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- Personalidade genial
Um dos primeiros traços que se podia observar, nitidamente, na personalidade do querido Padre José é, sem dúvida, a genialidade, que se manifestava em sua inteligência em leque, treinada com esmero por refinada formação interdisciplinar e evidente em seu amplíssimo horizonte de pensamento e de ação. Passava com toda naturalidade da Sociologia e da Antropologia Cultural à História Geral, à História e Sociologia da Cultura e das Instituições, assim como à História da Igreja e à História dos Sistemas Políticos e dos Movimentos Sociais; conhecia Filosofia e era capaz de analisar com precisão as ideologias em debate; manejava com maestria a História da Teologia e a Teologia Sistemática, bem como Exegese e Teologia Bíblica. Ao mesmo tempo, tinha refinada sensibilidade e incrível capacidade de observar a realidade concreta de vida das pessoas, ao mesmo tempo em que era “trabalhador intelectual” incansável. O ponto de partida de toda a sua reflexão são a análise e a crítica da realidade e das propostas com as quais diferentes grupos e tendências dela se aproximam para conhecê-la e nela interferir. Ao escutá-lo ou ler seus textos, sentia-se a admirável capacidade de estar informado sobre o que acontece em todos os continentes, na sociedade e na Igreja cristã, e as diversas conexões entre acontecimentos e processos, um verdadeiro “computador” ambulante, dizíamos com freqüência, entre brincadeira e em sério. Era capaz de falar por horas e dias sem notas escritas sobre o assunto a apresentar, com memória e ordem mental prodigiosas.
- Testemunha da tradição de Jesus
Quem sabe, a afinidade com o concreto da realidade e com a Bíblia, associada à atitude espiritual, levavam-no a perceber claramente a corrente profunda do Evangelho que conduz a Jesus: o povo e sua vida tão castigada pela opressão dos grandes deste mundo. Para ele, aliás, “povo” não é, antes de tudo, categoria sociológica, mas teológica, uma vez que o princípio formador não é o poder mundano, mas o Espírito, é o Espírito a força capaz de formar o povo e infundir-lhe o senso de “aliança”. Escreveu “O Povo de Deus”, tema radicalmente bíblico, sua atenção se centra no chamado “laicato” (o “laós” de Deus) e, particularmente, nos pobres. A Igreja lhe interessa e muitíssimo, porque está chamada a ser testemunha de Jesus e por sua capacidade de influenciar os povos, mas só lhe interessa enquanto testemunha do Evangelho e agente do Reino de Deus.Tem claro que o centro do Evangelho é o anúncio do Reino – mediante sinais, gestos, ações e a atitude de liberdade profunda face a qualquer sistema. Neste sentido, foi radicalmente político, porque profeta, político e amplamente ecumênico. Daí, sua fina atenção à profecia e ao Espírito Santo em confronto com os sistemas de poder. Não por acaso escreveu muito sobre o Espírito, entre outros textos,“A Força da Palavra”, “O Tempo da Ação”, “O Espírito Santo e a Libertação”, “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”, e “Vocação para a Liberdade”… Para ele esse é o caminho da “verdadeira” Igreja, a qual atravessa os tempos em corrente quase subterrânea, a corrente da liberdade, desde as origens (apóstolos e apóstolas, confessores(as), mártires, o monaquismo e os Pais da Igreja), passando pela Idade Média, nos movimentos dos pobres e dos “espirituais”, influência dos místicos e das mulheres… tanta gente acusada de heresia e até condenada à morte, pensemos na Inquisição e na caça às bruxas, na Reforma e nas revoluções até os movimentos de libertação de nosso tempo; pensemos nos Quilombos, em Canudos, no Contestado, na Ação Católica, nas comunidades de base, nos movimentos populares e naquelas figuras que costumava chamar de “Pais da Igreja Latinoamericana”, a geração de bispos do Concílio e de Medellín, para ele uma geração que só reaparecerá daqui a mil anos… (esperamos que se tenha enganado quanto a prever tempo tão longo). Era claro para ele que muita coisa na Igreja nada tem a ver com Jesus e Sua tradição. Gostava de lembrar que já não devemos falar tanto em “eclesiologia”, mas em Espírito Santo, pois não se deve esquecer que o “discurso eclesiológico” é acentuadamente “discurso do poder”, pois, na verdade, a Eclesiologia nasceu do Direito e não da meditação do Evangelho.
