“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”

Ontem assisti o novo filme do Woody Allen, em minha opinião não é um de seus melhores trabalhos, mas não dá para fazer pouco caso de um gênio como Woody Allen. Para não estragar a experiência de ninguém, não contarei sobre o filme, mas uma passagem que me marcou é a comparação que o personagem faz dos contrastes entre analises filosóficas e vida real. A verdade é que podemos filosofar e analisar e racionalizar sobre todo e qualquer tema, acredite sou boa nisso, mas de maneira bem simplificada, o fato é que na prática a teoria é outra e as analises não passam de uma grande verborragia. Inclusive essa aqui. Em uma passagem o personagem principal cita grandes filósofos como Schopenhauer e Nietzsche, trazendo um certo pessimismo em suas análises e abordagens sobre o sentido da vida.

A complexidade do viver e dos conceitos morais não é assunto novo nem pouco abordado, os próprios Schopenhauer e Nietzsche passaram longos períodos analisando esses temas e se destacaram como pensadores também por isso. Assim como Woody Allen, outro gênio, Milan Kundera também inicia um de seus maiores romances citando Nietzsche. “A insustentável leveza do ser” é um romance complexo e denso, ao mesmo tempo que leve, abordando com genialidade a existência humana e a impossibilidade de plenitude a partir dos valores que a regem.

O livro nos apresenta quatro personagens, todos perdidos diante da contradição entre valores que alguns consideram anacrônicos, de cujos pesos, querem ver-se livres, e os valores que criam para si mesmos a fim de darem sustentação aos seus seres. Pois uma vida que se pretende mais leve pode ser tão opressora à existência quanto uma em que são incontáveis os fardos. Kundera era gênio e sábio, ele sabia que grandes experiências, de fato, tornam a vida pesada.

A verdade é que a vida real é bagunçada, complicada, densa. Sim, life is messy. Existe de um lado tudo que é considerado moral e que nossa mente tenta racionalmente entender e processar; e do outro lado existem os sentimentos, as incontroláveis emoções que fazem a gente perder o ar e a vida valer a pena, ao mesmo tempo que complicam tudo aquilo que nossa mente racional tenta (em vão) manter organizado, limpo, descomplicado, leve.

Na vida, principalmente na vida adulta, a vida real é bem diferente daquilo que planejamos, que sonhamos, que desejamos, porque nós somos complicados. Então, com o passar dos anos, os problemas vão ficando mais densos, as raízes mais profundas. O fundo do poço torna-se cada mais mais fundo. E o buraco é sempre mais embaixo. E por mais que tentemos viver a vida com leveza, tem certas coisas que merecem seu devido peso e importância

Tenho pensado muito nisso, porque em dezembro do ano passado fiz uma lista de tudo que precisava fazer para deixar minha vida mais leve e desde então, nove meses depois, ainda estou tentando aliviar a carga e fechar ciclos e não posso dizer que fui bem sucedida nesse quesito. Nem eu mesma fazia ideia do quanto estava enterrada, afundada, afogada em situações complicadas. Life is messy.

E se eu fosse a única pessoa a vivenciar isso já estaria de bom tamanho, mas para todos os lugares que olho, vejo pessoas que iguais a mim, também estão afogadas, emaranhadas, tentando sair da areia movediça enquanto nela se afundam ainda mais.

Eu tenho essa terrível mania de racionalizar sobre tudo e ter a (falsa) impressão que tenho comando total da minha vida e de minhas escolhas. Com certeza sou responsável por minhas escolhas, mas aprendi tarde que a vida não é (e não deve ser) tão “preto no branco” como eu teimo em acreditar. Porque o “preto no branco” é muito leve, não dá espaço para o peso do colorido.

Meu pai dizia que eu tinha uma ingenuidade que ele não compreendia, uma maneira de enxergar o mundo melhor do que é, de encontrar poesia nas amarguras; um ar sonhador que me fazia sempre equivocar-me ao medir a altura do tombo, ou simplesmente esquecer de medi-la. Uma inocência imatura que não parece ter acompanhando os meus anos de vida. Eu sei que ele temia por mim, que ele no fundo sabia que isso ainda me partiria muitas vezes o coração até que eu aprendendesse a criar uma casquinha que me protegesse dos “tapas na cara” que a vida me daria. Mas o que ele não sabia é que eu não queria criar essa casquinha e que tem tombos que quero levar, tem pesos que quero carregar.

Life is heavy. Viver  é pesado. A vida não é um mar de rosas para ninguém, a vida é complicada, bagunçada, complexa nas mais inconcebiveis proporções. As pessoas têm processos diferentes e muitas vezes esqueço disso, elas não vêm prontas porque somos todos seres inacabados, imperfeitos. E carregamos bagagens grandes, com cargas pesadas. Pois, assim como escreveu Kundera, não existe leveza, onde há profundidade de alma, de sentimentos, de experiências. Somos todos complicados, complicando tudo, travando nossas próprias batalhas, sonhando com oportunidades melhores enquanto o peso de nossas escolhas nos afunda ainda mais na areia movediça.

O que nos resta é saber o que podemos absorver de tudo isso e o que vai ficar de fora. Podemos aprender a traçar linhas, criar barreiras, delimitar fronteiras. Mas, é preciso ter em mente que se queremos experiências significativas, às vezes ,precisamos cruzar essas linhas, derrubar barreiras, construir pontes no lugar de muros. Resta saber qual é o limite do emaranhado, para quem jogamos a bóia, quem a jogará por nós. Qual areia queremos nos atolar e quando é hora de seguir em frente. Qual é a força de cada nó, quando devemos desatá-lo e quando devemos apertá-lo. E mais importante, quando devemos criar laços no lugar de nós. Nós. Encontros são feitos de nós. E encontros são pontos de chegada ou são pontos de partida. Resta agora tentar saber quando essa partida é o início da caminhada ou quando a partida é, de fato, partir.

“Tudo na vida tem a ver com as linhas que delimitamos. Não é aconselhável criar muita intimidade com os outros. Fazer amigos, fazer amantes. Precisamos de fronteiras, entre nós e o resto do mundo, porque os outros são muito complicados. E tudo tem a ver com as linhas. Limites. Fronteiras. Barreiras. Podemos passar a vida desenhando essas linhas e torcendo para que ninguém as cruze ou, em alguns momentos, podemos escolher cruzá-las. É preciso decidir. Mas, saiba que muitas vezes as fronteiras não deixam os outros para fora, elas nos engaiolam dentro. A vida é complicada. Nós somos complicados. É assim que somos feitos. Cheios de desejos, sentimentos e emoções. Então podemos escolher passar toda uma vida delimitando fronteiras, desenhando linhas, ou, podemos escolher viver a vida cruzando essas fronteiras, apagando linhas. Mesmo sabendo que algumas dessas fronteiras são muito perigosas para serem cruzadas. Mas isso é o que eu sei: se vez ou outra você optar por jogar no vento toda essa cautela e dar uma chance ao complicado, a vista do outro lado pode ser espetacular.”

Adaptado de Grey’s Anatomy S. 01 E. 02 – The first cut is the deepest

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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