IHU On-Line – Como o senhor interpreta o Mistério Pascal? Que sentido ele pode dar à nossa existência, especialmente em períodos como o que vivemos, imersos na tragédia e no sofrimento gerados pela crise pandêmica?

Ademir Guedes Azevedo – O Mistério Pascal é o centro de toda a vida cristã. Nele, a existência vem considerada em profundidade, pois tudo adquire sentido. A Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus exprimem todo o desejo de Deus para a humanidade: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância” (Jo 10,10). “A glória de Deus é o homem vivente” (Santo Irineu). A falta de sentido que enfrentamos em nossa sociedade atual tem várias causas, e a dor que gera mais danos é aquela do vazio existencial. Se encontro metas e um porquê (Esperança) que justifique o cansaço do caminho, posso dar um significado mais profundo à vida. Considero que Jesus encontrou um sentido maior que resume toda a sua missão: combater as cruzes impostas que aniquilam a vida. Apaixonado por Deus e fiel a um projeto de vida maior (Reino), Jesus abre um horizonte de sentido que devolve a luz aos olhos dos homens de todos os tempos.

A pandemia que atravessamos poderemos superá-la com a rica contribuição da ciência, mas também com a força revitalizadora que encontramos no Mistério Pascal. Aqui nos damos conta de que há um Deus que nos ama loucamente e, por isso, devemos erguer-nos para assumir a vida com todos os seus dramas, inclusive com as pandemias.

IHU On-Line – A humanidade vive um momento particular em função da pandemia de Covid-19, que tem não só evidenciado a fragilidade humana, mas também suscitado discussões sobre a presença do mal no mundo. Qual é, na sua interpretação, a melhor resposta cristã à questão do mal?

Ademir Guedes Azevedo – Penso que um dos debates mais atuais em teologia está na teodiceia. Vejo que alguns grupos católicos perdem muito tempo tentando dar respostas aos problemas atuais com artigos da doutrina, muitas vezes descontextualizados e com uma linguagem apologética metafísica que, aos ouvidos de nossa sociedade pós-moderna, soa estranho e até ridículo.

Desconfio que a fé cristã tornar-se-á credível no mundo de hoje só se a teologia conseguir refletir de modo lúcido sobre a questão do mal, buscando uma resposta convincente ao mesmo. Neste sentido, a melhor justificação deste problema não é um discurso sobre a doutrina do mal, mas uma tomada de decisão que me encaminhe para a solidariedade com as vítimas do mal. Então a questão é a seguinte: onde estão os cristãos diante dos dramas causados pelo mal? Aqui estou tentando reproduzir um argumento do teólogo alemão Johan B. Metz que, em minha opinião, foi quem melhor refletiu sobre este debate em sua obra Memoria Passionis.

Metz critica Agostinho quando este concentra todo o problema do mal no pecado original. Isso criou uma tradição obcecada apenas na redenção dos pecados, esquecendo-se das condições concretas do pecador. Por isso, fala-se tanto de reparação dos pecados, expiação, penitências e tantas outras práticas rituais externas. Esse modo de enxergar situa-nos numa visão eclesial ritualista e individualista. Porém, o que Metz pretende é outra coisa: somos colaboradores de Deus em seu Reino e, por isso, temos que retomar a sua prática, por meio da memória de seus gestos e ações, os quais rompem com os falsos mitos que pretendem justificar um futuro no qual tem espaço apenas uma elite religiosa. Retomar a Memoria Passionis por meio da nossa prática solidária significa instaurar um estilo de vida subversivo e perigoso, visto que a retomada da práxis de Jesus pretende um futuro messiânico, no qual todas as vítimas do mal da história são tratadas não como número, mas a partir de seus rostos e histórias concretas.

Então o problema do mal é enfrentado dentro de uma fé prática que convoca a cada um a ser solidário. Esta mística de olhos abertos não esquece dos sofredores, mas se empenha para uma prática libertadora, assim como o próprio Jesus viveu a sua missão.

  IHU On-Line – Durante a pandemia, aumentaram os relatos de casos de depressão, angústia, falta de esperança, medo e problemas psíquicos em geral. Como o senhor interpreta esse fenômeno do ponto de vista teológico? A sociedade está desaprendendo a lidar com o sofrimento? Ou não encontra mais em Deus uma fonte para vivenciar e superar o sofrimento?