Revelava nítida clareza em relação à tarefa da Igreja, que não é a de agente de religião, esta para ela não passa de instrumento de comunicação com o povo. Usava confrontar religião e Evangelho, de maneira muito parecida com o que fizeram Carlos Barth e o teólogo anglicano socialista Frederico Maurice. Vivia isso, de fato, em seu ministério pessoal de “padre”, cujo centro não era o culto, mas a ação e a profecia: “Não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o Evangelho” (1Cor 1, 17), dizia o Apóstolo. Ou seja, é preciso reverter a grande inversão: a maior parte de energia da Igreja se aplica, infelizmente, em atividades religiosas, baste verificar o quanto se investe em pessoas e meios para pôr no centro a dimensão cultual. Como costumo sintetizar, para ele, o centro da vida da Igreja tem de ser a DIACONIA, ação de Deus em nós e através de nós, “prática” de amor fraternal, traduzido em serviço, dentro da comunidade e transbordamento da vida de amor mediante a ação sociopolítica de transformação da sociedade, como fundamento da denúncia do pecado do mundo e do anúncio da boa nova da felicidade (“xalôm”), ou seja PROFECIA, que seria, na Igreja o equivalente da “teoria”. Da articulação de ambas – diaconia,fundamento da autoridade da palavra de profecia — surge a LITURGIA como expressão poética, simbólica, pela qual se “dramatiza” a “obra de Deus” na história humana. Se olhava com atenção amorosa a prática da religião popular era para perceber aí a fé dos pobres em Jesus e as possibilidades de conectá-la com a grande tradição profética da mensagem bíblica.
No que concerne à tarefa da Teologia da Libertação, ele começara a falar em “Teologia da Revolução”, como Richard Shaull, até publicara dois volumes de “Théologie de La Révolution”mas logo adotou a nova terminologia lançada por Rubem Alves e Gustavo Gutierrez. Considerava-a Teologia para a Igreja universal, pois trata-se primeiramente de “libertação da Teologia”, como costumava falar o grande Juan Luis Segundo, e de método fundado em nova óptica para olhar o mundo e nele atuar, “a partir dos pobres”, ou seja, do Jesus dos evangelhos.
- Sábio
Tinha uma espécie de “sexto sentido” para discernir por entre os sinais da realidade e dos movimentos humanos, daí, sua refinada aptidão para escutar em longos momentos de silêncio e para assessorar e chamar a atenção para coisas importantes muitas vezes esquecidas ou, simplesmente, não vistas. Não se interessava apenas por “ensinar”, sua maneira de produzir Teologia era “provocar” para que as pessoas, não só “aprendessem”, mas sobretudo “apreendessem” (agarrassem o objeto) e fizessem o processo de reflexão por elas mesmas, mesmo que as conclusões não fossem necessariamente as suas. Como dizia um velho mestre, não ensinava tudo o que tinha aprendido, nem ensinava o que não “sabia”(o que não era saboreado por ele mesmo), limitava-se a comunicar aquilo que, a seu ver, outras pessoas tinham necessidade de aprender para caminhar de maneira mais clarividente na vida.
Desde cedo no Brasil, particularmente pela Revista REB, insistia em mostrar como a nova evangelização e a ação pastoral só serão possíveis na medida em que tomemos consciência da história de nossos países e de nossa trágica história como Igreja no Continente e façamos análise crítica da ação praticada junto a nossos povos – aborígenes, africanos, as massas pobres. Como aqui estamos distantes do que dizia Bento XVI em sua visita ao Brasil, ao pretender negar o conflito e a violência física e cultural da conquista e dizer que o que houve aqui foi um “fecundo encontro de civilizações”! O famoso “documento” de preparação a Medellín é exemplar: no Continente, os parlamentos corruptos e antipopulares não serão capazes de encaminhar as reformas econômicas, sociais e políticas em favor do povo; a perspectiva tem de ser “revolucionária”, por motivos teológicos, pois trata-se de “criar novos céus e nova terra”… a partir dos pobres, “reinventar o mundo”, como dizia Paulo Freire.
Tinha claro que o dogmatismo tem de ser denunciado como alienação das “verdades abstratas”; os novos povos têm direito a “reinventar” a Igreja pelo processo de inculturação da fé, como se deu na antiguidade com o Judaísmo, a sociedade grecoromana e os povos germânicos e anglossaxões. Processo que foi impedido quando se tratou da Ásia, da África e de nossa Afroameríndia, onde houve apenas imposição do modelo construído finalmente na Idade Média.Viu claramente que a Cidade seria o novo contexto de ação da Igreja e, por isso, escreveu “Teologia da Cidade”, e que a Paz seria problema crucial, por isso “Teologia da Paz”, assim como teve certeza de que a Segurança Nacional era idolatria, teologicamente e, por isso, devia ser denunciada como pecado.
Para ele, o caminho a seguir era claro: investir na formação do laicato e, particularmente, do laicato pobre, para que a Igreja se transformasse, por isso erigiu como ícone da Igreja no Nordeste a figura do Padre Ibiapina, como o tem feito também o historiador Eduardo Hoornaert. Em certo momento, propôs o “Comentário Ecumênico da Bíblia” a ser elaborado por biblistas daqui, com a inclusão de autores de outros países de nossa Afroameríndia, pois estava certo de que em cinco anos a Igreja entraria em processo de fechamento contra o Concílio, o que de fato aconteceu.
Foi muito além dos limites da institucionalidade, e isso amedrontava os detentores do poder, quer na ditadura militar, quer na instituição eclesiástica que tem, também ela, aspectos ditatoriais. São eloquentes dois fatos de sua biografia: a agressão física de Lopez Trujillo em Puebla, que o apertou pelo pescoço, como se desejasse estrangulá-lo, e as suspeitas de heresia levantadas pela Nunciatura no Brasil, às quais Dom Helder respondeu com sua proverbial fineza diplomática, solicitando ao núncio papal uma varredura em suas obras para a identificação das heresias. A resposta final: “Na verdade, não se acha heresia formal, o que se percebe, no entanto, é um difuso clima de heresia”. E a reação do Arcebispo: “Contra clima de heresia não posso abrir nenhum processo, só se tratasse de heresia formal”.
