O intrusão do Covid-19 trouxe grandes questionamentos para a existência humana. Para frear sua propagação se impuseram várias medidas restritivas que provocaram impaciência, indignação,desesperança e fatalismo. Mas também criaram a oportunidade de fé, de esperança e sobretudo de reflexão sobre o sentido de nossa presença neste planeta e de um aprendizado para a vida que deve seguir melhor, mais terna e fraterna.
O vírus invisível desmascarou a arrogância do ser humano moderno que se julgava um pequeno deus, capaz de, com a tecnociência, dominar as forças da natureza e submetê-las ao aeu serviço. O Covid-19 demonstrou que somente nos assenhoreamos da natureza se obedecermos a ela. Não somos donos mas parte da natureza junto e não em cima dos demais seres abraçados como irmãos e irmãs.
O Covid-19 nos revelou como seres expostos à imprevisilidade e à vulnerabilidade, quer dizer, não dominamos as condições que garantem ou ameaçam nossa vida. Quem, afora alguns epidemiologistas, como um dos maiores, David Qammen, previu a chegada ameaçadora do vírus? São poucos países que tem um SUS (Sistema Único de Saúde) como nós no Brasil. Não o tinham os USA, a Itália, a Espanha, o México entre otros. Ademais somos seres que não possuem nenhum órgão especializado (Mangelwesen de Arnold Gehlen) que assegure a nossa existência nem possuímos um habitat próprio, como cada espécie da natureza possui. Precisamos construir pela interação com a natureza e pelo trabalho o nosso habitat, vale dizer, um lugar hospitaleiro no qual podemos viver com sem maiores ameaças e em paz.
O vírus ataca as pessoas, ricas e pobres, as classes, as religiões e todas as nações do planeta. As armas de destruição em massa sobre as quais se funda o poder dos impérios atuais em busca de hegemonia mundial e até de dominação sobre outros povos, se tornaram ineficazes e até ridículas. O que nos está salvando não são os mantras da cultura do capital (o lucro, a concorrência, o individualismo, o assalto aos bens e serviços da natureza, o domínio do mercado sobre a sociedade) mas os valores quase ausentes nesse sistema capitalista e neoliberal: a centralidade da vida, a interdependência entre todos, a solidariedade, a generosidade, o cuidado de uns para com os outros e para com os bens naturais escassos, as relações sociais mais amigáveis contra a voracidade insaciável do mercado, um estado social que cuida das demandas básicas de seus cidadãos.Eis um aprendizado que estamos fazendo e que deve ser internalizado e fundar um novo paradigma de comportamento, para que não se traduza apenas por alguns atos mas se torne uma atitude permanente, pois é essa que transforma.
A indignação e a impaciência são compreensíveis, pois somos seres sociais. Não poder conviver, abraçar e beijar nossos entes queridos e amigos é penoso e entristecedor. Assumimos as renúncias como o cuidado para conosco mesmos e como solidariedade para com os demais para não contaminá-los ou nós mesmos não sermos contaminados. A indignação importa que se transforme em empatia para os que sofrem, seja nos hospitais, seja com as famílias que perderam seus entes queridos.
O fatalismo significa aceitar um fato como inevitável face ao qual nada podemos fazer. Essa é uma visão negacionista que nos leva à inércia e ao tédio. Esquece que o ser humano foi criado criador; possui dentro de si energias escondidas que são mais fortes que a dureza dos acontecimentos. Podemos resistir a eles, evitá-los e, mesmo acontecidos, sempre é possível tirar lições deles e assim superá-los. Nada é fatal nesse mundo. Somente o é a morte. Mas a morte não precisa significar o fim de nossa peregrinação mas o momento de transfiguração, o exercício da suprema liberdade ao não permitir que a vida nos seja tirada, mas entregá-la a um Maior e despedir-se des te mundo, agradecidos pelo fato de termos existido. É inspiradora a última palavra de Santa Clara, a companheira de São Francisco de Assis:”Senhor, te agradeço por me teres criado”. Inclinou a cabeça ao lado e expirou e assim caiu nos braços de Deus-Pai-e-Mãe de bondade que a esperavam.
Face à avassaladora pandemia urge suscitar a fé e alimentar a esperança. Fé, em seu sentido bíblico, significa mais que acolher verdades e aderir a doutrinas. É antes de tudo uma confiança em Alguém que acompanha nossos passos, conhece todos os nossos altos e baixos, que sabe do pó do qual somos feitos e tem piedade de nós. Por isso, como diz de forma consoladora, o salmo 103:”Ele não está sempre acusando nem guarda rancor para sempre; como um pai sente compaixão por seus filhos, assim o Senhor tem compaixão por aqueles que a Ele se confiam porque conhece nossa natureza e se lembra de que somos pó”(v.9-14). Ter fé significa que a vida, por mais penosa que seja, tem sentido e vale a pena assumi-la e amá-la. Hoje a assumimos em sua fragilidade e confiamos que esse Alguém pode se compadecer de nós e nos salvar do vírus letal.
A esperança nos faz compreender que o invisível é parte do visível. A realidade empírica e dada não é toda a realidade. Ela esconde algo invisível que pertence à nossa condição humana: as incontáveis possibilidades e virtualidades escondidas dentro de nós. Podemos desentranhá-las inventar uma solução nova aos nossos problemas. É a esperança que nos permite sonhar e pensar em mundos ainda não vividos e ensaiados mas que somos desafiados a moldá-los. Enquanto houver esperança, jamais existirão becos sem saída. Pela esperança nos convencemos a nós mesmos de que o Covid-19 não representará o “Next Big One”, o grande vírus terminal, contra o qual nenhuma vacina seria eficaz e que poderia liquidar grande parte da biosfera e levar milhões da humanidade a um desfecho trágico.
Ainda temos futuro. Nascidos no coração das grandes estrelas vermelhas, há bilhões de anos, seguiremos irradiando. Alimenta nossa esperança uma das últimas frases da Laudato Si: como cuidar da Casa Comum do Papa Francisco:”Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança”(n.244). 07/04/2021
Obs: Leonardo Boff é filósofo e teólogo e escreveu: O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amor social a sair em breve pela Vozes 2021.