A crueldade da covid-19, que ceifa vidas precocemente se torna ainda maior porque nos impede de nos despedirmos das pessoas queridas e de levarmos à sua família o nosso carinho e solidariedade.

Mas a crueldade maior de todas, não é propriamente do vírus, é das pessoas que o ignoram e agem como se ele não existisse e ajudam a disseminá-lo, fazendo com que ele chegue mais longe. O vírus é terrível, é letal, mas não se espalha sozinho.

Perdi para a covid um amigo, um irmão que a vida me deu e que, a partir de 1990, junto à sua família, passou a fazer parte da minha.

Assuero era uma dessas raras pessoas que acumulam talentos e que deles fazia uso com maestria. Sua vocação para a medicina era evidente em cada diagnóstico que fazia, mesmo antes de resultados de exame, em cada nova vida que ajudava a trazer ao mundo e que tratava sempre com muito carinho, respeito e dedicação.

Mas não bastasse ser um pediatra competente, entendia de diversas áreas. Quando em 2012 tive sob suspeita de câncer linfático, foi ele o primeiro a descartar esse diagnóstico e a acertar o que realmente eu tinha, bem antes das dezenas de exames e médicos que fui  e que, por fim,  foi confirmado.

Até a cachorrinha que tínhamos conseguiu se livrar dos carrapatos, graças a uma fórmula que ele prescreveu e que foi tiro e queda.

Foi dele o primeiro rosto que minha caçula, Carol, teve contato, ao nascer.

Ensinou a Carol que quando comentassem que ela era bonita, ela respondesse “graças a meu pediatra”.

Como se não bastasse ser um médico de excelência, ainda tinha talento para várias artes. Em suas misturas de tintas e traços, temos belos quadros e painéis, que, em suas cores, sempre muito vivas, encerram grandes histórias.

Mas suas misturas não pararam por aí. Também misturava pedaços de ladrilhos e azulejos, formando murais de indescritível beleza, como o de Gaudí e de Andaluzia, que se encontram no pátio do Sindicato dos Médicos de Pernambuco.

Poderia ter parado por aí e já teria dado a sua contribuição para tornar o mundo mais bonito. Mas não parou e usou e abusou de uma outro arte, a literatura.

Escreveu centenas de artigos e publicou seis livros. Três sobre a história recente da Arquidiocese de Olinda e Recife – os dois primeiros, Partindo de Emaús, Réquiem para um Bispo e o último publicado em 2019, Minhas Memórias da Igreja em Olinda e Recife.

E, entre os dois primeiros e o último escreveu O Profeta e a Serpente, O Farol de Solidão e à Sombra do Mosteiro. Tive a alegria e o prazer de, de alguma forma, estar presente nos cinco primeiros livros, seja como personagem, seja como revisora, prefaciadora ou diagramadora. Fui Sara em Partindo de Emaús, revisei e fiz o prefácio de Réquiem para um Bispo. E, os outros três revisei e diagramei.

Assuero era um médico com alma de poeta, um teólogo com alma de profeta. Misturava as letras e escrevia artigos, uns com jeito de poesia, outros com jeito de profecia.

Foi o idealizador, criador e fundador do Jornal Igreja Nova, que se tornou o baluarte da resistência durante o episcopado de Dom José Cardoso, sucessor de Dom Helder. Também por idealização de Assuero, o jornal deu origem ao Grupo de Leigo Católicos Igreja Nova, um grupo que escreveu com tintas de fé e esperança, uma parte da história de nossa Arquidiocese. De um pequeno panfletinho em preto e branco, o jornal cresceu em tamanho, ganhou colaboradores de diversas partes do Brasil. Ganhou sede para as reuniões e celebrações, sempre organizadas por Assuero.

Foi por ideia dele que passamos a celebrar a Páscoa do grupo vivenciando uma ceia judaica, com todos os pratos feitos da maneira mais fiel possível às receitas originais.
Importante de dizer que nossas celebrações, e aqui gostaria de salientar que eram celebrações da Palavra, ou celebrações de leigos, nós partilhávamos o alimento e a vida. E muitas de nossas celebrações davam o que falar, como a que partilhamos bolachinhas e mel, em lugar de pão e vinho. Eram as revoluções de Assuero.

Sempre bem informado, ele causava rebuliço na Arquidiocese com as suas famosas Centelhas, publicadas no jornal Igreja Nova e que continham notícias muito quentes, porém em forma de charadas.

