O livro, já antigo, de José Comblin, intitulado Échec de l’ Action Catholique? (Fracasso da Ação Católica?), publicado no ano 1961 pelas Éditions Universitaires de Paris, ainda tem algo a nos dizer hoje? Focado numa situação do passado, concretamente na situação da Ação Católica nos anos 1950-60, ainda pode suscitar nosso interesse hoje?

Vejamos primeiro os debates suscitados no ambiente da Universidade Católica de Lovaina, onde Joseph acaba de terminar seu curso em Teologia, que focalizam situações vivenciadas pela Ação Católica e pela Igreja Católica em geral, na Europa, sessenta anos atrás. Diversos professores de Comblin participam dos debates, como Philips, Moeller, Dondeyne, Thils, Suenens, Cerfaux, Aubert. Principalmente Gustave Thils (1909-2000), que publica para o grande público e produz uma série de publicações muito lidas e comentadas: Théologie des Réalités terrestres (2 vol. 1946-1949); Christianisme sans Religion? (1968); Syncrétisme ou Catholicité? (1967) [‘Teologia das realidades terrestres’; ‘Cristianismo sem religião?’; ‘Sincretismo ou catolicidade?’]. É principalmente seu livro anterior, Mission du Clergé et du Laicat (‘Missão do Clero e do Laicato’, 1945) que deve ter atraído a atenção do estudante Comblin. Outra referência é Gerard Philips (1899-1972), Professor de Teologia Dogmática, Assistente Eclesiástico Nacional da Ação Católica na Bélgica e, como tal, participante do Congresso Mundial do Apostolado do Laicato, em Roma, 1957. No livro que aqui comento, Comblin o cita seis vezes contra Journet três vezes, Hourdin, Garonne, Congar (Jalons pour une Thélogie du Laicat,Seuil, Paris,1953: ‘Balizas para uma Teologia do Laicato’) duas vezes, Suenens, Rahner, Civardi e Hoyois uma vez. Outros nomes entram no debate: Charles Moeller (1912-1986), o querido Professor Lucien Cerfaux (1883-1968) e, finalmente, o Professor historiador Roger Aubert (1914-2009), cujos enfoques historiográficos marcam a produção teológica de José Comblin ao longo da vida.

O livro que estamos comentando é o primeiro de uma longa lista que Comblin escreve em torno de questões do momento, ou ainda no sentido de assessorar autoridades eclesiásticas. Aqui já descobrimos uma importante opção intelectual de sua parte: dar mais importância à assessoria intelectual em torno de questões do momento que ao ensino regular em seminários ou universidades. Essa opção percorre toda a sua vida. Os dois volumes de sua Théologie de la Paix (1961-1962) foram escritos a pedido do Arcebispo Suenens, de Bruxelas. E, na América Latina, Comblin será mais tarde assessor não oficial de quatro bispos: Helder Camara, José Maria Pires, Manuel Gonzales (Chile) e Leônidas Proaño (Ecuador).

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Um sentimento de desconforto.

O que nos interessa aqui é saber se essas reflexões em torno da Ação Católica, de sessenta anos atrás, contêm algo que nos interessa hoje. Para tanto, vejamos por uns instantes quais os sentimentos do autor ao decidir comentar um possível ‘fracasso’ da Ação Católica.

Ao abrir o livro hoje, sentimos que nele vai a comoção, e até desorientação, de um jovem sacerdote que pensou penetrar num mundo de referências seguras, e em pouco tempo constata que esse mundo se desmorona rapidamente.