Ademir Guedes Azevedo – Este cenário tem uma raiz mais longínqua e reside nos efeitos nefastos que a chamada sociedade do desempenho fez conosco. O projeto da modernidade alcançou-nos por meio de um excesso de positividade. Falou-se no super-homem e nos esquecemos que somos frágeis e vulneráveis. Foi-nos ensinado técnicas de eficácia e desempenho para sermos talentosos e, assim, respondermos ao projeto moderno de progresso. Acabamos sendo o fruto legítimo de nossas próprias mãos e esquecemos do transcendente e da espiritualidade. Foi justamente assim que fomos surpreendidos com a chegada de um vírus letal. Agora toda a armadura que criamos com a modernidade foi rachada, ficamos sem nenhuma proteção e diante de nossa própria vulnerabilidade. O galho das nossas antigas seguranças que nos davam a impressão de sermos deuses, começou a estalar e é justamente isso que rouba a nossa paz, deixando-nos em pânico e vazios.

A experiência de sentir-se crucificado

Quero aprofundar um pouco mais esta questão. Também nós cristãos pouco sabemos o que fazer diante do sofrimento, pois tentamos enfrentar este drama com uma fé que recebemos de um mundo pré-moderno, mas hoje o sujeito tem uma sensibilidade e visão de mundo diferente. Neste ponto, a Igreja não acompanhou o desenvolvimento dos vários contextos e tratou de maneira homogênea a referida questão, com repetição de respostas que pouco atingem as novas sensibilidades. Isso é tão evidente, que muitos líderes religiosos também estão imersos nos mais diversos problemas psíquicos. Ou seja, as respostas prontas que damos aos outros também não servem para nós, visto que não geram efeito algum em nós mesmos.

Eu considero que há um caminho que pode nos tirar deste labirinto em que entramos. É a experiência de sentir-se crucificado, pois é nela que podemos renascer para uma sabedoria mais profunda. Na cruz vemos dor e solidão, mas, por outro lado, um homem que confia, pois ele é portador de uma inteligência emocional que o faz forte, quando se sente fraco. O projeto moderno de vida vê o ser humano a partir do que ele tem e pode conquistar. Mas na cruz o homem não tem nada, deve aprender a ressignificar-se a partir de sua impotência.

Sentir-se crucificado por uma pandemia não significa que estamos derrotados, mas se trata de uma oportunidade para olharmos para o que restou depois de sermos privados do aparato de coisas e situações que o mundo moderno inventou. E aquilo que resta é o encontro com o nosso próprio “eu”, com o núcleo da nossa existência que nada e ninguém nos podem roubar. Essa pode ser uma via que nos ajuda a enfrentarmos o sofrimento com a cabeça erguida. É urgente aprendermos a conviver com a nossa própria imagem, depois de nossas longas fugas e buscas por felicidade exterior. Por isso, creio que a espiritualidade como viagem ao mais profundo do nosso ser poderá ajudar-nos a refazer uma nova criação em nós a partir dos cacos que ainda sobraram das nossas frustrações. Assim, poderemos reerguer-nos e recomeçar tudo de novo de um modo completamente diferente.

IHU On-Line – O último ano foi marcado por inúmeras ações de solidariedade, mas também por sentimentos de desamparo e perda da esperança. Como a Paz de Cristo, oferecida aos apóstolos e a todos nós, pode alterar o estado de ânimo do ser humano imerso na incerteza e na falta de esperança?

Ademir Guedes Azevedo – A Paz de Cristo, oferecida como primícia de sua ressurreição, é algo impactante. Não se trata de uma paz dos cemitérios, como bem insistia nosso querido Dom Pedro Casaldáliga. É paz inquietante, pois nos empurra para gestos concretos. É também uma paz muito perigosa, porque é dada por um homem ferido, ou seja, por alguém que se sujou com os dramas da vida humana.

O teólogo tcheco Tomás Halík diz que num mundo tão quebrado como o nosso, só resta-nos crer num Deus ferido. Realmente, aquela paz oferecida aos apóstolos e às gerações de todos os tempos, só tem efeito se for capaz de fazer uma carícia em nossas feridas. É justo isso, usando a nossa imaginação, que exige Tomé aos discípulos: eu só acredito nesse ressuscitado de quem vocês estão me falando se ele estiver ferido, pois é só assim que ele saberá a dose certa do remédio para sanar a minha ferida. Mais do que nunca, desejar a paz de Cristo, em nossa cultura frágil e vulnerável, é ser capaz de arriscar-se pelos outros e de envolver-se na dor alheia. Sem essa experiência não é possível falar de Ressurreição.

