Rômulo Vieira 1 de dezembro de 2020

O dia já amanhecendo, embora o astro rei ainda esteja se escondendo  por trás de algumas nuvens. Contudo a sonora do galo confirma o alvorecer. Os passarinhos em um festival encantador vão deixando suas hospedagens noturnas, as árvores de Flamboyant, Pau-Brasil, Ficus, mangueiras etc. Todas estiveram repletas durante à noite, agora liberam os hóspedes para mais um dia de voos sublimes em busca de alimentos e de um par perfeito para perpetuar a espécie.  Ouve-se cantorias das mais diversas, contudo, em uma harmonia, como se fora um coral magistral.

Eu e meus irmãos, ainda sonolentos, passávamos na cozinha e pegávamos nossas canecas, devidamente organizada por nossa mãe: açúcar no ponto e um pouco de Toddy. Nos dirigíamos ao estábulo onde mamãe já procedia a ordenha de umas 10-12 vacas e cada um de nós ia se aproximando, com a caneca na mão, “bença” mamãe e já passava a caneca para ela. Ela enchia a caneca de cada um, com aquele “leite mugido”, quentinho e delicioso e cheio de espuma. Nós bebíamos com um prazer indescritível e o passo seguinte era ver quem “produzia um bigode maior” com aquela espuma. Era um ritual que nos enchia de orgulho (pela coragem de nossa mãe), prazer no saborear o leite e muito encantamento pelo momento festivo mesmo antes do café matinal. O que não nos agradava muito era a limpeza do estábulo, quando as vacas iam para o pasto. Como é que um número tão pequeno de animais podia produzir tanto esterco? Era um trabalho não muito agradável, para crianças (ainda preguiçosas por ser tão cedo), mas a certeza de no outro dia termos a rotina da caneca, nos dava força para terminarmos o quanto antes.

O contato com nossos animais, na ordenha, no trato com a alimentação e o cuidado com a saúde dos mesmos, acredito que, de certo modo, contribuiu para meu interesse em ser médico veterinário. Interesse que por um certo tempo, após um coice nos “meus peitos”  de minha estimada vaca Estrelinha, que me deixara sem fôlego e sem poder falar por alguns segundos, foi interrompido. Mas esse episódio foi superado e o interesse em ser médico veterinário voltaria quando realizava então o  técnico agrícola.

Após aquele festival da caneca e limpeza das instalações nós seguíamos para um banho matutino, com a recomendação cuidadosa da nossa mãe para nos lavarmos bem, especialmente atrás das orelhas, porque nossas professoras na Escolinha Primária, verificaria invariavelmente essa parte, bem como as condições higiênicas das unhas.

Ah e o café da manhã que fartura. Sinto saudade de um bule na mesa, fumegando um café  cheiroso que fora moído e torrado na hora. Um cuscuz feito numa “rodia  de pano” em um prato na “boca” de uma chaleira. Vocês que não conheceram essa “cuscuzeira” não sabem o sabor daquele cuscuz que ela produzia. Cuscuzeira era para os fracos.

Ainda no café matinal era irremediável aquela macaxeira branca ou  amarelinha que derretia a manteiga de garrafa quando colocada por cima dela. Um pedaço de charque assada, galinha guisada com toda aquela saborosa gordurinha, tapioca, pão frito na frigideira com queijo de coalho assado, banana cozida. Quase que obrigatória era servida também a deliciosa coalhada que “pulverizávamos” por cima um pouco de canela. Faziam parte desse ritual uma porção de broa, um punhado de tareco, uma fatia de bolo pé-de-moleque, bolacha cream cracker ou de maisena. Que café… só muito tempo depois eu vi um café semelhante ao nosso na adolescência, o café do Hotel Tirol  em Natal no Rio Grande Norte. A diferença é que nesse hotel  era servido também muitas frutas. Se falava tanto na qualidade e variedade desse café nesse hotel que se dizia: no café tem até jaca.

Por que no nosso café não tinha (era raro) frutas? As frutas eram para os lanches, realizados no intervalo entre o café da manhã e o almoço. Aí nós nos empanturrávamos de frutas na maior diversidade. Oportunamente comíamos também até a jaca, fornecida pelas regiões da Serra do Camocim e da Pedra Grande. Comíamos frutas à vontade, mas as mais saborosas, sem dúvida, eram aquelas “colhidas gentilmente” das propriedades alheias: as goiabas, figos e as sapucaias do sítio dos padres; laranja-cravo, manga, do pomar do colégio; o abiu, mamão e a graviola da horta  do Senhor Biu da Horta, dentre outras, dependendo da safra. E mesmo depois desse banquete de frutas, não recordo de termos, alguma vez, refugado a hora do almoço. Ô apetite voraz  tinham aquelas crianças. Além de nos exercitarmos com frequência, pois vivíamos em movimento continuadamente, com certeza isso contribuía significantemente para sermos tão saudáveis.

