I – Jesus tentado no deserto (Mc 1, 12-15)

O episódio das tentações aparece no início da vida pública de Jesus nos três evangelhos sinóticos (Marcos, Lucas e Mateus). Seria, segundo alguns estudiosos, em vista de chamar a atenção para um fenômeno que acompanhou Jesus durante toda a sua vida neste mundo. Como explicar tal afirmação?

Vejamos. Se de um lado somos seres espirituais, de outro, o nosso espírito se encontra num corpo material, o qual apresenta necessidades, tensões, carências, como podemos pessoalmente experimentar cada dia. Temos que satisfazer a fome material, o desejo de sermos reconhecidos socialmente, a necessidade de possuirmos bens, a ânsia de uma realização afetiva, a resposta para nosso desejo de saber. Tudo isto brota do nosso interior. Mas como somos seres sociais, também através do nosso corpo, estamos constantemente interagindo com outros seres humanos, os quais por suas palavras, seus modos de viver, suas opções pessoais, também representam fatores que nos atingem e nos influenciam.

Enquanto seres dotados de liberdade tudo podemos, mas enquanto esta liberdade está situada num corpo material, ela se encontra limitada, condicionada por tudo que nos advém dos sentidos materiais e do entorno humano onde vivemos. Usando um termo tradicional podemos nos definir como seres constantemente tentados pelos estímulos que provêm de dentro e de fora em nossa pessoa.

Alguns desses estímulos podem ser caracterizados como bons, pois nos ajudam em nossa caminhada pela vida. Aqui poderíamos elencar os bons exemplos, os testemunhos de cristãos autênticos, a participação num grupo, a leitura de um livro, a presença em nossa vida de pessoas significativas, mesmo depois de mortas como ancestrais ou santos de nossa devoção. Todos constituem um estímulo que nos levam a sermos mais coerentes no seguimento de Cristo.

Mas nos deparamos também com outros estímulos ou com outras tendências, provindas do nosso interior ou da sociedade envolvente, que dificultam sobremaneira viver nossa fé. As pulsões que experimentamos em nosso corpo querem satisfações imediatas, seja no âmbito do poder, do prazer ou do reconhecimento social, erigindo-se como meta a ser alcançada e nos tornando seres egoístas e incapazes do amor fraterno. Trata-se do que comumente chamamos de tentação. Entretanto, mais precisamente, a tentação é um fenômeno neutro, intrínseco em qualquer ser humano e que nos acompanha sempre.

Pedimos no Pai-Nosso que Deus não nos prive das tentações, pois deixaríamos de ser humanos,  mas que não nos deixe cair nas más tentações. Jesus Cristo como verdadeiramente homem experimentou tentações, talvez a maior delas a de não seguir a vontade do Pai em proclamar e realizar o Reino de Deus. Daí sua forte reação às palavras de Pedro que queria dissuadi-lo de ir a Jerusalém, onde sofreria sua paixão e morte: “Vai para trás de mim, satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, pois não pensas de acordo com Deus, mas de acordo com os homens” (M 16, 23).

O tempo da quaresma nos convida a examinarmos os estímulos, interiores e exteriores, que nos atingem, no sentido de valorizar e potencializar mais aqueles que mais nos assemelham a Jesus Cristo, sempre com a ajuda imprescindível da luz do Espírito Santo: vida de oração, contatos pessoais, apelos dos mais pobres, dos solitários, dos desanimados, boas leituras, ajudas da mídia, pequenas renúncias, para citar alguns exemplos. Mas igualmente para resistirmos aos estímulos que no fecham em nosso egoísmo, nos fazem vaidosos, nos impelem para mais bens materiais e mais poder, os quais caracterizam a atual sociedade individualista, consumista, indiferente aos mais necessitados e aos que mais sofrem nessa época devido à pandemia do covid.

É importante que este tempo que Deus nos proporciona seja realmente aproveitado, modifique algo em nossa vida, deixe consequências. Não importa que sejam ações importantes ou pequenas em favor do nosso próximo, pois, desde que comandadas pelo amor, tocam profundamente a Deus. Pois nos bons estímulos que experimentamos está sempre presente o Espirito Santo, infundindo em nós o amor que vem de Deus (Rm 5,5). MFM

II – Transfiguração (Mc 9, 2-10)

Para podermos entender o sentido desta cena da transfiguração devemos primeiramente considerar que, nós cristãos, vivemos em dois mundos. Além da nossa vida nesta terra ao longo dos anos, convivemos com outra vida apresentada e fornecida por nossa fé. Deste modo o cristão vive em dois mundos, que se relacionam, mas não se identificam.

