I –  Testemunhas de Deus (Lc 24, 36-48)

A importância do testemunho para a fé cristã aparece quando tomamos consciência de que Deus, ao qual se dirige nossa fé, é alguém inacessível aos nossos sentidos e a nossa inteligência. Portanto se o invocamos como nosso Pai misericordioso é porque aceitamos o testemunho de Jesus Cristo. Ele realmente teve um conhecimento de Deus absolutamente único: “Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho” (Mt 11, 27). Jesus fala do que sabe e dá testemunho do que viu (Jo 3,11; 8, 38). Toda a sua vida, palavras e ações, é revelação de Deus, de tal modo que quem o vê, vê o Pai (Jo 14, 9). Nós cristãos cremos não num deus em geral, que pouco nos diria, mas no Deus testemunhado por Jesus Cristo.

Por sua vez os apóstolos devem ser testemunhas de Jesus Cristo (At 1,8), de sua vida (At 10, 39s) e, sobretudo, de sua ressurreição (Lc 24, 48; At 2, 32; 4, 33). “Deus o ressuscitou dentre os mortos, e disso nós somos testemunhas” (At 3,15). Portanto nossa fé é apostólica porque está fundada no testemunho de fé dos apóstolos. E se hoje temos fé em Deus Pai e em Jesus Cristo é porque uma longa sequencia de gerações de cristãos ao longo de séculos foram testemunhas, em suas palavras e em suas vidas, do Deus de Jesus Cristo atuante em suas pessoas. Sem dúvida nossa fé se fundamenta também no testemunho de nossos pais, educadores, pessoas significativas que através de seu exemplo de vida nos conduziram até Deus.

Podemos mesmo afirmar que a testemunha traz Deus ao mundo, pois através de suas palavras e principalmente de seu comportamento manifesta que sua vida está estruturada em sintonia com a vontade de Deus. Para a testemunha Deus não é um mero vocábulo sem repercussão em sua vida concreta, mas Alguém que a ilumina e impulsiona, que orienta seus passos, que fortalece suas decisões, que a consola nos momentos de dor, que lhe propicia uma paz que não se explica normalmente.

Ser testemunha significa manifestar o que está escondido em nossos corações, invisível para os demais. Que força tem um sorriso, um rosto triste, um olhar, um gesto gratuito, pois manifestam os sentimentos (invisíveis) que guardamos dentro de nós. Jesus Cristo enquanto personagem histórico não nos é mais acessível, mas através do testemunho de cristãos autênticos Ele se torna presente e atuante para nós, ganha atualidade, gera convicção, estimula nossa adesão.

Em nossos dias diversos fatores dificultam muito a tarefa evangelizadora da Igreja, da Igreja que somos nós todos. A diversidade e a pluralidade de interpretações e de discursos na sociedade atual, as transformações socioculturais rápidas e sucessivas, a ineficácia de linguagens arcaicas no anuncio do Evangelho, o bombardeio contínuo de palavras através da mídia moderna que acabam por desvalorizá-las, sem falar das fakenews, toda esta situação significa sério desafio à propagação da fé.

Então podemos entender o grande valor do testemunho de vida em nossos dias. Nossos contemporâneos estão um pouco céticos das palavras, mas demonstram grande sensibilidade pelos testemunhos de vida. Eles manifestam não só a fé coerente das testemunhas, mas também revelam quem está por detrás desta fé. Um cristão autêntico goza de uma autoridade moral que motiva a adesão de outros. Cremos em alguém antes de crer numa realidade: o que é verdade numa testemunha torna-se verdade para mim.

Como mexeu com a consciência da humanidade o testemunho de Santa Teresa de Calcutá ou aqui no Brasil a vida de Santa Dulce dos pobres. Igualmente o papa Francisco não se mostra grande intelectual, mas evangeliza e atrai a muitos pelos seus gestos em favor dos mais marginalizados e pobres da sociedade. Uma linguagem que todos entendem, uma linguagem que evangeliza, uma linguagem que questiona nosso testemunho como cristãos, o qual não pode ser reduzido a confissões doutrinais e a ritos litúrgicos. MFM

II – O bom Pastor (Jo 10, 11-18)

Jesus ensinava numa linguagem que todos pudessem entender. Assim recorria a parábolas, metáforas, comparações que eram familiares a seus ouvintes. Na sua simplicidade elas veiculam um sentido que deve ser captado por seu auditório. Assim também na parábola que nos ocupa, pois, propriamente falando, Jesus nunca foi verdadeiramente um pastor. Ele entendia, isto sim, de carpintaria e de marcenaria. Como então pôde ele declarar que era o bom Pastor?

