I – A Ressurreição do Senhor (Jo 20, 1-9)

Celebramos neste domingo a maior festividade da nossa fé cristã. Ao ressuscitar, Jesus Cristo nos manifesta não ser um simples mortal, mas um Deus (Rm 1, 4) que entrou em nossa história, nos ensinou o sentido da vida humana, nos revelou o projeto do Pai para a humanidade, e investiu toda a sua vida na proclamação e na realização deste projeto, que chamava de Reino de Deus, e o fez com tal coragem e coerência a ponto de sacrificar sua própria vida. Uma vida preciosa que não podia desaparecer, pois foi também uma vida destinada a moldar nossas vidas. Daí Paulo afirmar: “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã a nossa fé” (1Cor 15, 14).

O termo ressurreição é uma metáfora, a saber, pôr-se novamente de pé, pois das realidades da outra vida só podemos falar com imagens. Aqui tocamos já no âmbito de Deus, que é sempre um mistério para nós. Podemos dizer com mais precisão: Deus acolheu em si a existência histórica de Jesus. Ele agora vive em Deus tendo levado consigo tudo o que constituiu sua vida terrena, tudo o que construiu com sua liberdade, todos seus momentos felizes ou sofridos, como fica demonstrado pelas cicatrizes das chagas em suas aparições (Jo 20, 27).

A ressurreição de Cristo é a garantia da nossa própria ressurreição, pois o Espírito de Deus que acompanhou Jesus em sua vida é o mesmo Espírito que habita em nós (Rm 8, 11). Mas, como a de Cristo, nossa ressurreição não é apenas a salvação de nossa alma e nem uma volta a esta vida, como se deu com Lázaro. Ressuscitar é ser acolhido por Deus para participar de sua vida divina numa eternidade de perfeita felicidade. Deus acolhe a nossa pessoa, a saber, o que fizemos de nossa vida ao longo da nossa história pelo uso da nossa liberdade. Construímos agora nossa identidade eterna. Podemos mesmo esquecer nossas dedicações ao próximo, nossos atos de renúncia por amor fraterno, nossas ações provindas da compaixão pelos demais, nossas derrotas e nossos sofrimentos suportados com fé, mas nada disso se perde, pois entra conosco na eternidade de Deus. Nossa eternidade é como a de Cristo: eternidade de uma existência histórica, realmente vivida.

E como não podemos ser felizes sem contar com aqueles que amamos em vida, iremos reencontrá-los também vivos em Deus. Mesmo Jesus Cristo não poderia ser plenamente feliz sem contar com sua mãe, seus amigos, seus discípulos, com os quais partilhou sua existência. E ainda poderíamos acrescentar todo o ambiente no qual viveu, a natureza que admirou (Rm 8, 19-22), os alimentos que experimentou, enfim tudo o que pertenceu a sua história pessoal. Uma ressurreição ampla e total, embora não saibamos como acontecerá.

A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição confirmam que Deus é um Deus da vida. Um Deus que nos chamou à vida, que nos acompanha ao longo da nossa caminhada, que enviou seu Filho como nosso guia seguro, que veio nos trazer vida (Jo 10, 10) e que não permite que nossa vida simplesmente desapareça. A razão desta atitude é porque Deus é amor e quem ama quer que a pessoa que ama não desapareça, mas que viva para sempre. Sabemos disto pela ação do Espírito Santo em nós como expressa S. Paulo: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5). Crer na ressurreição é crer no amor de Deus por nós, é crer no Deus revelado por Jesus Cristo.

O cristão sabe ser o fim de sua viagem neste mundo uma vida feliz e eterna em Deus. Somos seres mortais sabendo que nosso futuro é a imortalidade. Neste sentido a fé na ressurreição de Cristo e em nossa ressurreição tem enorme importância para vivermos com mais paz, alegria, e sabermos superar as angústias e sofrimentos inerentes a nossa condição humana. Mesmo em meio a uma pandemia e a uma situação social dramática não podemos cair no desespero ou na depressão. Pois nossa fé nos faz olhar para frente, ela relativiza os choques inevitáveis e as dores inesperadas ao nos incutir a esperança de uma felicidade que tanto desejamos e que Deus irá nos conceder. Portanto, Cristo ressuscitado nos traz paz e alegria. Então podemos compreender o profundo significado dos votos que mutuamente nos desejamos: Feliz Páscoa! MFM