Quando, em 1950, aos vinte e sete anos, ele é nomeado vigário auxiliar numa paróquia de Bruxelas, ele carrega consigo o entusiasmo de uma geração de jovens sacerdotes que têm como modelo o Padre Joseph Cardijn (1882-1967), fundador da Juventude Operária Católica (JOC), um movimento na época em plena expansão, já divulgado em 60 países. Mas na paróquia não se sente nada disso. Nela reina um sentimento de perda. A assistência à missa diminui aos poucos, as vocações sacerdotais também, os católicos se sentem marginalizados em meio ao progresso das ciências e as vivências de novas liberdades. A paróquia, instrumento principal da pastoral católica ao longo de séculos, não cumpre mais sua função social de formar um ‘povo de Deus’. Crenças secularmente incontestes desmoronam e não há resposta pronta. Desorientação por toda parte (o que escrevo aqui representa a situação em Bruxelas e nas cidades grandes. No interior, a situação é bem diferente). Numa entrevista, concedida em 2008 (três anos antes de sua morte) a um jornal chileno, Comblin rememora esse período de sua vida (a tradução do castelhano é minha) e cava fundo: eu não queria mais assistir a essa lenta decadência da igreja na Europa, sobretudo com a convicção de que esse processo era o resultado de erros gigantescos da hierarquia católica, que nunca entendeu a evolução do continente, porque queria defender seus privilégios da cristandade medieval. Será que a Ação Católica é uma resposta?

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A Ação Católica.

A Ação Católica emerge na igreja católica nos inícios da década de 1920, por iniciativa de sacerdotes decepcionados com o papel exercido pela igreja por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como foi possível que, quando países ditos cristãos partiram para uma guerra fratricida tão cruel, a igreja ficou em silêncio? Como foi possível que a igreja católica na França, por exemplo, deixou de tomar posição no famoso caso Dreyfus? Um militar de alto patente é injustamente condenado por ser judeu, e as autoridades eclesiásticas não reagem. Esse caso, como dizem os historiadores, foi o estopim da convulsão de 1914-1918.

A parte mais consciente do clero, na França e na Bélgica, pondera: é preciso salvaguardar a juventude católica de tais aventuras perigosas. Efetivamente, a Ação Católica consegue preservar grandes segmentos da juventude católica da ‘contaminação’ por ideias que passam por ‘modernas’, mas na realidade são perigosas. Trata-se de jovens que estão sob o controle da igreja católica. Nesse sentido se pode dizer que a Ação Católica perpetua e atualiza o trabalho tradicional da paróquia, no sentido de preservar, proteger, afastar influências consideradas nefastas, dinamizar energias positivas.

Quando, na mesma década de 1920, a paróquia entra em declínio, as esperanças se voltam para a Ação Católica. Nas cidades grandes, como Paris, Marseille, Bordeaux, Lille, Bruxelas, etc. a assistência à missa e aos sacramentos vai diminuindo gradativamente. O catolicismo ainda resiste no mundo rural, mas, nas cidades, o declínio é patente. O Professor Gerard Philips, mencionado acima, escreve: verifica-se um êxodo de fiéis nas cidades e um refúgio do catolicismo no mundo rural.

No final do decênio, em 1929, o Papa Pio XI também volta sua atenção para o fenômeno da perda de fieis e vê igualmente a salvação do catolicismo na Ação Católica. Ele dá a entender que ela teria capacidade de reconquistar a cultura ocidental ao catolicismo.  Ou, dito em outros termos: ele atribui à Ação Católica uma capacidade ‘apostólica’. É o que se entende pela expressão ‘Apostolado Leigo’. O papa insiste: ‘que a Ação Católica venha socorrer o clero na missão apostólica’.

No livro em apreço, Comblin dá a entender – sempre em termos velados – que o apelo do papa é baseado numa pressuposição. É uma constatação extremamente grave que implica em afirmar que o catolicismo tenha perdido a apostolicidade dos apóstolos de Jesus no transcurso da história. Que não consegue mais ‘evangelizar’, pois não adianta falar em ‘apostolado’ num sentido que não corresponde ao que se lê nos evangelhos. Enraizada numa longa história de ritos, regulamentos, dogmas, comportamentos morais e tradições transmitidas de geração em geração, a igreja católica não tem nada a oferecer a quem está caminho de abandonar tais ritos, regulamentos, moral e costumes. Enquanto os sacerdotes ainda podem camuflar essa penosa questão entendendo por ‘evangelizar’ a execução de ritos sacramentais, a celebração de missas, a reunião do povo em torno da igreja paroquial, os leigos demonstram à clara luz do dia essa incapacidade de evangelizar. Eles mesmos não sabem mais o que é o evangelho. Confundem entre evangelho e ritualismo, moralismo, preservação da família e das tradições, sabedoria de séculos.

