Hoje não se trata apenas de comemorar o que aconteceu 50 anos atrás. Trata-se de agir dentro do espírito que animou 40 bispos no ano 1965 a se comprometer de forma tão radical e tão concreta com uma vida modesta, até pobre.
- Importante mesmo é compreender o simbolismo da oposição entre Vaticano e Catacumba. O que significa ‘Vaticano’? Historicamente não há dúvida: o Vaticano simboliza o uso incorreto do dinheiro dos pobres. Peregrinos, ao longo de muitos séculos, depositaram imensas somas de dinheiro nos pretensos túmulos de Pedro e Paulo em Roma. Isso constitui, até hoje, a base financeira fundamental do Vaticano, manipulada durante séculos, mas sempre nas mãos de uma elite sacerdotal. Hoje vemos os palácios esplêndidos, a solene corte de monsenhores, reverendos, eminências, purpurados e mitrados. Isso é apenas a ponte do iceberg. Trata-se do manejo do poder por parte de um pequeno grupo que muitas vezes não representa os interesses do povo católico. Parte da riqueza do Vaticano está sendo vergonhosamente desviada, como comprovam fatos recentes.
O que é catacumba, historicamente? É sepulcro digno para todos os escravos, sejam ou não cristãos. Eis a política dos administradores de catacumbas como Calixto, chegou a ser eleito papa, no século III. Optar pela Catacumba é optar por um modelo de vida que dá oportunidade a todos e todas, acima de qualquer clausura. Vocês entendem que estou falando de coisa prática.
Nas nossas vidas aparecem ‘vaticanos’ e ‘catacumbas’, como na vida de Helder Câmara apareceu Manguinhos e Fronteiras. Ele optou, resolutamente, por Fronteiras, ou seja, por um modo de vida que não condiz com palácio, honra, prestígio, mas com compromisso com os mais débeis da sociedade. Precisa refletir como realizar isso em nossas vidas.
- Claro, tudo depende das condições concretas de nossas vidas. Não somos bispos nem sacerdotes. Talvez nem sejamos católicos nem cristãos e mesmo assim entendemos de que se trata aqui. O simbolismo é claro, significa um modo de viver e agir que se destaca do modo de viver orientado para lucro e acumulação de dinheiro. Todos e todas podemos fazer algo. Não há regra que valha para todos e todas. Cada um, cada uma tem de ver o que pode fazer. Os bispos deixaram o palácio, alguns se deslocavam sem ter automóvel particular (como Helder), por vezes dispensaram a cozinheira (como Helder), recusaram títulos honoríficos e contas pessoais em bancos. Nós estamos diante do desafio de fazer algo na mesma linha, dentro das condições de nossas vidas concretas.
Isso não é fácil. Duas coisas, penso, podem nos ajudar: (1) a espiritualidade; (2) a participação em algum grupo de inspiração cristã.
– A espiritualidade.
Quando falo aqui de espiritualidade, não me refiro necessariamente a gestos religiosos, orações, missas, sacramentos, promessas. Por espiritualidade entendo aquilo que aconteceu na sinagoga de Nazaré quando Jesus abriu o rolo do profeta Isaías e leu. Você encontra o texto no capítulo 4 do Evangelho de Lucas:
Um Sopro do Senhor está sobre mim;
Por ele fui designado (ungido, messias, escolhido) para anunciar uma boa notícia aos pobres.
Mandado por ele, eu declaro aos prisioneiros a libertação,
Aos cegos que vão enxergar de novo,
Aos oprimidos que serão perdoados (veja Isaías 61, 1-2 e 58, 6).
O Evangelho de Mateus fala em ‘pobres de espírito’ (Mt 5, 3). Na realidade do evangelista se refere a Isaías 57, 15:
Estou com os derrotados
Os sopros humilhados
Reanimo os sopros dos humilhados
Reanimo o coração dos derrotados.
Eis a espiritualidade bíblica que tem força de nos alimentar ainda hoje, em nossas vidas. Para Helder Câmara, textos como estes lhe deram forças para aguentar um episcopado repleto de problemas com a ditadura política (padre morto, outros exilados) e ao mesmo tempo com o Vaticano (papa Paulo VI dúbio, os colegas no episcopado indecisos). Na sala de estar de Fronteiras, li a seguinte mensagem enquadrada:
Quanto mais negra a noite
Mais perto a madrugada.
Isso é espiritualidade.
– Uma segunda atividade que pode nos ajudar no compromisso com uma vida em comunhão com os pobres consiste na participação em algum grupo de inspiração cristã.
A psicologia ensina que sem grupo não se sustenta uma ação duradoura. Após os sensacionais sucessos de suas viagens na primeira parte dos anos 1970, Helder Câmara experimentou dolorosamente que o enorme entusiasmo que sua presença despertava na hora em muitos lugares pelo mundo afora, com o tempo deu em nada. Foi duro, para um homem de palco e de microfone, de centro de cena e de grandes conglomerações, perceber que suas iniciativas de unificação das universidades em torno de ideias de libertação, por exemplo, não deram em nada, assim como o Vaticano II em muitos aspectos não deu em nada. Ele se queixava: ‘como é difícil romper estruturas’. Foi nesses desencantos que Helder descobriu a força das minorias, das ‘minorias abraâmicas’. Essa expressão é feliz, pois abarca muitos movimentos, além do cristianismo, indo ao judaísmo e ao islamismo e mesmo além. Grupos físicos ou grupos virtuais, como os que se formam em torno de Alder Calado na Paraíba, de Adital no Ceará, de Somos Iglesia no Chile, de Ameríndia, e muitos outros. Esses grupos informais e virtuais se alargam sempre mais.
Ainda uma palavra sobre grupos formados por mulheres. Não podemos esquecer que devemos as Cartas Circulares ao fato que Helder, desde seus tempos no Rio de Janeiro, sempre se relacionou com sua ‘família mecejanense’, um grupo de mulheres como Cecília Monteiro, Marina Bandeira e outras. Até hoje a igreja clerical patina porque não entende o poder das mulheres, que se manifestou de forma tão clara pela imediata aceitação mundial da pílula anticoncepcional desde 1961. O Sínodo que se realizou em outubro terminou em nada porque os padres sinodais ainda não compreendem que as mulheres também revelam Deus, por mais estranhos que lhes pareçam os comportamentos femininos. Se elas, desde 1962, não escutam mais os padres, é que algo está errado com o ensino dos padres. Os papas ficam angustiados, mas deviam aprender com Helder Câmara que mostrou que as mulheres ajudam a livrar a igreja do papa.
Para terminar. A sarça ardente no deserto (Livro Êxodo, primeiros versículos) continua ardendo. Moisés, libertador do povo hebreu cativo no Egito, Helder Câmara, libertador do povo nordestino cativo de um sistema político e social perverso, não são figuras isoladas. Todos e todas somos chamados a seguir na trilha de Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Jesus, Gandhi, Mandela, Martin Luther King, Helder e muitos outros e outras. 16th November 2015
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.