Rubem Alves - In Memorian 1 de fevereiro de 2021

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Faz tempo, fiz uma horta no meu quintal. Não é grande. Mas tem couve, espinafre, alface, cenoura, ora­pro-nobis, verdura de gente pobre, em Minas, hortelã, manjericão. No muro cresceu um pé de maracujá, que já deu a mais não poder, e agora está secando. É bom ir lá, e ver as coisas crescendo, especialmente depois da chuva, quando elas ficam agradecidas, como diz o meu pai. É bom ver aquela terra que o esterco fertilizou, tão diferente daquela coisa dura e seca que ela era, antes que o desejo e as mãos a tivessem engravidado.

Acho que ela também tem gratidão por se ver assim tão gorda. Mas não são só as coisas de comer. O corpo precisa de mais. O pão é pouco: a vida precisa também de alegrias e carinhos. E foi por isso que plantei coisas boas de cheirar, de ver, de agradar. O heliotrópio japonês, dezenas de cachos roxos, a magnólia, o cajá manga, flor-do-imperador, rosmaninho, camélia vermelha, o manacá da serra. Uma jabuticabeira, pelo cheiro das folhas, o cheiro das flores, o bom humor das jabuticabas. Já pensou nisto, que as frutas têm um humor especial, cada um diferente do outro?

Maçãs e peras são sérias, não contam piadas, e são próprias para aparecerem em reuniões de pessoas graves. Bananas e cocos (exceto as bananas-ouro, que são os bobos da corte) são, antes de mais nada, chatos, sem assunto. A jaca é uma enorme gargalhada. Enquanto jabuticabas, pitangas, caquis são coisas brincalhonas. Até acho que a fruta proibida, no paraíso, não foi maçã, como muitos dizem, mas foi caqui. Existirá coisa mais erótica? Já as uvas têm um ar de nobreza, combinam com música erudita. Plantei, por isso, uma pitangueira, minha primeira experiência de furto. Quando eu era menino, o vizinho tinha pitangueira, carregada de frutinhas vermelhas, que ficavam lá, e ninguém ligava. Pular o muro e ir roubar era demais para mim.

Mas preguei uma latinha de massa de tomate na ponta de um cabo de vassoura, e furtei as pitangas, para minha alegria e o sorriso de Deus. Só muito mais tarde descobri que já naquele momento se delineava minha vocação teológica, pois Santo Agostinho fazia o mesmo, só que com umas peras verdes e azedas. Bom é o gosto da fruta proibida. E teologia é bem isto, um desejo de furtar dos deuses os seus bons frutos, disfarçados de poemas…

A produção não é lá grande. Mas a imaginação e a alegria crescem ao ver a terra e as coisas que nela crescem e prometem. Pra mim, aquela horta, que é mais que horta e jardim, é um altar. Altar é um lugar onde os olhos, ao verem as coisas que se podem ver, vêem também outras, com o olho interior. Ao ver o meu jardim e ao ser agradado por suas cores e cheiros, penso que também eu cresço nele.

Sou um irmão de couves e jabuticabeiras: meu corpo é um filho da terra. E é por isso (eu penso) que fico contente ao vê-la feliz. Fico pasmo ao ver aquelas casas em que os jardins foram substituídos por lajotões. Pra mim é cemitério, e imagino a terra, minha mãe, enterrada, sufocada, cheia de vida, sementes que não podem brotar. As pessoas fazem isso para evitar a sujeira. Terra é sujeira. Já perde­ram a memória de suas origens. Preferem o cimento, o sinteco, os azulejos, a fórmica: seres hospitalares, que tomam banho em pinho sol, para ter o cheirinho de limpeza. Na minha rua havia um ipê roxo.

Um dia passei lá e, para o meu horror, vi que tinham cortado uma cinta na sua casca, volta toda, para que morresse: era cortar as veias de uma pessoa viva. É que as flores sujavam o chão, e dava muito tra­balho varrê-las. Imagino que, se pudesse, planta­riam no seu lugar uma árvore de plástico. O ipê está lá, morto, sem folhas. E com certeza a pessoa que o matou está feliz, por não mais ter que varrer a calçada. Mas pra mim terra não é sujeira: é origem, é destino. Nascemos da terra. Somos nada mais que a terra modificada, misturada com a água, com o ar, com o fogo, como pensavam filósofos de muitos séculos atrás.

Terra, pedaço do meu corpo, meu corpo além da minha pele, seio em que me alimento, e se ele se secar, eu morro. Pois é, são ideias como essas que me vêm à cabeça quando fico ali diante do meu altar, minha horta, meu jardim… 01/06/2014

Publicado no Correio Popular

Obs: Ver AUTORIZAÇÃO do Instituto Rubem Alves no item OBRAS LITERÁRIAS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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