15 de março de 2021
– “… não apagará a mecha que ainda fumega” Mt 12,20
- Costumava fotografar flores, durante a caminhada diária e depois enviava a amigas. Um dia, uma delas disse: isso não é um caminho, é um jardim! Era mais que um jardim, pois, numa esquina, passei por um jardim cultivado por um casal. Nele, além de plantas e flores, estava cheio de dizeres, de alerta e de cuidados. Um, em especial, desafiava o passante por sua sabedoria – “na vida, nem tudo são flores, mas se forem, regue-as”.
- Só um insensato pode alegrar-se com a tragédia. Seria repetir o governante Nero (666, a besta fera) que incendiou Roma para satisfazer seu sádico prazer. Mas, seria miopia e, sobretudo, descrença não ver a vida pulsar, exatamente, lá onde acontece a agonia e a dor. Não se trata de ser otimista ou pessimista por causa de sinais de perda ou vitória. Se trata da esperança que, apesar e através de tudo, contempla, confia e segue.
- Vi o testemunho do casal que lutava no front contra a pandemia. Já no seu último momento, o marido falou pra esposa – meu amor, cheguei ao fim; mas te digo, continua, você é uma heroína. Ou a médica que, de tanto ver o sofrimento, tão de perto, chegou no seu limite. Foi à garagem, chorou o tanto que pode… depois, lavou o rosto e voltou ao batente. Ela dizia – tenho que ser forte, poque se eu fraquejo, eles também fraquejam.
- Mesmo na contradição, entre sentimentos humanos elevados e a mesquinhez de lucro e do poder, a ciência avançou: em um ano, muitas vacinas foram criadas. Houve um aprendizado geral sobre medicina (vírus, epidemia, pandemia, distanciamento, cepa, quarentena, isolamento…), tratamentos, laboratórios, política, história, geografia, doença (estresse, angústia…) mundivisão (negacionismo, fundamentalismo, fascismo) ….
- No nível pessoal, já se praticava o desapego de penduricalhos como um ato de inteligência e até de partilha. O minimalismo já tinha experimentado que a austeridade traz maior felicidade que as diversas capas de maquiagem. Agora, retornados ou não da infecção, cresceu o número de pessoas que saíram do adormecimento e repensaram o que é a vida, porque a solidariedade, o que realmente é essencial…
- No seio da família se comprovou o que era afeto, criadagem, conflito, violência…. Reforçou o amor, recontratou a amizade, questionou a relação morna, o casamento que jazia em coma e forçou a relação que há muito tinha ido a óbito. Muita gente teve que se encontrar, se olhar, conversar, democratizar os cuidados do lar e revelar sua coerência do discurso contra o autoritarismo – arrogância, machismo, discriminação.
- Teve gente que esperneou por não poder fugir do espaço doméstico… mas, teve gente que viu nisso a chance de lidar com os filhos, de fazer uma horta, de ler, de estudar, de praticar um hobby adiado, de rever a educação alimentar, de se exercitar. Um enorme ganho foi saber driblar o isolamento e inventar novas formas de comunicação, de compra e venda… e, certamente, de conspiração para o diabólico ou para a comunhão.
- Os muitos e pequeníssimos sinais de procura e gratuidade, por si sós, não vão mudar a sociedade. Mas, tais ações e testemunhos têm o poder de anunciar e alimentar a luta pela vida que só será possível se a nação resolver mudar as condições da existência. Elas nos convidam a contemplar a vida bem viva, contra toda a esperança e nos convocar à teimosia, de continuar acreditando que “uma só faísca incendia um canavial”.
- “Na primavera, a cepa que parecia ressequida e morta, de repente, estremece e se cobre de verde e de flor. Lá na cantina, no escuro das pipas, o vinho mesmo o mais velho, conhece uma levíssima floração. Um véu de flor se estende, mansamente, sobre a sua superfície. Não é a saudade da vida de outrora, é avida que perdura. O que parece morto, não está – as pedras também crescem e os vinhos velhos florescem” Boff, 1982
março de 2021.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
busca
autores
biblioteca