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“Santo, santo, santo é YHWH dos Exércitos (Universo), a Sua glória enche toda a terra” (Is 6, 3)

“N’Ele nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e santas, irrepreensíveis diante d’Ele no Amor” (Ef 1, 4)

“O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5)

A sociedade, nosso lugar no mundo

Gostaria de começar por uma prévia observação acerca de nosso lugar no mundo. Lugar em que já nos encontramos ao nascer e, ao mesmo tempo, colaboramos para construir. Lembremo-nos que qualquer sociedade de pessoas se organiza e se realiza mediante alguns níveis, dimensões ou aspectos, os quais não são estanques, mas intimamente articulados:

  1. Antes de tudo, vêm as relações e estruturas econômicas que brotam da necessidade de responder a nossa sobrevivência e a nosso prazer de viver. Abrangem a produção de bens, a troca ou comercialização, a comunicação (propaganda, marketing) e o consumo;
  2. Em seguida, vêm as relações e estruturas chamadas de sociais e que se entrelaçam intimamente com a dimensão econômica. Correspondem ao que fazemos para promover e organizar nossos relacionamentos interpessoais e coletivos e têm estreita relação com a dimensão econômica, suas relações e estruturas. O que quer dizer que a chamada “pirâmide social” tem sua base na organização econômica da sociedade;
  3. Vêm as relações e estruturas políticas que correspondem à organização do poder, o qual é uma dimensão antropológica básica de cada pessoa (na verdade, “ser é poder”, por mínimo que seja) e, consequentemente, de qualquer grupo e da sociedade mais ampla
  4. As relações e estruturas culturais referem-se aos valores que justificam, aprovam ou desaprovam o tipo de vida que coletivamente criamos e promovemos. Trata-se do que julgamos positivo ou negativo, permitido ou proibido ou desaconselhado, a ser tido como ideal ou rejeitado como nocivo, perigoso e destrutivo. A família, a escola, a rede de comunicação social, a religião, etc. Os valores culturais estabelecidos numa determinada sociedade são parâmetros ou instrumentos fundamentais para promover ou criticar os costumes ou ideias vigentes na sociedade, são instância de legitimação ou de crítica e até rejeição do que se passa nas demais dimensões da convivência social, desde a economia até a religião, passando pelas relações sociais, as relações políticas e a própria cultura
  5. Finalmente as relações e estruturas religiosas: as religiões, bem estruturadas ou não, são a instância suprema da vida das pessoas e grupos sociais e dos relacionamentos entre eles. Na verdade, Deus é a instância suprema que justifica, aprova ou desaprova o tipo de sociedade que construímos, quer as pessoas sejam sinceramente religiosas, quer instrumentalizem a religião para seus interesses. É o que vemos, por exemplo, em nosso país, quando alguém se declara abertamente a favor da tortura, o mais vil e covarde procedimento a que se pode submeter um ser humano, e, ao mesmo tempo, tem a ousadia de proclamar “Deus acima de todos”…

Religião e Fé

Já refletimos em comum sobre a distinção entre Religião e Fé. Religião é um conjunto organizado de vivências, relações, estruturas e valores que pretendem oferecer-nos as razões últimas de viver: Deus é a instância suprema de legitimação, aprovação ou desaprovação, de nosso modo de ser no mundo. Pela religião a vida passa além do quotidiano, é como passar da prosa à poesia, rituais e “sacramentos” são sinais que nos levam para além do quotidiano, abrindo a cortina para o Invisível. Só que qualquer religião é sempre criação nossa, reflete nosso modo de viver e inculca os valores que prezamos como ideais. Das religiões se espera a aprovação da divindade. Não é necessariamente algo negativo, mas reflete sempre nossa própria realidade, ou seja, relações e estruturas de ser e de conviver. Baste pensar na religião da Casa Grande, em nosso país e na religião do povo negro escravizado. Como criação humana, carrega a carga de nossas vivências pessoais e coletivas. É sempre contaminada pela idolatria, pois os deuses e deusas são sempre fabricados(as) à imagem de nós, como descreve muito bem o profeta Isaías (cf. Is 41, 21-29; e o capítulo 44). Seria muito útil também a leitura do Livro da Sabedoria, escrito dêutero-canônico da Bíblia, que nos traz uma lúcida meditação sobre a real condição dos deuses, a saber, de fato são fabricados por mãos humanas e feitos à imagem de nós, justamente o contrário do que nos diz o livro de Gênesis, nós é que somos feitos à imagem de Deus (cf. Gn 1-2). Vale a pena ler com atenção os capítulos 13 a 15 do Livro da Sabedoria (que se acha na Bíblia Católica) e que pode ser considerado uma das meditações bíblicas mais profundas sobre as raízes e as consequências da idolatria. Há também , tanto nos livros proféticos, como nos salmos, textos muito profundos e fortes sobre a idolatria como denúncia da alienação humana.

