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E, de repente, lá estava Getulino, setentão, sustentado pela bengala, na fila. Para onde quer que olhasse, por mais que limpasse os óculos, o alcance da visão era diminuto devido à catarata e à forte neblina. “Neblina? Fila? Onde é que estou? Que fila é esta? De banco? Farmácia? Supermercado? Será que a ‘véia’ (era assim que chamava a esposa) me pediu para comprar alguma coisa?” Não conseguia se lembrar. A esposa vivia pegando no pé dele para que não se esquecesse de tomar o remédio para estimular a memória. Vivia. Havia algum tempo que ela também carecia do mesmo medicamento.
A fila era morosa, mas o que o agastava era a curiosidade: para onde aquela fila o levaria? Resolveu cutucar o homem à frente.
– Perdoa-me, cavalheiro. O senhor pode me dizer qual a finalidade desta fila?
O homem virou-se e, para sua surpresa, eram conhecidos.
– Bigode!!!
O efusivo abraço não obteve reciprocidade. Bigode suspendeu o indicador na frente do nariz e sussurrou um “xiu”. Getulino ensaiou zangas, mas as substituiu por um momento lúcido da memória.
– Peraí. Ontem o Eliziário me disse que você foi assaltado; que tinha levado um tiro no peito; que era grave; que…
Bigode desabotoou a camisa e mostrou o ferimento.
– Meu Deus! Como você consegue estar em pé com um buraco desse? Só por milagre.
A tentativa de diálogo foi interrompida pela voz grave que fez o local tremer.
– SI-LÊN-CIO!
Em seguida, o nome de batismo de Bigode foi pronunciado e ele desapareceu atrás de uma cortina branca. Minutos depois, foi a vez de Getulino entrar na sala onde o anjo folheava um livro.
– Sente-se, por favor. Procurei diversas vezes o seu nome e não o encontrei. De acordo com o convênio brasiliano, o senhor só pode ser chamado quando se aposentar. Desculpe pelo equívoco.
Getulino esbravejou e gesticulou desafiando o reumatismo pelo tempo perdido na fila.
– Acorda, Gê! Acorda! Tá tendo outro pesadelo?
Ele acordou ofegante, suarento, com os olhos arregalados.
– Graças a Deus, véia, foi só um pesadelo.
Com a dificuldade rotineira, agarrou-se à bengala, retirou a dentadura do copo com água para atenuar a murchidão da boca e foi ao chuveiro.
– Gê, ainda é madrugada. Volta pra cama.
– Não posso. Vou procurar o advogado. Preciso cancelar a entrada da papelada da minha aposentadoria. Caso de vida ou morte.
Às três da madrugada ele bateu à porta do advogado que lhe deu um abraço e disse:
– Parabéns! Sua aposentadoria saiu!
Getulino, não suportando a notícia, ruiu: infarto fulminante.

*Hoje tem “Proseando”, no jornal Tribuna do Norte. Agradeço aos amigos: Jucy Batista, presidente da Fundação Dr João Romeiro, jornalista Altair Fernandes Carvalho Carvalho e Paulo Flauzino da Silva, pelo espaço.

Obs: O autor é membro da Academia Pindamonhagabense de Letras é autor de: Lágrimas de Amor – poesia; O sapinho jogador de futebol – infantil; O estuprador de velhinhas & outros casos – contos; Histórias de uma índia puri – infanto-juvenil; O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte, e Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda – cordéis.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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