  IHU On-Line – Qual é o cerne da espiritualidade passionista e como ela nos ajuda a encontrar na Paixão de Jesus o remédio para os males do mundo?

Ademir Guedes Azevedo – Nós, passionistas, fazemos do Mistério Pascal o centro de nossas vidas. O cerne da espiritualidade passionista consiste no ser e fazer a Memória da Paixão por palavras e obras, assim todo passionista é um ‘homem memória’, pois atualiza com a vida o significado do evento da Paixão para o hoje da história.

Considero três aspectos importantes da espiritualidade passionista:

  1. Há um lugar específico que devemos sempre frequentar;
  2. Uma experiência a ser nutrida; e
  3. Uma missão a cumprir.

Vejamos:

 O lugar

O lugar que devemos frequentar é o Calvário. Jesus morre fora da religião e dos muros sagrados de Jerusalém. Ele, inclusive em sua Paixão e morte, está com os malfeitores, gente moralmente indigna e sem lugar na sociedade (aqui está a dimensão profética do carisma). O passionista sobe ao calvário, ou seja, frequenta os porões da humanidade, deve estar onde ninguém deseja frequentar. Os passionistas fazem dos calvários atuais o seu hospital de campanha (Papa Francisco), onde devem curar as feridas dos corpos crucificados, chamando-os à vida.

 A experiência

Estando no calvário, atualizam o significado da Paixão em suas vidas e o fazem ao descobrirem que são amados por Deus. Tal descoberta reside quando se tornam objeto de contemplação do Crucificado. Ao invés de contemplarem o Crucificado, ocorre justo o contrário: é o Crucificado que se torna sujeito e nós objetos de seu olhar, pois nos deixamos ser contemplados pelo Cristo da cruz. Justo aqui está a descoberta: aquele olhar que emana da cruz me diz que sou amado. Exatamente isso é o que significa fazer Memória da Paixão, pois se atualiza o seu significado na vida pessoal, tornando-se uma experiência que marca toda a existência.

 A missão

Da descoberta de que é amado por Deus, independentemente de ser digno ou não, o passionista torna-se discípulo e sai para anunciar a Palavra da Cruz (Deus ama a todos) sem medir esforços, contando apenas com a Graça de Deus. Esta é a missão do passionista: anunciar que Deus ama a humanidade. Foi justo o esquecimento dessa boa notícia que gerou os males do mundo, segundo São Paulo da Cruz (1694-1775). Por isso, o remédio para as feridas do mundo reside na Memória daquele evento que se descobre a partir do olhar envolvente do Crucificado que está nos calvários da humanidade. Enfim, o carisma passionista não é uma teoria, mas uma experiência de amor divino aberta a todos.

  IHU On-Line – Em seu artigo recente sobre a estética da cruz, o senhor cita o filósofo alemão Alexander Baumgarten, que, em sua obra, Estética: a lógica da arte e do poema, inverteu o modo grego de conceber o belo, colocando-o no reino da percepção sensível. Como esse modo de conceber o belo e a verdade, no âmbito do sentir, nos aproxima de Cristo e nos ajuda a compreendê-lo e a segui-lo a partir da sua cruz?

Ademir Guedes Azevedo – Minha intenção ao escrever sobre a estética da cruz era dialogar com a sociedade pós-moderna. O filósofo francês Jean-François Lyotard denunciou a crise dos metarrelatos e a insuficiência dos elaborados discursos metafísicos em interpretar as novas subjetividades e sensibilidades, por isso dou-me conta de que tudo aquilo que ocorre na cruz pode, se acolhermos a partir de uma outra racionalidade, tornar-se algo proveitoso para o homem de hoje. Na cruz está um Deus que aceita renunciar as suas categorias de poder para envolver-se com a história de um homem rejeitado.

  Inteligência espiritual dá cidadania às emoções

Esta nova racionalidade eu a encontro no âmbito dos sentimentos. Por isso, a percepção sensível se trata de uma lógica menor que denuncia a homogeneidade de uma razão totalitária que desconsidera os sentidos em seu modo de apreender a realidade. Portanto, há uma outra razão ou conhecimento para experimentarmos o amor de Deus. O Papa Francisco a chama de ternura. A inteligência espiritual dá cidadania às emoções e aos comportamentos que destas decorrem, como a empatia e a compaixão.

