O mundo atualmente sinaliza viver uma nova crise na transição de paradigmas, um novo processo de transformação na humanidade que tem uma matriz referencial em todas as suas relações com o universo, o trabalho, a experiência religiosa, as relações sociais, afetivas, com os ideais a serem alcançados e com a própria criação de um futuro promissor.
Hoje contemplamos o ser humano ainda arraigado na modernidade com a sua matriz na tecnologia, onde o melhor é o mais rápido e vale mais quem detém a melhor resposta tecnológica. Dentro desta realidade, a melhor comunicação é a que ocorre por pulsos de luz através de uma fibra óptica, o cozimento mais eficaz é o de micro-ondas, o carro mais valorizado é o que atinge maior velocidade em menor tempo. Assim ocorrendo com as relações interpessoais, com o universo e com os seus ideais que são também impactados por um jeito veloz e tecnológico de lidar. É possível observar comportamentos sociais com movimentos de buscas por muitos contatos, num tempo curto e sem a exigência presencial, pois assim é mais fácil e mais rápido, só que com menor profundidade e por consequência, mais facilmente descartável. Este mecanismo também é possível identificar na definição de uma carreira profissional ou vocacional, com um reforço do mercado para que o jovem entre cada vez mais cedo nas relações de produção, onde a estabilidade financeira é apontada para alcançar uma estabilidade emocional.
A compreensão do contexto em que vivemos
A matriz cultural de referência no contexto em que vivemos hoje passa por uma mudança com o advento da pós modernidade, que propõe uma nova perspectiva que é a do conhecimento. Não só o conhecimento do universo como foi no Cosmocentrismo dos pré socráticos. Nem somente o conhecimento do homem no Antroponcentrismo que inaugurou as academias de medicina, as quais especulavam sobre o funcionamento da fisiologia humana. Nem tampouco somente o conhecimento de Deus com o Teocentrismo, onde detinha mais poder quem detivesse maior conhecimento sobre Deus. Este conhecer da pós modernidade, também extrapola o conhecimento e leitura da história, assim como das relações de desigualdades que desencadearam nas revoluções sociais, inaugurando o tempo do Historiocentrismo, em que teve na revolução francesa uma importante referência. Não tão somente também o conhecimento da Modernidade, em busca do raciocínio lógico, da técnica e da velocidade, que teve como matriz inaugural a revolução industrial inglesa. Mas, um novo conhecer com características mais globalizantes, reunindo a busca do conhecimento de todas as matrizes anteriores, a partir de um conhecimento maior sobre si mesmo e dos seus potenciais. É o tempo em que o ser humano admite no conhecimento integral e transversal, a possibilidade de empoderamento para lidar com o seu mal-estar, anseios e realizações. Trata-se da busca do saber sobre o cosmos, sobre o homem, Deus, a história, os meios tecnológicos para conhecer mais e melhor a si mesmo e consequentemente favorecer a sua realização pessoal, o sentido da sua vida. Um novo tempo também encaminha uma nova forma de lidar consigo mesmo e com os outros, por isso é necessário a consciência das forças que nos influenciam, assim como não perder de vista a força da história pessoal, dos projetos e das condições internas de realizações.
O conhecimento como nova matriz cultural da pós modernidade!?
Seria então este conhecimento uma nova matriz cultural e universal na história da humanidade? Tem maior poder quem detém maior conhecimento sobre tudo e sobre si mesmo? É bem capaz! Tomara que todo conhecimento que se busca e detém seja em favor do bem comum entre as pessoas e do planeta. Que estejamos ingressando no tempo do conhecimento para a construção de um ser humano melhor, das relações sociais mais igualitárias e de um meio ambiente mais sustentável.
Nesta perspectiva de desejar e fazer valer uma matriz cultural do conhecimento para o bem, vale salientar que esta busca passe por um saber que realize a pessoa, e este possa realizar boas novas para o todo circundante. O ainda peregrino Inácio de Loyola, na concepção dos Exercícios Espirituais, já preconizava esta ideia de que não é muito saber, mas o sentir internamente que satisfaz – “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (Loyola, EE 2, 4). Na vivência do conhecimento a partir da leitura dos sentimentos, das vivências do cotidiano, dos reflexos das relações com os outros, a pessoa encaminha a construção das suas opções e do seu porvir. Inácio parecia saber a diferença entre o muito saber e o sentir profundamente, e nesta diferença que o conhecer a partir do sentir é o instrumento mais valioso para melhor escolha.
Conhecimento como facilitador para o acompanhamento
Com este destaque para o aspecto do conhecimento, entramos no tema central desta reflexão sobre o acompanhamento dos jovens na criação de um futuro promissor. Todo aquele que acompanha precisa facilitar o conhecimento do caminho ideal para quem é acompanhado, pois não há garantia de um futuro promissor do que sentir-se no caminho certo para chegar no lugar que lhe é favorável.
Após ouvir e pesquisar sobre o significado da palavra acompanhar, cheguei a uma concepção que considero oportuna para o texto que é o de estar com ou junto a alguém, constantemente ou durante certo tempo. Estar com alguém sendo este acompanhado é fazê-lo sentir que com ele tem um outro alguém, ao lado e não acima ou à frente, mesmo que no papel do acompanhante resida um referencial de teórico e vivencial para ajudar na guia do lugar promissor. Entretanto, tal relação de diferença jamais pode comprometer a autoestima do acompanhado, zelando para resguardar a sua autonomia e subsequente segurança na sua tomada de decisão. O jovem que busca o seu lugar de realização, precisa ser o que mais enxerga neste caminhar, o que deve ter as melhores leituras do processo, aquele que precisa ser o primeiro a vislumbrar o lugar a chegar. Estar com o outro de forma constante, próxima e durante certo tempo, mas não para sempre.
