“São capazes de atirar pedras na prostituta ou na criança estuprada, de responsabilizá-la por ações abortivas em desacordo com a santidade etérea pregada pelos senhores, mas são incapazes de reconhecer a profundidade de sua dor, os rasgos em seu corpo, as marcas indeléveis em suas emoções, a condição precária de sua vida”, escreve Ivone Gebara, filósofa, teóloga e religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter).

Eis o artigo. 

A condição humana sobretudo dos mais vulneráveis nos faz chorar. Ontem prenderam o estuprador da menina de 10 anos. A televisão o mostrou de costas. Parecia um tipo magro, mal vestido, um traficante, ex-prisioneiro que poderia ser confundido com os inúmeros mendigos que rondam noite e dia por nossas cidades e que provavelmente estupraram jovens ou até suas próprias filhas. Entretanto, de sua condição miserável quase não se fala e nem nos lembramos de conhecer algo de suas vidas quando nos cercam pedindo dinheiro. Dos estupradores ricos nem nos lembramos porque seu dinheiro encobre seus crimes. Não faço a defesa dos estupradores e nem dos drogados, mas chamo a atenção para o fato político e social que alguém provocou em torno da menina para levantar em plena pandemia a questão do aborto como uma questão política e religiosa. E os incautos e ingênuos defensores da vida assim como os perversos políticos extremistas entram e alimentam o jogo político montado e armam uma nova polêmica em torno do aborto. Será que é esse o problema ou ele é apenas a aparência de muitos outros que escondemos e não aceitamos encarar como parte dos jogos sórdidos de poder e de nossa condição humana? Não vou desvendar esse enigma, mas apenas levantar suspeitas e mostrar armadilhas nas quais caímos quando não paramos para refletir com atenção.

No desejo de respeitar posições diferentes das minhas me dou conta que a cultura do respeito à certas autoridades soa cada vez mais falsa em mim e em muita gente. No fundo não sei mais quem é a autoridade à qual devemos obedecer e em que se funda esta autoridade. Nos sustentamos numa espécie de terreno movediço que torna nossas análises do poder e da autoridade instáveis e nosso julgamento cambaleante.

Constato que mesmo se queremos a paz estamos em guerra. Mesmo se não queremos divisões há separações inevitáveis, cismas, dissenções ontem e hoje. A harmonia e a unidade são apenas uma aparência.

De fato, há na terra ovelhas, cabritos, rinocerontes, leões, raposas, abelhas e zangões e um não pode deixar de ser o que é por respeito ao outro, mas muitas vezes destrói o outro para ser. Somos diferentes, vivos e destruidores da vida no mesmo planeta! É na diferença que vivemos e convivemos.

Do reino dessa diferença vital, lembro a mim mesma que sou mulher, brasileira, filha de emigrantes, ‘pertenço’ à Igreja Católica, dela recebi os mais sublimes ensinamentos para almejar as coisas celestes, para dedicar-me aos pobres e marginalizados, para negar as nefastas paixões do corpo, para confessar os meus pecados, expiar as minhas culpas e oferecer-me pura a Deus no seguimento de Jesus ‘manso e humilde de coração’ como rezava uma velha oração católica. Educaram-me e eduquei-me obediente a muitas autoridades. Educaram-me e eduquei-me no privilégio do saber.

Porém, já faz algum tempo que me descobri abelha, leoa, felina feminista, anti-racista, anticlerical e lamentei muitas coisas boas das quais não provei. Descobri também que sou mandacaru cheio de espinhos e frutos em terra seca. E, me acolhi desobediente!

Minha idade já não me permite o antigo respeito formal às autoridades civis, militares e eclesiásticas. Não posso calar diante de tantos fatos que me apavoram e por isso denuncio uma velha pandemia viral entre os humanos muito presente em nosso tempo, especialmente entre religiosos.

Em plena crise pandêmica da Covid-19 onde diferentes tipos de manipulação política não faltam, enfrentamo-nos a uma outra perniciosa e mortal que se expressa em ‘amar mais ideias e princípios do que a frágil vida que temos’, ‘amar mais as leis religiosas caducas do que as dores reais que assolam meninas e mulheres’, ‘amar e defender mais interpretações sacrificiais da Bíblia do que a vida real e provisória’, ‘amar mais as vidas futuras do que as presentes’ e com isso condenar vítimas de estupros e acusar meninasjovens e mulheres estupradas de infanticídio.