  Seja qual for a nomenclatura, noto que uma estética da cruz nos põe no coração do próprio Deus, pois a sua beleza, que só podemos descobri-la no âmbito do sentir, é provocante e comprometedora com a vida de todos os crucificados de hoje. É este modo de sentir e de captar a beleza que brilha na cruz que deveria motivar-nos a assumir um estilo de vida mais concreto, sem falsas aparências. A estética da cruz provoca a uma decisão radical que põe o nosso corpo a serviço do próximo. Na cruz, Jesus conclui sua missão todo desfigurado, sem aparência humana, como diz o profeta Isaías. No entanto, ele está pleno de beleza, porque repleto de sentimentos nobres. Às vezes, nós pensamos mais em nossa própria aparência e calculamos as nossas ações em benefício próprio. Esta sociedade que vive para si mesma está com os dias contados, pois ou nos unimos pelo bem do próximo ou infartaremos com o excesso de espelhos que refletem a nossa própria imagem.

IHU On-Line – Por que o cristianismo é inútil sem a cruz?

Ademir Guedes Azevedo – Porque seria algo irreal. Seria um tipo de experiência meramente espiritualista, desenraizada do solo onde a vida se passa. A cruz é a síntese de toda a missão de Jesus. Ela está fincada na terra e nos tira das ilusões e dos discursos que prometem um futuro que não poderá jamais existir.

Se o cristianismo é o seguimento à pessoa de Jesus de Nazaré, então a cruz revela que este homem se preocupa com a vida do ser humano, com o seu sofrimento e com seus dramas. Há uma tendência em alguns espaços eclesiais em ressaltar um seguimento sem a cruz, ou seja, sem solidariedade com o próximo. Imagine um cristianismo sem a cruz: seríamos insensíveis à dor humana. Por outro lado, como poderíamos viver o dom de si? Se a cruz vem retirada, seríamos como lobos ferozes, viveríamos para nós mesmos, o que seria um verdadeiro inferno.

No caminho para o calvário, Jesus dirige uma palavra às mulheres que deveria ser repetida por toda comunidade cristã: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, antes, chorai por vós mesmas e por vossos filhos” (Lc 23,28). Ou seja, assumam a vossa cruz, pois a minha devo abraçá-la até o fim por amor a vocês.

Aqui está a chave: não posso fugir da minha cruz e à medida que me dou conta de que devo carregá-la, acabo encorajando os outros a não desistirem nunca de caminhar. O querido Dom Luciano Mendes de Almeida costumava dizer que se fosse construir uma igreja a faria com três cruzes, pois no calvário Jesus está em meio a dois condenados. Mas estando ali com a sua cruz, torna-se solidário com aqueles que comungam da mesma sina dele. Um cristianismo com a cruz diz que todos devem se empenhar, pessoal e comunitariamente, para destruir as cruzes impostas e injustas.

  IHU On-Line – Os evangelhos de Mateus e Marcos narram o grito de Jesus na cruz do seguinte modo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. O evangelho de Lucas, de outro lado, destaca as seguintes palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Como o senhor interpreta as palavras finais de Jesus? O que a entrega ao abandono completo de Deus significa e como essa entrega total pode dar sentido à nossa vida?

Ademir Guedes Azevedo – Quero responder esta pergunta inspirando-me em dois teólogos que aprecio muito, Johan B. Metz e Jon Sobrino. A tradição lucana apresenta um Jesus totalmente abandonado nas mãos do Pai, confiante de ter cumprido até as últimas consequências a vontade daquele a quem se entregou durante toda a sua vida. Esta confiança é tão relevante que as causas de Jesus, o Reino de Deus e a fidelidade ao seu Paizinho (Abbá), não podem desaparecer jamais, mesmo com a sua morte. Ao contrário, esta morte é apenas o desabrochar de um projeto que alcança todas as gerações. Dom Pedro Casaldáliga dizia: “As minhas causas valem mais do que a minha vida”.

