Estamos acostumados a falar de Deus a partir da positividade. Deus da “vitória”, Deus “libertador”, Deus da “justiça”, etc. Porém, esquecemos também que Ele é o Deus que assumiu a negatividade e, neste aspecto crucial, entramos no mais profundo da revelação. A tradição ocidental sempre julgou o Ser como a base que sustenta a existência. Fora do Ser não há nada e, portanto, tudo o resto vem julgado com suspeitas. No entanto, a fé cristã revoluciona toda forma filosófica de raciocínio quando se depara com o escândalo da cruz, onde reside o não ser.
Em si, a cruz será sempre um escândalo pelo instrumento de tortura que representa. Em grau maior é um escândalo quando vem aplicada aos inocentes e justos. Em grau ainda maior, torna-se escândalo pois nela foi cravado o Filho de Deus, Jesus. Não adianta tentar suavizar este escândalo com palavras de conforto, jogando tudo para a outra vida. Pelo contrário, o cristianismo só é verdadeiro se for fiel ao escândalo da cruz, elemento base que deve servir de crítica para saber se realmente somos fiéis ao Evangelho. Alguns ambientes tentam esconder o crucificado, trocando-o pelo ressuscitado. Mas o ressuscitado é o produto fiel da cruz assumida, até as suas últimas consequências.
Devemos mergulhar mais fundo para colhermos a singularidade da cruz de Cristo. Nela, segundo a narrativa de Marcos, ocorre algo terrível e assustador: um homem inocente e justo, agoniza e grita ao Pai, porém não ouve nada, senão um silêncio cortante. Ali, justo naquela hora de agonia, parece que Jesus não vê acontecer o reino que tanto pregou. Imóvel na pobreza daquele lenho, não se vê os cegos enxergarem, os surdos ouvirem, os coxos andarem…nada! Parece que o anti-reino está triunfando. Mas o mais doloroso: Jesus, com seu grito sufocado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Parece não ouvir nenhuma reação daquele que sempre o chamou por paizinho (Abbá). Onde foi parar seu Deus a quem foi fiel até o fim, buscando beber a última gota do cálice de sua vontade? No escândalo da cruz, o pecado parece ser mais forte. Mas será mesmo isso?
No entanto, o mistério da cruz traz um “não-dizer” e um “não-fazer” (silêncio) de Deus diante do sofrimento do Filho. Um olhar de fé nos leva a descobrir algo a mais da revelação. O Pai renuncia ao seu poder, mas para encarnar-se no sofrimento do Filho, por isso, o Pai quer livrar o Filho do sofrimento, mas não o pode fazer. Neste sentido, Deus torna-se igual a Jesus, pois faltava ao Pai conhecer a plenitude daquela humanidade experimentada pelo Filho, aquela humanidade imersa no sofrimento. Na cruz, Deus distancia-se do crucificado, para aproximar-se do seu sofrimento, ou seja, para saber o que significa passar pela dor. Aquela velha imagem de deus, tão enraizada nos gregos, vem superada, pois daqui em diante Deus conhece o páthos, pois não é mais uma divindade apática ao sofrimento. O Filho, ao levar as suas chagas para o seio da Trindade, torna o Pai igual a ele, por meio de sua cruz escandalosa. Daqui para a frente, devemos admitir que a Boa Nova (o Evangelho) apresenta uma outra face e não devemos negá-la ou diminuí-la jamais: o Evangelho da cruz não é outro senão a dor de Deus por toda a humanidade. Ele só nos cura, porque se feriu conosco e, só assim, sabe o remédio exato para sanar a nossa dor: a ressurreição.
Só poderemos dar sentido ao que está acontecendo atualmente com a humanidade se não fugirmos do escândalo da cruz. Enquanto escrevo estas linhas me deparo com um número alarmante de vidas ceifadas por um vírus que expande medo e terror por todo o mundo. Não podemos suavizar a ausência destas vidas que nos deixaram. Elas são as vítimas da história, da história que nós, inebriados pelo poder e pela ideia exagerada de progresso, escrevemos. A atitude de Deus também é aquela do silêncio, pois Ele está mergulhado na dor das vítimas, visto que não consegue ficar apático. Ele não pode agir pela força, uma vez que para ser solidário, escolheu a via da crucificação para revelar-se como um Deus bom. Deus está chorando porque está sentindo a intensidade da dor da humanidade neste momento de sua história. Justo neste seu choro reside a sua parcialidade, ou seja, a sua opção preferencial pelas vítimas. Creio que ainda não choramos o suficiente a partida destas vítimas. Sem solidariedade e sem a experiência das lágrimas, não há Cristianismo autêntico e a cruz de Cristo correrá o sério risco de cair no esquecimento.
(Goiânia/GO, 16 de fevereiro de 2021)
Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.