O mundo presente, experimentado por todos nós, alterna momentos felizes com outros doloridos, vitórias com derrotas, sucessos com decepções, momentos de paz com fases de angústia. A pandemia do COVID que assola o planeta deixando em seu rastro mortes, lutos, tristezas, desempregados, famintos e desesperados, nos leva a perguntar: é isto que constitui a vida humana, já tão breve, já tão imperfeita?

A fé cristã nos abre para uma vida futura em Deus e oferece sentido para uma realidade que nos parecia absurda. De fato, ela nos ensina que a vida futura já é construída a partir da vida presente. Pois cada opção livre que realizamos tem um peso de eternidade, já que pertence à nossa história e à nossa identidade. Ao longo do tempo construímos o que somos pela atuação da nossa liberdade na fidelidade ou não ao Espírito Santo, que nos inspira e capacita a amarmos nossos semelhantes.

Consequentemente somos diversamente avaliados por estes dois mundos: o mundo presente considera vencedores os que tiveram sucesso em seus empreendimentos, os que alcançaram poder, os que usufruíram os prazeres da vida, os ricos e os famosos. Já o mundo futuro julga vencedores aqueles que venceram a tendência egocêntrica, o individualismo, a indiferença pelos outros e, para além de sua vida familiar e profissional, se voltaram para seus semelhantes, sobretudo para os pobres e marginalizados da sociedade.

O cristão não se angustia por experimentar que sua ânsia profunda de paz e de felicidade não consegue se realizar nesta vida, emergindo apenas em algumas ocasiões frágeis e passageiras. Pois ele é fortalecido pela esperança numa felicidade futura em Deus, prometida por Jesus Cristo para todos que fazem o bem nesta vida (Mt 25, 34-40). É esta esperança que o faz relativizar os reveses e os infortúnios desta vida, não se entregando ao desespero e ao desânimo.

Observemos, entretanto, que as realidades desta vida estão ao alcance de nosso conhecimento por serem finitas. Já tudo o que implica a vida eterna por ser uma vida plena em Deus, mistério infinito, não consegue se exprimir adequadamente com nossos conceitos limitados e imperfeitos. Daí o recurso aos símbolos quando nos referimos à outra vida em Deus: ressuscitados da morte, gozando a visão beatífica, dotados de corpo espiritual, habitantes do Reino de Deus definitivo, no qual Deus tem sua morada e seu trono. Linguagem simbólica para indicar uma realidade que nos é inacessível.

Depois desta introdução podemos entender melhor o sentido da transfiguração de Jesus no alto do monte. Estava a caminho de Jerusalém onde sofreria sua paixão e morte de cruz, fato este que poderia causar decepção e desânimo no trio mais significativo dos apóstolos: Pedro, Tiago e João. Era preciso manifestar o sentido profundo de sua vida e de seus sofrimentos. Daí os personagens da cena.

Sua missão é confirmada por Deus, mistério oculto na nuvem, e também pela tradição religiosa (lei e profetas) nas pessoas de Moisés e de Elias. A identidade divina de Cristo vem expressa pela brancura e pelo brilho de suas roupas. Portanto a transfiguração é uma realidade acessível somente através da fé, uma realidade própria da vida definitiva em Deus, uma realidade que exibe o outro lado de uma vida voltada para os demais: a colheita na eternidade do que foi semeado no tempo.

Mensagem importante para nossos dias. Vivemos momentos difíceis da história da humanidade, parece que o mal triunfa por toda parte, levando-nos ao desânimo e ao pessimismo. Entretanto a última palavra ainda não foi dada, o que vai sendo gestado na história ainda permanece submerso. Mas o que o amor realiza, por meio de muitos contemporâneos nossos, vai muito além do que podemos imaginar. O Espírito Santo continua agindo, embora sempre discretamente. Não só ao nos levar aos outros (Gl 5, 25), mas também ao despertar e fortalecer nossa esperança de uma vida transfigurada em Deus. MFM

III – Purificação do templo (Jo 2, 13-25)

Os Evangelhos relatam não apenas fatos históricos, mas também a compreensão que deles tinham os primeiros cristãos, capacitados por sua fé. Portanto interpretavam os episódios à luz da ressurreição de Jesus e da respectiva confissão de fé ao reconhecê-lo como Senhor. O Jesus da história era visto como o Cristo da fé, sem que possamos separar nitidamente um do outro. Então João entendia o que os demais judeus, contemporâneos de Jesus, não puderam compreender, a saber, Jesus se referia a sua ressurreição. “Destruí este templo, e em três dias o reconstruirei” (Jo 2, 19). Note-se que esta afirmação vai ser o principal motivo invocado para a condenação de Jesus (Mc 14, 58 e Mt 26, 61).