Estamos em uma pandemia cultural necrófila se infiltrando na política e na religião e nos contagiando de maneira muitas vezes imperceptível! Refiro-me sem dúvida aos estupros vividos desde os 6 anos de idade pela menina de São Mateus no Espírito Santo e sobre a interrupção de sua gravidez realizada no domingo passado em Recife. As reações ao fato foram muitas, porém quero comentar uma que me toca de muito perto. Se trata da reação de religiosos católicos e entre eles bispos e até o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) condenando a interrupção da gravidez e classificando-a de crime hediondo. Que dizer diante desse fato recorrente tantas vezes?

Uma forma de religião necrófila se propaga e cresce como cúmplice de uma cultura defensora da ‘vida de fachada’, de uma vida que se torna cada dia mais banalizada, mortífera, ameaçadora e irracional. Esta pandemia nos atinge a todos apesar de que alguns têm um pouco mais de anticorpos que outros para se defenderem.

Bispos denunciando crimes em nome de Deus e ao mesmo tempo carregando a balança de seu julgamento e condenação sobre uma criança pobre engravidada! Sim reafirmo a palavra pobre, porque só os pobres são tornados objeto de litígio, só os pobres podem ser usados e abusados pelos poderes políticos, religiosos e pela imprensa de má fé. Nenhum estupro e nenhum aborto feitos pela classe dominante são tornados objetos de discussão pública!

Condenam o aborto sem pensar na violência que provocam e na reincidência lamentável da polarização de seus comportamentos públicos. Dizem condenar o pecado e não o pecador. Mas como pode existir o pecado sem pecador? Malabarismos mentais que se sucedem sem reflexão só causando confusão e descrédito.

Levantam suas vozes para defender abstrações e não se debruçam de fato sobre as caídas na estrada, não ouvem suas dores, seus gritos e nem seu choro convulsivo e amedrontado em casa e num hospital longe de casa.

Não senhores, vocês e seus pares não estão defendendo nenhum Evangelho, mas leis anacrônicas saídas de velhas mentes dogmáticas do passado que ainda acreditam que os discursos divinos são imutáveis, as leis da igreja perenes e seu sacerdócio proveniente da autoridade do lendário e eterno Melquisedec.

Não senhores, vocês não podem falar em nome da comunidade cristã. Vocês não a representam na sua inteireza. Seu báculo e sua mitra não lhes dão o direito de passar pelas dores das meninas que tiveram suas vidas usadas não só por esse asqueroso estuprador, que não sabemos o nome, nem quem é, nem o que faz. Para além de sua irresponsabilidade real, ele é apenas mais um objeto da mídia, da polícia, dos políticos para despejar sobre ele sua própria violência! E a menina vítima, outro objeto exposto, cuja vida é mostrada ao público e cujas marcas poderão ser perenizadas nos arquivos da internet e em sua própria frágil vida! Usou-se de forma criminosa da vida dessa criança duplamente estuprada: pelo estuprador e pelos/as extremistas estupradores, criminosos que expõem a vida de uma criança em público e usam-na e abusam-na de forma vergonhosa. A cumplicidade no segundo estupro precisa ser denunciada.

Não, os senhores religiosos não representam a defesa das vidas reais pois entraram nos jogos políticos do momento. Os senhores não defendem as mulheres que foram estupradas também por clérigos irresponsáveis e nem as mães que tiveram seus filhos estuprados pelos pedófilos das igrejas, pelos atormentados doentes sexuais que se escondem nos seus muros santos, nas suas instituições e com os quais as severidades clericais são sempre mais condescendentes.

Não, os senhores não enfrentam a necessidade de rever a compreensão da sexualidade humana, da teologia moral, da teologia sistemática anacrônica que pregam antes de impor suas regras de santidade ancoradas em imaginárias vontades divinas.

Mesmo se falarem do estupro como crime, os senhores e grande parte da sociedade são mais condescendente com eles, os estupradores. São crimes de macho! E os senhores até se esquecem de condená-los como aconteceram muitas vezes ao longo da História nacional e internacional. Podem até num instante de raiva querer a morte do estuprador, sua prisão perpétua ou até a forca pública inexistente no momento. Porém pergunto: que processos reais educativos pessoais e sociais têm feito para que esses crimes diminuam, que conteúdos para além dos doces conselhos ou das inflamadas iras emocionais momentâneas que transmitem nas suas igrejas, nas suas teologias, nos seus catecismos? Faz tempo que vocês, salvo raras exceções, só ouvem o que querem, só falam o que está escrito, só repetem o que já não nos serve mais, só se glorificam em seu poder imaginário embora, infelizmente efetivo sobre muitas pessoas.

O fogo purificador e destruidor já está sobre a terra! As separações nos invadem! A divisão do rebanho cresce em gênero, número e grau. E vocês senhores príncipes de suas igrejas são também soldados mantenedores dessa guerra!