Para mim, e sempre dizia isso a ele, Assuero era a alma do Igreja Nova, seu criador e seu sonhador maior. Sempre pensando à frente de todos nós. Na época em que fazíamos parte do Igreja Nova, Assuero, Sérgio e eu, tínhamos uma parceria e tanto. Sonhávamos, fazíamos planos e partíamos para realizá-los, compartilhando as ideias com o restante do grupo. Às vezes uma ou outra resistência aparecia, mas, no final, dava tudo certo.

Foi assim quando apresentamos o projeto do jornal ganhar uma cor, de ter um site na internet, de ter uma sede própria ou com as Jornadas Teológicas. A Jornada Teológica era um projeto muito ousado, uma caminhada gigantesca para nossas pequenas pernas. Mas o Grupo acreditou na proposta e juntos realizamos o sonho que se tornou de todos. Assim como Raul Seixas escreveu em sua música Prelúdio, “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade”. Essa frase foi citada por Dom Helder Camara em sua crônica “As dores do parto”, escrita há 41 anos, em um mesmo 6 de janeiro, assim como hoje.

Com o advento da internet, ainda dando seus primeiros passos, o jornal Igreja Nova ganhou seu site e, com ele, o mundo. Sérgio e eu aprendemos a linguagem HTML, para poder fazer o primeiro site, ainda bem tímido e que, algum tempo depois, foi reformulado e se tornou um arquivo de consultas, para quem queria ler artigos dos colaboradores do jornal impresso ou acompanhar o que estava acontecendo no mundo religioso e teológico. Estamos falando aqui de, pelo menos, 20 anos atrás.

Helderiano por convicção, idealizou uma forma de trazer de volta para o Recife o centro dos debates teológicos e, ao mesmo tempo, homenagear Dom Helder, que foram as Jornadas Teológicas Dom Helder Camara, cuja primeira edição aconteceu em 1998, com a presença do próprio Dom Helder na abertura.

Por muitos anos foi o responsável pelas celebrações dominicais na igreja das Fronteiras, desde os tempos de Pe João Pubben até o Pe José Augusto. Era como que o guardião da igrejinha de Dom Helder. E, quando em algumas ocasiões, não era possível um padre para celebrar, ele próprio assumia e fazia a celebração da Palavra.

Comprometido com o combate à miséria e à pobreza e fiel ao ideal de Dom Helder por um Brasil sem miséria, fundou com alguns amigos, em 2003, um restaurante popular, que vendia refeições ao preço simbólico de R$ 1,00: O Dom da Partilha que, além da refeição, entregava sempre um poema para cada pessoa e prestava alguns serviços como, por exemplo corte de cabelo.

E em 2013 fundou o grupo Encontro da Partilham cujo objetivo era reunir-se e refletir, à luz do evangelho e do pensamento do Dom, fatos do dia a dia. O grupo se reúne até hoje. Antes da pandemia, os encontros eram uma vez por mês, no Espaço Dom José Lamartine, terraço das Fronteiras. Desde abril, por causa do isolamento social, o grupo se reúne todos os domingos, às 17 horas, em uma sala virtual, para celebrar o Ágape Ecumênico.

13.10.2013. Sindicato dos Médicos. O Grupo da Partilha é iniciado oficialmente

Por questões de divergência na opção política, estivemos afastados, fisicamente, nos últimos tempos. Mas só fisicamente. No coração e na razão, o sentimento de amor, carinho, de amizade fraterna, ainda persistia, aguardando o momento das arestas serem fechadas e as portas.

Em 1999, junto com Frei Betto, organizamos o ENCONTRO DOS DONS. Aproveitando a estada de Chico Buarque em Recife, para realizar seu show, o levamos para visitar Dom Helder. E claro que iriamos fazer uma entrevista exclusiva para o Jornal Igreja Nova. Pedi a Assuero para fazer a entrevista e ele a fez com maestria. Havia um pouco de jornalista dentro dele.

16.07.1999 – O Encontro dos Dons.

Assim era Assuero, um sonhador que ia em busca de seus sonhos, um visionário com ideias inovadoras e revolucionárias. Um contador de histórias que não se conformou apenas em contá-las, mas também fez parte delas, na busca incessante pela libertação das injustiças e das opressões.

Foram muitos os bons combates que lutamos juntos. E foram muitos os momentos de alegria e diversão.

Quase ia esquecendo mais uma mistura de Assuero que deu certo: a de imagens. Fotografia era um robe que curtia bastante.

[email protected]

Obs: A autora é jornalista,  e Assessora de Comunicação do IDHeC – Instituto Dom Helder Camara.
blogs – misturadeletras.blogspot.com.br
jornaloporta-voz.blogspot.com.br
encontrodapartilha.blogspot.com
 institutodomhelder.blogspot.com

Imagens enviadas pela autora
As 2 imagens iniciais são da filha da autora.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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