De Aracaju, papai recebeu de vovô Zeca o livro Palavras Cínicas, de Albino Forjaz de Sampaio, com observações feitas.  Esclareço que estávamos, provavelmente, no ano de 1964. Tinha quatorze anos, portanto. Eu li, me entusiasmei e comentei com Miburge, que era um ano mais adiantado do que eu no ginásio. Aí começou o drama. Miburge achou de mostrar o livro ao padre Artur, que, com a autoridade de diretor do ginásio, o confiscou. Cobrei de Miburge, que me deu uma desculpa esfarrapada, procurei o padre, argumentei que o livro era de meu avô, mas nada o demoveu. O confisco foi mantido e o livro, certamente, destruído. Ouviria, depois, as reclamações de vovô Zeca, sem concordar com minhas explicações.  O fato me ficou, de modo que o nome do autor e do livro nunca me saiu da cabeça.

Na última vez em que estive em Lisboa, passando por uma  livraria que fica no primeiro trecho da rua que dá no Chiado, a lembrança me despertou a iniciativa de perguntar a vendedora, uma senhora já de certa idade, extremamente simpática, se tinha o livro. Tinha. Cinquenta e um anos depois, Palavras Cínicas voltava às minhas mãos.

Vovô Zeca e padre Artur já morreram. Miburge, há anos, não o vejo. Se, à época dos fatos, eu tinha quatorze anos, agora ostento sessenta e cinco estrelas. Ou seja, das quatro pessoas envolvidas, apenas duas, as mais novas, estão vivas. E o interessante é que Palavras Cínicas continua sendo editado, a situação factual anterior foi restaurada, o livro, em outro formato, capa dura, volta as minhas mãos, agora, plenamente cuidadosa, para não emprestá-lo mais a Miburge. Paciência, meu amigo, paciência, mas gato escaldado corre de água fria. É o caso. Pode ser que o mundo dê algumas voltas para trás, que a gente se acorde aluno outra vez do Ginásio Estadual de Itabaiana, e, você resolva mostrar o livro ao padre Artur. Como o final se inscreve com o confisco, eu não quero mais passar pela dificuldade de dar explicações a vovô Zeca para o destino dado pelo padre Artur, nem pela contrariedade da perda. Leio, agora, como se fosse a primeira vez, mas, gostando ou não, com você, meu amigo, não me arrisco mais, nem nada comento. E assim salvo meu exemplar. Com minhas escusas – Correio de Sergipe, 21 de novembro de 2015.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras   

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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