Uma das experiências humanas mais dolorosas é a partida, sobretudo quando se trata das pessoas que amamos. O clima de choro, de descontentamento e aquela sensação de que estamos perdendo algo de grande valor, fazem parte de toda despedida. Porém, partir é algo necessário para o crescimento de toda pessoa. Ganha-se maturidade emocional, amplia-se a visão e abre-se novo horizonte de compreensão da vida, à medida que se vive o tempo e o lugar novos com esperança. Se não partimos permanecemos fechados em nossas ideias e acorrentados em nossas estruturas que acabam se transformando em ninhos de conforto que muitas vezes não deixamos que outras pessoas tenham acesso.

O teólogo francês Joseph Moingt pensa a partida tendo em conta o processo de desenvolvimento do cristianismo, o qual possibilita uma imagem de Deus bem diferente daquela que estamos habituados a pensar.  Moingt insiste que devemos aprender a “deixar Deus partir”, ou seja, a deixá-lo ir ter com outros. Ele está propondo que não privatizemos Deus, em outras palavras: devemos aceitar que Deus é também dos outros. Se pensamos um Deus que faz parte só dos nosso ciclo de convivência religiosa, caímos no risco de nos fechar numa tradição que julga o presente com suspeitas maliciosas. Neste sentido, Moingt defende que só podemos conhecer a Deus “tal como é” se o deixarmos existir como “o nosso Deus” em sentido amplo. A descoberta fundamental é: admitamos que Ele não é apenas o “Deus de nossos pais”, a herança que nos deixaram, mas também o “Deus dos outros”.

O próprio Jesus e o apóstolo Paulo trataram de “desprivatizar” Deus dos ciclos judaicos reduzidos, tornando-o uma realidade universal (pública). No ministério de Jesus, a sua preferência pelos pobres, pagãos, pecadores, publicanos, crianças, mulheres e samaritanos sinaliza o quanto ele deseja que os chefes religiosos deixem Deus partir, ou seja, permitam que Deus saia de um ciclo fechado de fé e seja conhecido por aqueles que foram rotulados como moralmente indignos.

O necessário exercício de deixamos que Deus também seja dos outros, contribui para redefinir o nosso lugar de missão. Ao invés de fechar-nos em nossos rotineiros ciclos de atuação apostólica, à medida que vamos descobrindo o Deus dos outros, começamos a frequentar lugares desafiantes, indo aonde poucos querem ir. Jesus, como pregador itinerante, sentava-se a mesa dos pecadores, andava pela decápode e pisava em solo samaritano. Ele foi esquecendo aquele Deus dos pais, tão enfatizado pelos chefes da lei, e assumiu destemidamente a imagem de um Deus que tem um coração aberto a todos. Jesus, por meio de sua prática escandalosa de pregar e agir, abriu a porta do Templo e das sinagogas e deixou Deus conhecer o mundo, justo aquele mundo impuro onde os muros do preconceito e do pudor religioso jamais permitiriam que um Deus pudesse fazer morada.

A partida de Deus para que Ele se torne realmente o “nosso Deus” e se liberte das nossas gaiolas religiosas, propõe também uma outra forma de espiritualidade. Rezar ao Deus dos outros, pois só assim Ele também pode ser chamado de “nosso Deus”, pode ser uma oportunidade de sermos mais solidários e humanos com os dramas que assolam a existência. Acostumamo-nos com aquelas orações de fórmulas fixas, muitas vezes com preces e louvores fora de contexto e nos esquecemos de reconhecer a presença divina naqueles que choram e sofrem. Justo aqui reside o desafio a enfrentar: fazer a passagem do Deus dos vencedores ao Deus das vítimas, como bem nos recordou J. B. Metz. Neste tempo de pandemia seria justo, no mais profundo de nosso ser, juntarmo-nos as vítimas para experimentar a forma de oração delas. Com certeza, este tipo de oração, balbuciada pelos lábios dos perdedores, nos ensinará a “chorar com os que choram” (Rm 12,15) e nos sintonizará com aquele Deus que parte para está ao lado dos vencidos, mesmo que seja de modo silencioso.
(Camaragibe/PE, 02 de fevereiro de 2021)

Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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