Pela descrição que ele faz da parábola percebemos que o bom pastor, ao contrário do mercenário, que ali estava para receber o pagamento, era alguém que cuidava das ovelhas porque lhes queria bem. Estava atento a cada uma delas, observava de perto as mais fracas para não sucumbirem na caminhada, as mais inexperientes para não desgarrarem do rebanho, as mais inseguras para serem animadas. Toda sua atenção estava voltada para as ovelhas, lhes dedicando seu tempo e suas forças. A tal ponto de que, em caso de perigo pela vinda do lobo, não as abandonasse, mas arriscasse por elas sua própria vida.

Esta parábola é confirmada pela própria existência do Mestre de Nazaré que passou por este mundo fazendo o bem (At 10, 38), atento aos mais pobres, solícito com os marginalizados e pecadores, sensível aos sofridos de seu tempo, preocupado com os desprovidos de dignidade e de reconhecimento social. Portanto a parábola retrata bem quem foi Jesus para seus contemporâneos.

Aqui nasce a pergunta: só para seus contemporâneos? Ou vale ela também para nós? Pois o Jesus Cristo que invocamos e confessamos como Filho de Deus é o mesmo Jesus que percorria as estradas da Palestina ensinando, consolando, curando, animando e fortificando quem ele encontrava. Ressuscitado, é verdade, mas o mesmo Jesus narrado nos Evangelhos. Portanto um Jesus Cristo atento aos nossos males, sensível aos nossos sofrimentos, voltado para cada um de nós nesta caminhada difícil que é a vida humana. Daqui nasce a pergunta: conscientes de tudo isto, sabemos nos aproximar de Jesus Cristo como muitos em seu tempo fizeram, recebendo dele luz, paz, consolação, cura, alegria? Demostramos concretamente que também para nós Ele é o bom Pastor?

Entretanto só conseguiremos ter esta experiência se tivermos um contato pessoal com Jesus Cristo. Ao nos debruçarmos sobre as páginas dos Evangelhos não busquemos somente conhecimento, mas saibamos interpelar e ser interpelados pelo Cristo bom Pastor. Nossa oração deve constituir um diálogo espiritual. Na celebração eucarística o Cristo presente e atuante nos textos sagrados, na homilia, nas imagens, nos cantos, nas orações e, sobretudo, na comunhão constitui sempre uma oportunidade para um encontro pessoal com Ele. Comungar é assumir a vida de Jesus, é com Ele se comprometer, é receber dele incentivo e força para ser um cristão autêntico. E então poderemos experimentar como Ele continua hoje a ser o bom Pastor.

A parábola também nos interpela porque ela retrata não somente o que foi a vida de Cristo, mas também, por sermos cristãos, o que deve ser a nossa vida. Pois somos seres sociais, que muito recebemos daqueles com os quais vivemos, pois, querendo ou não, estamos sempre necessariamente influenciando outros, pela nossa conduta, nossas palavras, nossas ideias, nossos juízos. Numa palavra, somos responsáveis por aqueles que entram em nossa vida e devemos, como cristãos, assumir a atitude do bom Pastor que marcou a vida de Jesus Cristo.

