixou de comer.
A alternativa é ir até uma locadora. Como você só chega do trabalho tarde da noite, as únicas abertas são, justamente, aquelas que cobram o valor mais caro pela locação. Não vai encontrar nenhum filme novo, porque alguém com um horário normal de trabalho e um salário menos indecente chegou primeiro e levou todos os últimos lançamentos. E evidente que o filme precisa ser novo, para no outro dia você perguntar aos colegas de trabalho se eles assistiram. Assim todos percebem como você é uma pessoa antenada com a arte e a cultura.
Mas é final de semana e você também pode ir ao cinema pegar a sessão saideira, aquela de meia-noite. Bacana a cidade dispor de 50 salas de exibição, todas com os mesmos pastelões americanos idênticos aos que você assistia quando jovem. A diferença são os efeitos especiais de última geração e várias mulheres lindas, esbeltas e ninfomaníacas. Iguaiszinhas ao canhão que está lhe esperando em casa com aquela camisola desbotada e no quadragésimo-sexto dia de “dor de cabeça”.
LIVROS –
De volta para casa, lhe restam os bons livros. Um passatempo, digo, um hobby que ninguém há de lhe tomar, por mais que tentem.
Pois não é que estão tentando? Querem fazer com os livros o mesmo que a indústria fonográfica tenta fazer com as músicas. Vão transformar você em um criminoso por pegar emprestado de um colega ou tirar xérox daquela obra que não existe mais em nenhuma livraria local, regional, quiçá nacional.
Xerocar virou sinônimo de crime, segundo entende o governo de esquerda e socialista que elegemos. Aquele mesmo governo que desde 1983 falava em colocar no paredão a GGG – galinhagem globalizante golpista – e agora só quer saber de BBB.
Criminalizar a xérox de livros é uma das medidas inclusas nas ações aprovadas pelo Conselho de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, o novo rebento do Ministério da Justiça. O primeiro conselho do Conselho é: se você não tem 70 mangos para comprar um livro importado que nenhuma livraria brasileira vende, mas que aquele seu amigo pseudo-intelectual tem guardado na biblioteca (sem nunca ter lido), nem pense em tirar xérox. É chave de cadeia. Passaporte para ver o sol nascer quadrado.
Também não importa se você é universitário e cursa a faculdade com bolsa de estudos ou FIES. Esqueça o velho hábito de xérox para poder estudar e, posteriormente, trabalhar em prol da pátria-mãe e aquecer a economia nacional. Até porque, se lhe pegarem tirando xérox, a única mãe da história será a sua. E a única coisa que irá aquecer é… bem, você sabe. Contente-se com a burrice.
Óbvio e ululante, nenhuma ONG fez panelaço e nem instigou a sociedade civil a seguir o exemplo dos argentinos, aquele povo atrasado que a imprensa vive dizendo que são pobres e coitados, ou pobre-coitados, mas que dão aulas de soberania nacional. O Brasil não tem panelaço, é um povo educado. Ou melhor, é um povo “cordial” — só para a gente se exibir e dizer que leu Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda. Sem nunca ter lido até o fim, é claro.
O ato de tirar xérox de livros está sendo classificado pelo Governo como apropriação indevida do conhecimento alheio. E eu, ignorante como sou, sempre achei que o alicerce da sabedoria fosse justamente a apropriação e aplicação dos conhecimentos alheios. Como sou ingênuo.
Minha salvação é sempre ler a Revista Olha, com aquele ranking dos livros mais vendidos, para poder ter subsídio intelectual na hora de juntar as sobras de seis meses de salário para comprar o livro mais vendido das últimas semanas, o qual certamente me deixará menos ignorante.
BOAS MULHERES –
Sem boas músicas, boas comidas, bons filmes e bons livros, a última coisa que você irá se preocupar é com as neofeministas mal-amadas. Então, por uma questão de consciência e cidadania, somos obrigados a reafirmar que as boas mulheres também se encontram em extinção.
Quando você encontra uma mulher interessante – ou reencontra, depois de anos – descobre que ela está casada e passando muito bem, obrigado. Ocasionalmente você até encontra outras, supostamente interessantes, mas aí esquece que apesar da pseudo-interessante figura que você é, ela tem bem mais opções de homens interessantes do que você tem de mulheres interessantes. Isto é, se a carapuça não cair e ela se transformar numa surtada.
Oras, se a ciência não consegue explicar a extinção de mulheres interessantes no mercado, além das constantes baixas femininas na Bolsa de Valores, a única solução é apelar para a religião: vende tua alma para o capeta.
Até porque, se as mulheres interessantes não estão aparecendo aqui na Terra, no céu é que elas não vão aparecer mesmo. Lá só toca música clássica, todo mundo anda nas nuvens, ninguém fala mal de ninguém e ainda dizem que os anjos não têm sexo. E os crentes ainda têm a heresia de chamar isso de paraíso? Deus me livre.
Vendo minha alma a Belzebu por cinco reais e ainda volto o troco. Enquanto ele não aceita fiado, o jeito é aproveitar a comida de marmita, o livro de auto-ajuda xerocado, o CD pirata e a esperança de que o canhão da camisola desbotada não acorde — para dizer que a dor de cabeça ainda não passou e pedir para eu apagar a luz. 03.04.2005