A fé é outra coisa. Brota do reconhecimento da dimensão de transcendência que nos habita. Como já vimos em nossa reflexão comum, temos a experiência antropológica de que o amor só é de fato possível quando temos a coragem de aceitar que, em certas circunstâncias e momentos da vida, as outras pessoas nos aparecem como se tivessem o poder de exigir tudo de nós, até nossa própria vida. Não que elas, de sua parte, nos exijam, nós é que sentimos profundamente que assim é que temos de nos comportar. Se o dom da vida é o mais precioso, se nosso ser é o que temos de irrenunciável por ser o que, na verdade, nos constitui, só Deus, origem última da vida, pode ser sujeito dessa exigência suprema. Qualquer outro ser que se levante a exigir-nos a vida comporta-se como ídolo. Aceitá-lo é o grau máximo da alienação humana. Na verdade, só Deus tem a autoridade de exigir tudo de nós. Se nos dedicamos a alguém, se nos entregamos de maneira incondicional, se chegamos a morrer por outrem, isso só se explica porque ao menos intuímos profundamente que o Amor nos solicita. Nessa relação extrema com nosso próximo, de dar a vida, manifesta-se o Deus vivo, é o Deus sem nome, como vemos na conversa de YHWH com Moisés em Êxodo, cap. 3: “Eu Sou”, o mesmo que “Estou aí”, “Estou contigo”, ou seja, Deus se acha entre nós e em nós como a dimensão secreta que nos abre às outras pessoas e ao universo, e assim nos plenifica no Amor que se manifesta no jeito comunitário de viver. É o que está contido na famosa frase do poeta Ferreira Goulart: “O sentido da vida são as outras pessoas”. Não o deus que criamos para projeção de nós mesmos(as), mas o Deus que vem a nosso encontro no Caminho, nos encontros com as outras pessoas, que nos solicitam e nos abrem para além de nós. Por isso, como já vimos, a fé se manifesta e se fortalece no AMOR. Vale a pena ler e meditar os capítulos 13 a 17 do Evangelho segundo João, a alegoria da videira e as várias palavras sobre nossa íntima relação com Deus, relação que nos transforma e nos diviniza como galhos da mesma árvore divina.

A santidade é o Amor

Em Atos dos Apóstolos o grande sinal que é dado pela comunidade de discípulos e discípulas de Jesus não é o estabelecimento de um novo culto. A primeira comunidade continua a se sentir como membros da religião judaica, herdeira de Moisés desde o Êxodo do Egito. O que agora acontece de novo e a caracteriza, porém, é sua nova identidade, de um grupo que se define pela vivência da vida comunitária, como se vê nos primeiros capítulos do Livro dos Atos (cf. At 1-12). A comunidade é a forma concreta e palpável como Jesus se manifesta (cf. At 9, 4). Na primeira Carta aos Coríntios, capítulos 1-4, o teste de adesão ao Caminho de Jesus é a solidariedade com as pessoas pobres e desprezadas. A imagem central da vida da comunidade é a Ceia da Partilha, como se vê em 1Cor 11-12, partilha do pão e partilha dos dons e carismas, tudo isso motivado pelo Amor (cf. 1Cor 13 a 14).

Santidade não é moralismo nem simplesmente esforço ascético, mas unidade profunda com Cristo, que se manifesta no convencimento íntimo de que cada qual de nós é membro do mesmo Corpo irrigado pelo amor fraterno e pela experiência de liberdade que brota do Amor. É como dizia Santo Agostinho, grande bispo e pensador cristão do século V: “Ama e faze o que queres”, características básicas de quem se sente filho ou filha de Deus, como nos diz tão bem a Carta aos Gálatas (cf. Gl 3-5; Rm 8).

E a religião como fica? E o culto não é importante manifestação e treinamento da vida cristã? Sem dúvida que o culto é importante como expressão e instrumento de nossa caminhada, manifestação comunitária externa daquilo que buscamos ser profundamente, um só corpo em Cristo. Por isso agora o culto tem para nós um novo significado: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, este é o vosso culto como deve ser. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando-vos profundamente a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12, 1-2). Até as ofertas materiais e mesmo monetárias têm novo sentido e podem ser aproximadas de nossa atitude “eucarística” (de ação de graças) (cf. 2Cor 9, 6-15). No v12 se fala de “efusivas ações de graças a Deus”, em correspondência com o v11 onde se diz: “suscitarão a ação de graças por nosso intermédio. Ora, no grego do Novo Testamento, a expressão “ação de graças” se refere com frequência particularmente `as Eucaristia.

Se queremos falar de uma vida em santidade, não devemos esquecer que santidade corresponde àquela característica fundamental da realidade de Deus: Deus é santo justamente porque é amor sem nenhuma contaminação, nenhuma imperfeição, nenhuma mistura indevida, nenhuma carência. Somos chamados e chamadas a enfrentar esse desafio de assimilar o mais que possamos essa perfeição divina, de integridade sem mistura.

Nossa vocação é assumir cada vez mais e com mais intensidade a santidade de Deus, como Jesus nos revela através de sua prática de vida, basta que leiamos os evangelhos para perceber qual o caminho a seguir ((cf. Jo 14-17). De novo voltamos ao que é o cerne de nosso chamado: santidade é assemelhar-nos sempre mais a Deus, mediante a prática do amor que aprendemos com Jesus (cf. Jo 17 e 1Jo) e com as pessoas que já o seguem de perto. Assim somos aceitos e aceitas por Deus como a ampliação de Seu próprio Filho. É por isso que nos diz o Novo Testamento que somos o Corpo de Cristo, tendo Ele mesmo como a Cabeça que nos irriga mediante a ação do Espírito Santo, este que exerce a função de nos irrigar com a santidade de Deus (cf. 1Cor 12-13). A vida comunitária na Igreja, na família, no trabalho profissional, nos engajamentos sócio-políticos… essa vida comunitária multifacetada cresce como resultado e expressão de nosso crescimento na fé e é ajudada e fortalecida pelos laços profundos e intensos que vamos estabelecendo umas pessoas com as outras no seio da comunidade cristã. 03/05/2021

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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