Naturalmente todos nós costumamos estar muito ocupados com nossas obrigações familiares ou profissionais, e cuidar de outros como o bom Pastor irá exigir de nós renunciar a momentos mais gratificantes, desinstalando-nos de nossos confortos. Se ousarmos correr esta aventura, experimentaremos a alegria de fazer o bem que explica a felicidade de tantos voluntários comprometidos em remediar os males causados por esta terrível pandemia. Que Deus nos ajude nesta missão. MFM

III – A videira e os ramos (Jo 15, 1-8)

A parábola da videira e dos ramos constitui um dos mais decisivos ensinamentos de Jesus para nós que somos cristãos. Nela aparece claramente que o núcleo central da nossa fé é a pessoa de Jesus Cristo. Se fossemos prescindir dela, nada mais saberíamos de Deus, do sentido de nossa vida, dos males que sofremos, ou como nos comportar diante dos desafios que enfrentamos. Estaríamos como que perdidos numa grande floresta sem saber que direção tomar para dela sair. Por isso mesmo confessamos Jesus Cristo como nossa luz (Jo 8, 12), nossa verdade (Jo 14, 6), caminho seguro para a vida plena e para Deus (Jo 14, 6). Assim já podemos entender quão importante é conhecer realmente Jesus Cristo para nossa vida de cristãos.

Entretanto apenas conhece-lo não basta. Pois sua vida foi uma contínua obediência ao Pai (Jo 6, 38), foi demonstrar por suas ações o projeto de Deus para a humanidade (Mc 1, 15), provocando reações contrárias de seus inimigos, mas demonstrando uma heroica coerência de vida até o fim (Mt 26, 42). Como Jesus nunca se apresentou como mestre, embora o chamassem assim, seus discípulos não são aqueles que apenas conhecem seus ensinamentos, mas aqueles que partilham sua vida, que procuram moldar suas vidas pela vida de Cristo.

Portanto esta parábola nos lança dois desafios: conhecimento de Jesus Cristo e comprometimento com sua vida. Para podermos conhecer realmente Jesus Cristo temos que ter um contato permanente com os relatos dos Evangelhos. Não basta o que ouvimos de sermões ou de palestras. Confessamos Jesus Cristo como a luz que ilumina nossos passos, mas não conseguimos abrir um tempo em nossa agitada vida para melhor o conhecer. Quantos católicos que jamais leram um evangelho do começo até o fim!

E não é qualquer leitura, mas uma leitura qualificada, tranquila, desinteressada, depois de termos invocado a ajuda do Espírito Santo. Podemos até nos imaginar presentes à cena descrita pelo evangelista, atentos ao que Jesus diz, pesando suas palavras, penetrando mais em seu sentido, alcançando o que tem de novidade, o que nos interpela e desafia, o que nos ilumina e fortalece. Assim fazendo, permitimos que a luz de Cristo ilumine e sustente nossa caminhada neste mundo. Assim fazendo, somos os ramos recebendo vida, força, sentido, provenientes da videira que é Cristo.

Mas não basta conhecer, é preciso transformar a verdade em realidade. Ser cristão é participar da vida de Jesus, é assumir seu projeto do Reino de Deus, é fazer de sua vida uma vida para os outros, como foi a sua (At 10, 38), é estar atento aos necessitados, é cuidar dos mais carentes, é saber doar aos outros seu tempo, suas qualidades, sua cultura, seu afeto. Assim viveu Jesus, assim deve viver o cristão. Não basta recitar orações, receber sacramentos, fazer profissões de fé. A fé autêntica é comprovada pelo amor efetivo (Gl 5, 6) que, muitas vezes, nos desinstala de nossos hábitos, exige dedicação, mas nos faz experimentar quão felizes somos quando agimos como Cristo, tradução humana do agir de Deus. A seiva da videira corre nos ramos, o sangue de Cristo corre em nossas veias, o Espírito que conduzia Cristo atua também em nós. Então entendemos a afirmação de Paulo, que não conheceu Jesus neste mundo, mas que incarnou em si a vida de Jesus: “eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

Então nosso relacionamento com Jesus Cristo será de cunho mais pessoal, mais existencial, mais íntimo, como amigos que se conhecem e que confiam um no outro. Tarefa que abarca toda a nossa existência, uma caminhada sempre avante, um amadurecimento que requer tempo, e que admite as imperfeições e incoerências próprias da condição humana. Caminhar é mais importante do que querer chegar, pois a chegada é dom de Deus que nos acolhe como somos, pois Ele é bom e misericordioso como nos revelou o próprio Jesus Cristo. MFM

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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