Após o café da manhã seguíamos para a nossa querida Escolinha Primária. Chegávamos cedo para podermos recepcionar nossas professoras queridas que vinham da cidade de Vitória de Santo Antão. Apenas a Dona Erundina morava em São Bento. Dona Eurides e Dona Carminha vinham de Vitória e a gente ficava aguardando a condução que traria as mesmas. Os transportes foram os mais diversos, desde a famosa Marinete, até o ônibus nos últimos anos, passando pelo jeep, pick-up e rural. Mas sempre estávamos presentes, na expectativa se as professoras viriam.

Muitas vezes antes da chegada da condução, era disputada uma rápida partida de futebol, o que deixava as professoras irritadas, pois entrávamos na sala de aula já suados e as vezes com as fardas manchadas, apesar de terem sido impecavelmente cuidadas por nossas mães, cheias de poeira, tênis  sujos, era um terror para as professoras. Enfileirados, de acordo com cada série, nós entoávamos as vezes o Hino Nacional, outras vezes o hino do glorioso Pernambuco:

“Salve! Ó terra dos altos coqueiros!
De belezas soberbo estendal!
Nova Roma de bravos guerreiros
Pernambuco, imortal! Imortal!”

Inesquecível. Em seguida passávamos pela revista das professoras e as orelhas e unhas, como previa mamãe eram sempre analisadas e adentrávamos nas salas de aula.

Que saudades das nossas professoras que nos prepararam para quase tudo na vida. Quem não passou pela famosa palmatória de Dona Erundina que nos arguia: 2 x 2  e  a  gente prontamente 4. E continuava 3 x 5 = 15 e se  7 x 6 não fosse 42. A palmatória comia solta.

Como não lembrar das aulas de descrição ou dissertação? Na descrição era colocado um cavalete com uma paisagem na frente da sala e a gente tinha que descrever toda aquele quadro. Na dissertação era nos apresentado um tema e a gente tinha que dissertá-lo. Como aquelas aulas foram importantes para todos nós. Eu acredito que as mesmas contribuíram significantemente para que eu já no ginásio, tenha ganhado um prêmio de redação, sobre o tema: O dia do soldado. Tema proposto pelo nosso professor de português prof. Epitácio, o qual me presenteou com um livro: Psicologia da Religião, de autoria  do professor Merval Rosa da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

As aulas de português/literatura que nos “obrigavam” a ler Machado de Assis, Castro Alves, Joaquim Nabuco, José de Alencar, dentre outros. Tínhamos que apresentar um resumo do livro com uma mínima interpretação. Que bom que aprendemos a ler bons livros. Até mesmo as aulas de caligrafia eram estimulantes. Como eu queria ter a caligrafia de Dona Eurides, caprichava no caderno de caligrafia, mas infelizmente não consegui desenvolver minha caligrafia, que as vezes meu pai me advertia: Rômulo quando você enviar uma carta pra gente lembre que você não está “passando uma receita”, nós precisamos entender o que você escreveu. Lamento Dona Eurides, fiz todo o possível para chegar a ter uma caligrafia, ao menos parecida com a sua, mas os bancos do colégio e da universidade deterioraram minha escrita.

E Dona Carminha de uma singeleza peculiar, tinha o maior cuidado e preocupação conosco. Ficava preocupada com nossos esportes na hora do recreio, que as vezes “quebravam” a cabeça do dedão do pé, relavam um cotovelo, feriam um queixo, cortavam uma testa.  Era uma atenção impressionante conosco. Não me lembro dela ter alterado a voz alguma vez com um aluno, mesmo quando esse era um aluno “endiabrado”, mas soube recentemente, quando dos nossos encontros dos Amigos para Sempre, quando tivemos a oportunidade de almoçarmos com nossas queridas professoras, devido a uma inconfidência de Dona Eurides, que Dona Carminha não reclamava conosco, mas ela repassava as nossas travessuras a durona Dona Eurides. Mas não as condenamos por esta parceria. Elas  são responsáveis por parte do que somos hoje: adultos, com família e com uma profissão.

Na nossa formação não podemos deixar de agradecer a nossa querida professora de catecismo que nos recebia aos sábados a tarde, a  nossa estimada Ester que nos apresentou a religiosidade, a fé cristã e a esperança em Deus. Há alguns anos tive a oportunidade de almoçar juntamente com a Suely e sua mãe Dona Nenzinha, com a Ester em sua casa em Chã de Alegria e me impressionou muito a preocupação dela nos dias de hoje: Rômulo eu fui muito “dura” com vocês? Me desculpe eu precisava ser rígida com vocês, porque vocês eram uns “capetinhas”. Me desculpe se fui muito “braba” com vocês. Que nada querida Ester, você nos ajudou a sermos seres humanos.