A Ação Católica, enquanto exerce bem seu papel de educadora da juventude católica, não consegue corresponder ao que o papa dela espera. Ela não penetra naqueles segmentos da sociedade que não se declaram mais ‘afiliados’ a alguma instituição religiosa (e que, de modo não tão exato, costumam ser chamados de ‘sem religião’).

Observo aqui que esses segmentos, desde as análises de observadores como Joseph Comblin, não deixaram de crescer.  Em 1929 ainda podiam ser ignorados. Mas hoje, em 2021, os ‘no affiliated’ a alguma religião já são um quarto da população dos Estados Unidos (veja os números do Pew Center na Internet). A situação na Europa não deve ser muito diferente. Na América Latina, os ‘sem filiação religiosa’ já passam dos 10 %.  É o segmento que mais cresce, nas estatísticas sobre o item ‘religião’.

Em 1929, o Papa não viu, ou não quis ver, que a igreja católica não tinha condições de enfrentar a modernidade, ou seja, a visão do mundo que se estava de desenvolvendo – lenta e persistentemente – após os erros gigantescos, cometidos pela hierarquia na Idade Média, como declara Comblin na entrevista acima citada. A impressão é que o Papa Pio XI estava longe de perceber a fragilidade e provisoriedade da igreja católica, assim como de qualquer institucionalização do espírito cristão, seja ela a Ação Católica ou qualquer outra iniciativa. No momento em que ele pensou conferir à Ação Católica uma missão ‘apostólica’, que seria a de re-evangelizar segmentos significativos de uma população europeia em processo de afastamento da fé tradicional (um processo que na época se chamava ‘secularização’), ele falhou em sua análise da realidade. A impressão que se tem é que o Papa Pio XI, por ‘apostolado’, entendia o cuidado com o povo cristão, a proteção desse povo diante de perigos ‘de fora’, não a conquista do mundo segundo os ordenamentos de Jesus de Nazaré. Preservação de segmentos conservados contra o comunismo e o socialismo. Por exemplo: uma peregrinação de Jocistas a Roma só é recebida pelo Papa despois de este certificar que a JOC não é ‘socialista’.

A ineficácia da palavra do Papa Pio XI ainda se verificou mais tarde, e de modo traumático. Numa mensagem dirigida aos bispos alemães em 1937 sob as palavras Mit brennender Sorge (‘com grande preocupação’), o papa escreveu com insistência: ‘guardem distância do nazismo’. Palavras que se dissiparam no vento. Os bispos não fizeram nada. Foi preciso que, bem mais tarde, um teólogo como Metz apontasse o terrível campo de concentração de Auschwitz, onde milhares e milhares de judeus foram cremados vivos, para que a igreja alemã alertasse para o abismo em que caíra.

O apelo do papa patenteia uma realidade dura, difícil de ser aceita em meios católicos: não dá como enfrentar o mundo moderno sem rever métodos secularmente usados para congregar o povo. Lutar contra as ‘liberdades modernas’ ou contra ‘o progresso das ciências’ é perder tempo.

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A instituição católica, tal qual se apresenta hoje, pode ser considerada ‘apostólica’?

O jovem teólogo Comblin vai mais longe que seu Mestre Philips na análise da situação em que a instituição católica se encontra. Quando esse último, na página 82 do livro em apreço, constata que muitos leigos se declaram incapazes de sustentar com não-católicos um contato realmente produtivo, Comblin comenta: isso revela a fraqueza de alma dos cristãos. Se, no fundo de si mesmos, os cristãos não têm uma tensão espiritual, o apostolado é impossível (ibidem).

Essas palavras fazem pensar: fraqueza de alma dos cristãos; falta de tensão espiritual; e, no texto citado mais acima, erros gigantescos cometidos pela hierarquia católica no passado.