Compreendemos melhor a cena se consideramos que tudo se passou nos dias que precediam a Páscoa dos judeus. Muita gente vinha ao templo para fazer suas ofertas: os mais ricos com bois e ovelhas, os mais pobres com pombas e demais aves. Alguns vinham de fora e necessitavam trocar as moedas, daí a presença dos cambistas. A iniciativa de Jesus pode ser caracterizada como uma ação profética, simbólica, pois ela se limitou a um pequeno local do vasto pátio dos gentios. Entretanto, ela correspondia perfeitamente ao comportamento e à pregação anterior de Jesus.

De fato, os Evangelhos nunca mencionam que Jesus tenha ido ao templo para rezar, mas sim para pregar sobre o Reino de Deus, pois ali encontrava certamente público para ouvi-lo. Para a samaritana acentua que Deus pode ser invocado “em espírito e verdade” fora do templo em Jerusalém ou na Samaria (Jo 4, 21-24). Também demonstra dar maior importância ao relacionamento com o próximo do que a um ato de culto a Deus (Mt 5, 23s). Naturalmente sabia também que os sacerdotes que viviam no templo de Jerusalém, usufruíam das contribuições do povo, sem maiores preocupações em cuidar deste povo reduzido a ovelhas sem pastor (Mt 9, 36).

Certamente na conduta e nas palavras de Jesus há um ensinamento importante da fé cristã. Fundamental mesmo é como nos relacionamos com o próximo, fundamental mesmo é o amor fraterno, fundamental mesmo são os gestos gratuitos e as opções livres em favor do outro, como nos demonstra tão claramente a cena do juízo final (Mt 25, 31-46). Tanto S. Paulo (Rm 13, 10; Gl 5, 14), quanto S. João (1Jo 4, 20s) condicionam a autenticidade do amor a Deus ao amor fraterno realmente vivido.

Consequentemente podemos concluir que Jesus Cristo deslocou o que conta aos olhos de Deus, que denominamos “sagrado”, do templo (com seu culto e celebrações), para a vida cotidiana, para os relacionamentos interpessoais. Esta conclusão não elimina sem mais o sentido e a existência de locais para o culto, como são hoje as Igrejas. Apenas nos alerta que não são finalidades em si mesmas, mas meios, importantes sem dúvida, para vivermos a caridade fraterna. Pois o ser humano precisa expressar o que crê, o que sente, o que determina sua vida. Daí o sentido dos sacramentos, das celebrações, dos eventos religiosos, das espiritualidades, das devoções, dos grupos bíblicos, dos cursos de teologia, enfim das diversas pastorais da Igreja. Mas tudo isso deve se espelhar na vida concreta de cada um, para não chegarmos a ter uma maioria cristã num continente com tanta miséria. Já nos alertava Santo Agostinho: não te detenhas no caminho, mas tenhas sempre o fim diante dos olhos, a saber, o amor.

Advertência importante, pois podemos ter muitas práticas “religiosas”, muitas devoções, e não ter o principal: o cuidado com nosso próximo. Podemos ser muito “religiosos” e pouco “cristãos”. A pandemia do COVID nos privou de celebrações, reuniões, contatos gratificantes, e todos sentimos esta carência. Mas também nos demonstrou que o Espírito Santo continua atuante, tais as iniciativas de assistência, de socorro, de ajuda que vimos surgirem por toda parte.  Não é isso o Reino de Deus, inaugurado em Jesus Cristo, acontecendo em nossos dias? Não está esta pandemia exigindo de nós esforços diários para atender a familiares, amigos e necessitados, fazendo-nos viver a fé mais autenticamente? Mesmo que possamos ter nos enganado com pessoas ou ter agido sem resultados aparentes, nada foi perdido, pois agimos movidos pelo amor, cuja eficácia é certa porque em sintonia com o agir do próprio Deus. Tempo de pandemia, tempo de graça, tempo de vivermos nossa fé com mais verdade. MFM

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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