A hora do almoço era um ritual quase sagrado a se cumprir. Ninguém poderia almoçar antes da chegada de papai do trabalho e impressionantemente seu pássaro graúna (pássaro-preto), em um canto  quase frenético, anunciava a sua aproximação. Era realmente fantástico, nós conseguíamos perceber que papai estava chegando pelo canto desse pássaro. Infelizmente esse pássaro foi roubado. Papai criava alguns passarinhos em gaiolas, além do seu estimado graúna e vários outros em um viveiro enorme que ele mesmo construíra. Quando percebeu o roubo do seu querido graúna abriu as portas de todas as gaiolas e do viveiro e nunca mais quis criar nenhum passarinho.

Após esse ritual da aguardada chegada de papai, tínhamos que nos sentarmos e almoçarmos todos juntos. A mesa adequadamente era do tamanho que cabia todo mundo. Uma daquelas mesas tradicionais das grandes famílias da época. Paulatinamente mamãe e vovó iam autorizando a liberação do banquete. Graças a Deus sempre comemos muito bem. E cada panela era o requinte de sabor. Como eu gostava de um pedaço de carne, charque, ou um bom osso, cozinhados dentro do feijão. O tutano além de dá um sabor todo especial ao feijão, trazia a fama de ser bom para a inteligência, então a disputa era grande e o mesmo tinha que ser distribuído por nossa mãe.

O arroz, as vezes com pedaços de carne dentro, construía o tradicional feijão com arroz. Mas a carne era uma exposição a parte: assada, cozida, frita e, dependendo da ocasião, poderíamos  escolher de frango, de porco ou de boi (a famosa carne de gado  que por ser fresquinha era  chamada de carne verde). Salientamos que galinha e  porco  que saboreávamos quase sempre, às vezes, eram de produção própria. Uma certa época, por algum tempo, nós tivemos também a carne de coelho como opção, pois criávamos essa espécie no quintal de casa. Merece destaque a paçoca elaborada por mamãe na mão de pilão que complementava o almoço. Vovó as vezes enriquecia essa paçoca com a farinha de castanha. Um verdadeiro deleite. Na sobremesa poderia aparecer uma cartola, um pudim de leite, um doce de jaca, de mamão verde, ou de banana. Era delicioso esse almoço em família.

No período do almoço até o jantar não era raro o nosso ataque ao canavial do colégio  na fazenda que Dr. Rodolfo administrava. Quase todos tinham a sua indispensável “faquinha” chamada de bico-de-gaita. Verdadeira companheira, para saboreamos as mangas e canas deliciosas. Por incrível que pareça, após chuparmos várias canas, ainda fazíamos um feixe e carregávamos para “descascar” à noite.

Finalmente ao chegar o jantar, era preciso também aguardar a chegada de papai do trabalho. Mas a espera não era problema, nós estávamos sem muita fome, devido a contribuição de nossa bico-de-gaita nos ataques rotineiros e ficávamos tranquilos esperando  aquela comemoração que era o jantar. A partir do mungunzá, tudo era delicioso, uma canjica que despertava uma briga enorme pelo “papeiro”, onde ficava a raspa da canjica, que vovó sabiamente escalava o privilegiado a raspar/saborear, pamonha. Milho verde produzido no nosso próprio quintal, que papai havia dividido em roçados. Cada um tinha o seu, assim tinha que cuidar desde o preparo do terreno, trato culturais, até a colheita. Cada um queria que seu roçado fosse o melhor e mais produtivo, desse modo cuidávamos com afinco dos nossos roçados. Tínhamos a opção de uma sopa com aqueles deliciosos pedaços de carne, inclusive com o saboroso osso cheio de tutano, já referido também no almoço.

Depois de um agitado dia era impossível que não estivéssemos prontos para dormir, assim depois de um bom banho, um pouco de televisão e  assistir um dos filmes: O Homem do Rifle, Rin Tin Tin, Bat Masterson, Zorro etc. era só dizer: bença papai bença mamãe, até amanhã.

E no outro dia, tudo se repetia.  Podemos dizer: eu era feliz e não sabia.

Obs: O autor, Prof. Dr. Rômulo José Vieira é Acadêmico da Academia de Ciências do Piauí; Acadêmico da Academia de Medicina Veterinária do Piauí; Acadêmico correspondente da Academia de Medicina Veterinária do Ceará; Acadêmico correspondente da Academia Pernambucana de Medicina Veterinária.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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