Chegou a hora de enfrentarem-se a posições políticas e religiosas reais. Não apenas criticar os outros e mostrar-se defensores da justiça, mas começar a apontar o dedo indicador para vocês mesmos sempre capazes de atirar pedras nas outras/os, mas não movem uma só palha para modificar os conteúdos de suas pregações e ações. São capazes de atirar pedras na prostituta ou na criança estuprada, de responsabilizá-la por ações abortivas em desacordo com a santidade etérea pregada pelos senhores, mas são incapazes de reconhecer a profundidade de sua dor, os rasgos em seu corpo, as marcas indeléveis em suas emoções, a condição precária de sua vida.

Não dá para lavar as mãos como Pilatos, elas continuam sujas de sangue. Não dá para se lamentarem, pois seus lamentos não tocam mais os corações feridos.

Basta de discurso! Tomem a atitude de reconhecimento das dores da menina e das mulheres. Abram-se para outra teologia, outro julgamento ético, outro cristianismo para além desse doentio discurso promotor dos sacrifícios alheios e excitador de almas fundamentalistas, de fazedores de guerra santa batizando-a de respeito à vida.

Os senhores criticam os governos fascistas e seus fundamentalismos, mas agem quase da mesma maneira impondo suas velhas e imaginárias afirmações ditas divinas, aliando-se aos fundamentalismos religiosos os mais retrógrados do mundo. É triste ver como traem a vida em nome de teorias anacrônicas! É triste ver como se mostram intransigentes frente a algumas reais dores humanas femininas!

Perdoem-me, mas de nada valem seus discursos penalizados ou libertários quando desconhecem as feridas reais dos corpos femininos. Desconhecem o que a teóloga Nancy Cardoso [1] chamou em recente artigo de ‘cartografias dos corpos femininos’, não são atentos às análises da vida das classes despossuídas cujo acesso a uma educação de qualidade, uma educação sexual e planejamento familiar é quase inexistente.

Falam da incondicionalidade da vida, um conceito já há muito superado pela evidência da história humana e pela evidente limitação de seus próprios argumentos. Falam ingenuamente de ‘defesa da vida em qualquer circunstância’ como se desconhecessem as contradições da história humana sempre misturada de maldades e bondades, de vida e de morte, de guerras, destruições, assassinatos embora também haja flores nascidas do esterco da crueldade. Desconhecem por acaso a história da Igreja? Suas cumplicidades assassinas? Suas disputas de poder?

Melhor é calar-se do que falar publicamente dos corpos das mulheres e acusá-las dos crimes que vocês homens cometem sobre elas. O silêncio ativo seria um caminho melhor!

Certamente, sem pensar, os senhores se aliaram à perigosa demência de Sara Winter, ativista da ultra direita, que divulgou o nome da menina estuprada e à deputada Chris Tonietto do PSL do Rio de Janeiro com sua retórica criminal pretendendo até alterar a legislação prevista no Código Penal de 1940 que permite a interrupção da gestação em caso de estupro.

Os senhores com sua defesa doutrinária acabaram diminuindo a força da ética cristã comprometida com o aqui e o agora da vida incluindo nela todas as contradições e paradoxos que cotidianamente nos invadem.

Não há pureza, não há justiça divina a ser apenas copiada. Estamos todas/os dando passos nessa busca e tentando nos ajudar. Admitir isso tira-lhes talvez o poder sobre ‘as almas’ cristãs!

Não há mais mestres. Somos apenas aprendizes da vida e já está na hora dos senhores religiosos e políticos/as ouvirem os clamores de quem sofre e estenderem sua mão, não seu julgamento, para que a vida dessas meninas seja de fato respeitada e dignamente amada.

Ouvir os clamores do povo não é dar uma resposta tirada da dogmática católica ou de uma interpretação estreita de algumas leis religiosas e políticas. Ouçam as comunidades dos bairros, as pobres mulheres expostas a mil infortúnios, as que têm experiência de vida e conhecem o valor e os atropelos da vida cotidiana. Elas não falam, não pensam e não agem como os donos de muitos poderes. Fiquem mais atentos aos clamores da vida e não a alianças espúrias que em nome de uma noção limitada de defesa da vida nos matam. [2] Afinal o que é mesmo a vida? Tentemos responder a cada dia de nossas vidas.

Senhores e senhoras: a vida da menina importa! Basta de malabarismos teóricos para justificar políticas genocidas e basta de purismo teológico doentio para propagar uma falsa justiça, dita divina.

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602043-sobre-estupradores-e-estupradas-artigo-de-ivone-gebara

Notas: 

[1] Acesse aqui.

[2] Acesse aqui.

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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