A fé de Jesus

Sobre este aspecto de confiança e fidelidade a Deus, narradas por São Lucas, Metz nos emociona quando fala da fé de Jesus no Pai. Fomos educados a nutrir a fé em Jesus, mas pouco nos ensinaram sobre a fé de Jesus. Agonizante na cruz, o Filho grita ao Pai e, aparentemente, não obtém resposta alguma. Parece morrer no silêncio. No entanto, enfatiza Metz, mesmo que o Pai pareça abandonar o Filho, o Filho por sua vez não abandona jamais ao seu Pai, morre confiante nele, apaixonado por Ele. Aqui está a fé de Jesus!

Já Sobrino interpreta este grito em perspectiva de encarnação. A tradição de Marcos crê que aquilo que ocorre na cruz não dá continuidade ao ministério de Jesus, pois lá onde ele está suspenso no madeiro, parece não se realizar nem o Reino nem tão pouco a ação do Pai. Na cruz, aparentemente triunfa o anti-Reino, pois não se veem os cativos libertos, os coxos andarem, os cegos enxergarem, nada disso acontece. Da mesma forma, aquele Paizinho do céu que foi sempre a energia vital do Filho não diz nada, faz silêncio total ao grito de Jesus. No entanto, é justo aqui que se realize uma nova revelação: o Pai não pode fazer nada pelo Filho porque ainda lhe falta encarnar-se na realidade humana do sofrimento, precisa experimentar a dor. Ele fica em silêncio porque está imerso no sofrimento da cruz de seu Filho, chorando a dor dele. É assim que o Pai manifesta a sua solidariedade com todas as vítimas da história que padecem injustiças e perseguições. O amor vence, mas não com a força e sim com a compaixão que assume o sofrimento dos inocentes.

IHU On-Line – Há muita literatura sobre a crise da Igreja e do cristianismo, e o próprio Papa Francisco já declarou que “hoje já não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos”. Qual é o sentido do cristianismo hoje? Ele continua a ser sal da terra e luz do mundo? Por quê?

Ademir Guedes Azevedo – Este pronunciamento do Papa Francisco que você acabou de citar foi dirigido à Cúria Romana por ocasião de um dos encontros anuais com os cardeais, realizado sempre às vésperas do Natal. Francisco insiste que o cristianismo deve ser experimentado por atração, não por proselitismo, pois já se passaram aqueles tempos de ser cristão por conveniência ou por mera tradição familiar. Este pontificado ensina-nos que o cristianismo se trata de um forte testemunho de vida, pois “a linguagem é viva quando falam as obras. Cessem, portanto, as palavras e falem as obras” (Santo Antônio).

Numa sociedade pré-moderna, era a Igreja que determinava os ritmos da vida. Predominava uma forte atmosfera religiosa. Mas graças ao projeto da modernidade – agora passo a abordar a modernidade em seus aspectos positivos, como igualdade, respeito aos direitos humanos, avanço da ciência para o bem de todos, a democracia etc. – o cristianismo começa a redescobrir um estilo teônomo, onde se respeitam as realidades seculares e o mundo, como casa comum, passa a ser visto com bons olhos pela própria reflexão teológica.

  A credibilidade do cristianismo está, portanto, no empreender processos e não no ocupar espaços, segundo o Papa. O processo é dinâmico e necessita de muito diálogo, escuta e discernimento. Ocupar espaços, ao contrário, parte de ações intransigentes, sem conhecimento da realidade e relações interpessoais.

Ser sal e luz do mundo

Romano Guardini afirmava que a essência do cristianismo é uma pessoa, Jesus Cristo, não um conjunto de doutrinas e ensinamentos a transmitir. Ser sal e luz no mundo de hoje é testemunhar que esta pessoa acolhe a todos, sem promover terrorismo religioso e discursos excludentes. Em nosso país, assistimos a verdadeiras guerras religiosas, em que o mais importante é defender um passado que não volta mais. O cristianismo será sal e luz neste mundo dividido se buscarmos viver o amor, a tolerância, a igualdade e o respeito ao próximo, sem esquecermos nunca de acariciar as feridas dos mais vulneráveis. Deus ama a todos e esse é o dogma de fé que nunca devemos esquecer.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ademir Guedes Azevedo – Agradeço pelo convite da entrevista. Parabenizo o IHU pela excelência dos conteúdos e por ser uma presença do Reino no espaço virtual. Feliz Páscoa a todos!

Texto publicado em 02.04.2021

 http://www.ihu.unisinos.br/sobre-o-ihu/159-noticias/entrevistas/608007-deus-ama-a-humanidade-foi-justo-o-esquecimento-dessa-boa-noticia-que-gerou-os-males-do-mundo

Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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