Caros amigos,
Desejo uma santa Páscoa a todos vocês. Apesar dos dias difíceis que enfrentamos, não percamos a esperança, pois a ressurreição de Cristo significa a vitória do amor e da vida. Deus é amor, Deus é vida. Sejamos seus mensageiros numa sociedade carente e desanimada.
Mario França

II – A paz esteja convosco! (Jo 20, 19-31)

A saudação de Jesus aos apóstolos reunidos no cenáculo era uma saudação bem conhecida dos judeus, já presente no Antigo Testamento, e usual entre os contemporâneos de Jesus. O termo hebraico “shalom” diz mais do que a palavra “paz” que tenta traduzi-lo. Pois abrange um feixe de significados como bem-estar, perfeição, dom divino, harmonia, vida plena, salvação. Talvez para nós a palavra “felicidade”, ainda que não corresponda perfeitamente ao sentido original, nos facilite melhor o acesso ao termo hebraico.

Neste sentido a saudação de Cristo ressuscitado a seus discípulos não se resume a uma saudação convencional, como pede a boa educação, mas implica um desejo: a felicidade que ele experimenta, ele a deseja a seus amigos. Uma felicidade que vem de Deus, que não pode ser obtida pelo mundo (Jo 14, 27), que ultrapassa toda compreensão (Fl 4, 7), que é fruto do Espírito Santo (Rm 8, 6), que é sintonia com Deus (Rm 5, 1). Uma felicidade que não se reduz à abundância de bens, à ausência de conflitos, à segurança sem ameaças.

Pois se trata de uma realidade diferente, presente em nosso coração mesmo quando experimentamos desafios, contrariedades e mesmo conflitos em nosso dia a dia. Como as águas profundas dos oceanos não se perturbam com as tempestades da superfície. Jesus Cristo experimentou esta felicidade ao longo de sua vida, apesar dos conflitos frequentes, e é esta felicidade que ele deseja a seus amigos.

Portanto, para nós cristãos, a compreensão correta desta felicidade só Cristo pode nos comunicar. Sua felicidade se originava de sua perfeita obediência ao Pai, de sua fidelidade até o fim à proclamação e à realização do Reino de Deus, de uma vida para os demais, sobretudo para os mais necessitados. Do mesmo modo esta felicidade profunda é experimentada por aqueles que vivem voltados para os outros, atentos e prestativos a seus semelhantes carentes ou marginalizados. Experiência íntima e muito pessoal, difícil de explicar, mas profundamente gratificante. Já o próprio Jesus dissera: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (At 20, 35). Portanto esta felicidade não existe onde faltam amor e justiça, onde reina o egoísmo e a indiferença com relação aos sofridos da sociedade.

Mas na mesma cena aparece Cristo doando seu Espírito aos apóstolos: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22). Pois o Espírito que o acompanhou em sua existência, desde o início de sua vida pública (Mc 1, 12; Lc 4, 18), nas noites solitárias em oração (Lc 6, 12) e na iminência de sua própria morte (Lc 22, 41s), nos é comunicado. Pois só com a luz e a força do Espírito Santo seremos cristãos autênticos. De fato toda a ação do Espírito em nós é a de nos conformar com a pessoa de Jesus Cristo: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também segundo o Espírito” (Gl 5, 25). Na fidelidade ao Espírito experimentamos já nesta vida a felicidade de Deus, embora limitada por nossa condição humana, mas sabendo que este mesmo Espírito, como força de Deus, nos garante a felicidade eterna e perfeita na vida futura (Rm 8, 11).

Confessamos que Deus é amor (1Jo 4, 16), que quer, portanto, nossa felicidade, que podemos já experimenta-la profundamente em nossa vida, mesmo que a trágica pandemia que se abateu sobre a humanidade num primeiro momento nos entristeça, angustie, desanime e deprima. Mas temos que constatar igualmente a ação intensa do Espírito Santo estimulando muitos dos nossos contemporâneos a assumirem a postura de Jesus Cristo, saindo de sua zona de conforto e batalhando junto com outros para minorar os sofrimentos causados pelo desemprego, pela solidão, pela fome, que atinge a tantos em nossos dias. Iniciativas gratuitas, sem outra finalidade que a de ajudar o próximo caído na estrada (Lc 10, 30-37), mas que certamente proporcionam a seus autores aquela felicidade que Jesus desejava a seus apóstolos. MFM

Que este período pascal nos dê força para suportarmos a difícil situação que vivemos. Mario França

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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