É fundamental no processo de acompanhamento de um jovem, a garantia desta conduta de quem acompanha, de fazê-lo sentir nesta relação o enfoque de ter alguém ao lado, junto à sua caminhada, para que ele vivencie o tempo inteiro que está numa estrada para chegar no lugar em que somente ele chegará, para ai viver e ser feliz. A caminhada é feita com a ajuda do outro e até de muitos, mas a chegada é solitária – todo jovem precisa de apoio para suas decisões, mas jamais poderá depender dos outros para decidir por ele. Precisar sempre, depender jamais!
Por extensão, acompanhar vem de companhia, que vem do latim companio, de cum panis, aquele com quem se reparte o pão. Acompanhar é ser companheiro na estrada onde os dois devem trilhar, e até muitos outros, mas somente ao jovem é destinado o lugar da chegada, do lugar da morada e da realização.
Quem se dispõe a ajudar o outro na relação de acompanhamento, o faz porque quer realizar a sua missão de promover o bem-estar com quem se compromete nesta jornada. Esta é a premissa ideal para assegurar um acompanhamento gerador de liberdade, bem como da manutenção do foco de que tudo a ser feito neste processo tem apenas uma meta a ser alcançada, a realização pessoal do seu acompanhado.
Por uma pedagogia da encarnação – estar inserido na caminhada do acompanhamento
Aqui a sugestão é de que esta experiência possa ser inspirada pelo projeto de encarnação de Deus na realidade humana, com uma expressão máxima do Seu Amor pela humanidade, numa atitude de despojamento da Sua Divindade para se fazer homem, através de Seu Filho Jesus, referência na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Jesus, referência também da cultura de que para ser feliz é preciso o compromisso com a felicidade do outro. “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito.” (Evangelho de João 3).
No artigo publicado na Revista IHU ((Instituto Humanitas Unisinos), Padre Adroaldo Palaoro, jesuíta, com o título “A Trindade marca encontro com a humanidade”, nos convida a contemplar o mistério da Encarnação dos Exercícios Espirituais, quando Inácio propõe imaginar um “colóquio com as três pessoas divinas” (EE. 109), em que “a decisão da humanização de Jesus brota das entranhas do Deus Comunidade de amor: “ver e considerar as Três Pessoas divinas…”. Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa humanidade, não é mais possível crer que o Deus Uno e Trino seja nosso rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude; Ele não é o “juiz distante”, mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade…” (Palaoro, 2019).
Nesta contemplação inaciana, há um convite explicito para uma aproximação e um encontro com Deus, mais ainda, uma inspiração para sentir na relação com o Criador uma vivência de acompanhamento que gera, como supracitado no artigo, amizade, providência, alívio, plenitude, encontro e “fonte de nossa liberdade”. Na experiência da Encanação, a possibilidade exclusiva, dentre todas as experiências religiosas da história até hoje, de experimentar um laço com Deus que escolheu estar com a humanidade, de acompanhar de perto, sinalizar com a vida e conduta de Jesus, as linhas mestras para construção de um mundo melhor, de um futuro promissor, pessoal e social.
Sob a inspiração deste mistério, proponho como continente de sustentação, para um bom acompanhamento do jovem na construção do seu futuro promissor, uma pedagogia que favoreça ao missionado pelo acompanhamento, fazer a experiência da encarnação, do estar com o seu acompanhado, junto a ele, numa relação salvífica e terapêutica em direção ao seu espaço individual de chegada e realização – quanto maior a garantia de um jovem realizado, maior a possibilidade de uma mundo melhor… e realizando aos que nele habitam. Que a experiência de acompanhamento seja pautada por uma pedagogia da encarnação, onde esta ação com o jovem que busca uma orientação, seja reflexo da própria experiência da ação de Deus, que toma a iniciativa da encarnação para dispor da relação de aliança com seus filhos, em direção à realização do Projeto de maturidade, Salvação e felicidade da humanidade. Trata-se do estar e amar para fora, garantindo a proximidade do outro, o estar com o outro. Uma pedagogia da encarnação que promova um estar muito perto e juntos para poder acompanhar melhor.
Para fazer valer esta proposta de favorecimento da pedagogia da encarnação, existem três elementos presentes na nossa estrutura psicológica, que formam uma base de sustentação a esta didática de acompanhamento, que são o conhecimento, o acolhimento e a comunicação – aspectos que se apresentam de maneira dinâmica, se relacionam entre si e que se reforçam mutuamente. (continua)
O artigo acima foi publicado na Revista ITAICI número 121 do mês de setembro das Ed Loyola.
Referências bibliográficas:
(1)Loyola, I. D. (1985). Exercícios Espirituais de Santo Inácio. São Paulo: Ed. Loyola.
(2)Palaoro, A. (2019). A Trindade marca encontro com a humanidade. Revista IHU on-line (Instituto Humanitas Unisinos). http://www.ihu.unisinos.br/42-noticias/comentario-do-evangelho/590044-a-trindade-marca-encontro-com-a-humanidade
Obs: O autor é psicólogo CRP 11/0668
Psicoterapeuta Clínico de jovens e adultos
Assessor dos Seminários Propedêutico, Filosófico, Teológico e da Escola Diaconal da Arquidiocese de Fortaleza
Professor do Curso de Pós-Graduação em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
Assessor do Plano de Candidatos dos Jesuítas da Província do Brasil
Assessor de Dioceses, Congregações Religiosas e Comunidades