No passado, a igreja era especialista em pregar ‘ideias sábias’, preceitos de uma sabedoria transmitida de geração em geração: respeito às autoridades, obediência a regras religiosas e morais, preservação da família e das boas tradições. Isso foi a tarefa da igreja durante séculos e nisso reside, exatamente, a confusão. Pois o evangelho não é uma sabedoria transmitida de geração em geração, é a subversão dessa sabedoria milenar. É outra coisa. Como expressa Paulo em sua prosa inconfundível, no corpo místico de Cristo não vigora a hierarquia ‘da boa tradição’, mas uma hierarquia invertida: o fraco no centro, o forte a serviço do fraco. Ou, como diz o próprio Jesus em Lucas 14, 26, de modo extremamente incisivo: se quisermos seguir a ele, temos de aprender a ‘odiar’ os que amamos (os parentes): se alguém se aproxima de mim e não odeia (o verbo grego ‘miseô’ significa ‘odiar, rejeitar, negar’) seu próprio pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs e até a si mesmo, ele não pode ser meu discípulo.  Não se trata aqui de um ‘ódio’ por desavença ou desentendimento, mas por entendimento de um nível diferente de relacionamento com os demais e consigo mesmo, como demonstra a inclusão das palavras: (odiar) até a si mesmo. Uma verdadeira subversão dos valores, uma ‘Umwertung aller Werte’, como escreveu Nietzsche. Eis o cristianismo de Jesus, desconhecido por quem pensa que o cristão precisa se integrar na sociedade existente, obedecendo, respeitando, seguindo as regras de uma convivência harmoniosa.

Jesus usa outras expressões igualmente fortes para expressar o que ele vem fazer, como a exigência de enxergar o bem numa pessoa que não aparenta nada de bem, perdoar setenta vezes sete vezes, andar na companhia de exploradores do povo (publicanos) e de mulheres da vida. Isso não tem nada de ‘sabedoria ancestral’. É, como escreve Comblin, tensão espiritual, superação de uma fraqueza de alma.

Curvado sob o peso de tradições seculares, a igreja católica tem dificuldade em captar a novidade do evangelho. Seu passado pesa muito no presente. A maioria dos cristãos não entende que o evangelho postula uma rejeição da sabedoria tradicional que recomenda obediência, seguimento das leis, respeito pelas autoridades, bom comportamento. Que o evangelho é uma ‘boa nova’ subversiva, o seguimento de um Jesus subversivo. Para a maioria dos fieis, Jesus não constitui mais nenhum desafio. Foi ‘amansado’, integrado na cultura.  Não é mais novidade, não tem mais nada a dizer, fica enquadrado em dogmas, doutrinas e ritos, aparecendo nas imagens de um Jesus Cristo ‘humilde e doce de coração’, de um ‘Coração de Jesus’, integrado na boa família, educador de boas maneiras. Jesus revolucionário? Nem pensar.

Ao apontar erros gigantescos cometidos pela hierarquia, principalmente ao longo da Idade Média, Comblin alude ao fato que, naquele período, se formou um ‘povo de Deus’ por meio de uma hegemonia política, cultural e religiosa. Não por meio do apostolado, no sentido evangélico.

A mutação do sentido atribuído ao termo apostolado foi uma evolução de séculos, e hoje ficamos perplexos, pois nos damos conta que resgatar o sentido original do apostolado é coisa muito difícil hoje, como o livro em apreço deixa entender a cada página. Mudar de postura psicológica, convencer-se que é preciso mudar de mentalidade e abandonar o complexo de superioridade de quem se sente herdeiro de um glorioso passado. Não se vira página de séculos de triunfalismo católico por sem esforços continuados. Um passado tão glorioso como o do catolicismo, se nao for redimido pelo espírito genuino do cristianismo, ameaça voltar com redobrado vigor, como alertam não poucos observadores. Como reza o ditado: ´Quem desconhece o passado é condenado a repeti-lo‘. Ou ainda: ´O passado vive em nós‘.Estamos tão acostumados a ver a igreja no centro, o bispo com mitra na cabeça e o padre com microfone na mão, que perdemos o senso do que seja ´apostolado leigo‘.

Para concluir: podemos dizer que o livro Fracassou a Ação Católica chega a uma conclusão que combina perfeitamente com o dito de Chesterton: o cristianismo não falhou: ainda não foi tentado.

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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