Ao definir, em conferência pública, a função da Teologia hoje, disse certa vez: “Desmontar as ortodoxias”. Em seus últimos tempos, costumava repetir: “É preciso começar tudo de novo”, como dissera São Francisco no leito de morte,“o Cristianismo não fracassou porque simplesmente ainda não conseguiu ser posto em prática”… o que se compreende quando se pensa no seguinte: com Constantino, no século IV, a Igreja se afasta do mundo dos pobres e abraça o Império; com Santo Agostinho, século IV, a Igreja se afasta do “corpo” e, com a exclusão do corpo, exclui-se a mulher; com Gregório VII, século XI, a Igreja exclui o laicato e se autocompreende como poder clerical; na época da conquista dos “novos” continentes, exclui-se a diversidade dos povos, não mais se permite o processo de inculturação vivido pela Igreja antiga…
- Mestre
Viveu dedicado a ensinar. Em certo momento decidiu não mais colaborar na formação do clero, em seminários e faculdades, e dedicar-se à tarefa de promover a formação teológica e pastoral do laicato, sobretudo de gente do interior, mulheres e homens, e, em particular, do sertão do Nordeste. Seu jeito de lecionar era tido como “monótono”, sempre no mesmo tom de voz, e, no entanto, era intensamente procurado para ser “ouvido”. Tímido, mas ousado estrategista e por isso fundador ou inspirador de múltiplas iniciativas, e “planejador ou formulador de novos projetos: “Teologia da Enxada”; Seminário Rural que se tornou Centro de Formação Missionária, em Serra Redonda e em Mogeiro (Paraíba); Associação de Missionários e Missionárias do Campo; “Curso da Árvore”; seminário para a formação de gente do interior do sertão para várias dioceses da Bahia e outras (Piauí, Paraíba…); Fraternidade do Discípulo Amado e diálogo periódico com um grupo de pastores protestantes. E outras.
Grande pedagogo, deixa discípulos e discípulas em diversos campos, desde o pensar teológico até o exercício da tarefa de evangelização e da ação pastoral. Para ele, essencial na Igreja é sentir-se enviada, missionária. Dizia com ironia que o Documento de Aparecida iria necessitar de duzentos anos para ser levado à prática, porque os agentes da Igreja perderam a capacidade missionária e quase só se dedicam a manter a pesada máquina da instituição eclesiástica, inclusive as congregações religiosas que, teoricamente, deveriam ser a força avançada da Igreja, até mesmo congregações ditas “missionárias”. Denunciava o prestígio obtido por movimentos conservadores no período posconciliar, a partir do papado de João Paulo II, quando se promoveu o desmonte do Concílio, tanto no que se refere a sua inspiração, quanto a novas instituições dele surgidas ou por ele chanceladas, como a relativa “desautorização” das Conferências Episcopais.
Conclusão
Ao definir, em conferência pública, a função da Teologia hoje em dia, disse certa vez: “Desmontar as ortodoxias”. Em seus últimos tempos, quando já passava dos oitenta anos, insistia e costumava repetir, como São Francisco de Assis no leito de morte: “É preciso começar tudo de novo”. Na verdade, o Cristianismo não fracassou na história, é que simplesmente ainda não chegou a ser posto em prática, afirmação que se compreende perfeitamente quando se pensa no seguinte: logo cedo, no encontro com a sociedade grecoromana, foi ficando distante a “mentalidade bíblica” e a mente cristã se tornando cada vez mais abstrata e dogmática, afastando-se da história; com a adesão ao Império, a partir de Constantino, no século IV, a Igreja se abraça com o poder e não mais se identifica com o mundo dos pobres; na época do grande Santo Agostinho, em prejuízo da visão bíblica unitária (hoje, talvez, disséssemos “holística”) o dualismo leva a romper com o corpo, inferiorizá-lo, quase demonizá-lo; ora, com o desprezo da matéria e a quase exclusão do corpo, necessariamente exclui-se a mulher, quando a sociedade é de homens; com o papado de Gregório VII, no século XI, a Igreja, ao tentar livrar-se da indevida ingerência dos príncipes nos negócios eclesiásticos, exclui o laicato (na verdade, no regime de Cristandade, os príncipes e governantes eram, de fato, o laicato representativo na Igreja) e se autocompreende como poder clerical personificado no papa; na época da conquista dos chamados “novos” continentes, exclui-se, finalmente, a diversidade dos povos, não mais se permitem processos de inculturação como os vividos na Igreja antiga. Quem sabe, estamos ainda paralisados na segunda fase da história da Igreja, a fase européia, com o campo aberto ao novo encontro com Ásia, África e nossa querida Afroameríndia. “É preciso começar tudo de novo”…
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política
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