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  1. É preciso achar o próprio espaço interior na relação com o grande espaço exterior

Curiosamente, é bastante comum escutar convites como este: “Agora, convido vocês para o nosso momento de espiritualidade”. Na verdade, esse modo de falar reflete uma mentalidade perigosa, infelizmente bastante comum. Será que pode haver mesmo “momentos de espiritualidade”? Ora, isso suporia que há na vida muitíssimos momentos que não são de espiritualidade, como se a espiritualidade acontecesse em alguns momentos determinados. Ou, ao contrário, a espiritualidade nada mais é que uma dimensão que anima e arrasta, como o vento, a vida inteira enquanto essa é permanente chamado a amar e servir em qualquer situação em que nos encontremos, enquanto pessoas, quer seja na vida familiar, profissional, social, política, cultural e religiosa. Na verdade, “espiritualidade” não equivale a religião, a momentos de oração ou a Igreja. Antes, tem a ver com o amplo espaço da vida toda. Pois a dimensão espiritual funda e envolve a totalidade da pessoa.

Espiritualidade não equivale a espaços, setores ou atividades em que a alma é imaginada como superior e separada do corpo, ou seja, da materialidade e quotidianidade da vida. Também não equivale à esfera religiosa, imaginada como espaço em que Deus seria particularmente ativo; como se nossa intimidade com o mistério de Sua presença em nós dependesse de deixar de lado nossas alegrias e as tarefas ou exigências da vida de todo dia. De acordo com Matthew Fox, teólogo católico anglicano, arauto da “espiritualidade da criação” e interessado em promover modelo mais saudável de relações entre masculino e feminino, “a espiritualidade cristã é o enraizamento do ser no mundo. Isto significa que economia e arte, linguagem e política, educação e sexualidade, são igualmente parte da espiritualidade da criação. E, não por último, a alegria de viver. A alegria do êxtase e da exaltação compartilhada na celebração. É, assim, espiritualidade não elitista, ao contrário, espiritualidade popular, deve-se dizer. É, na verdade, a espiritualidade que interessa ao povo.

Se essa perspectiva realmente pode interessar as pessoas, é óbvio, no entanto, que nem tudo é claro e nem são eliminados conflitos e tensões inerentes ao desenvolvimento normal do ser humano. Deus nos chama a caminhar adiante sem eliminar, necessariamente, situações obscuras; e não está aí para amaciar nossa caminhada o tempo todo. Orar, por exemplo, para livrar-se da depressão, quando justamente estar deprimido(a) em relação a alguma situação pode ser a resposta apropriada ao que está acontecendo conosco, poderia ser, na verdade, negar a presença de Deus em nós e não acolhê-la. Santa Catarina de Sena se lamenta: “Onde estavas, meu Deus, quando meu coração se debatia atormentado?” E Deus lhe respondia: “Eu estava em teu coração”…

Em nossa aproximação a Deus é preciso experimentar sempre certa dose de “agnosticismo”, ou seja, de dúvida em relação a si mesmo(a). A ausência de dúvida ou hesitação é traço admirável quando se trata, por exemplo, de um agente político. A liderança firme é importante para tomar decisões difíceis e fazer as coisas acontecerem. Mas, no caso de quem é cristão e ao tratar-se da caminhada da vida, seria desastroso. Pois fecharia qualquer discussão e seria instrumento para fomentar dissimulação e demagogia e encobrir a verdade profunda da vida. A dúvida em relação a nós mesmos(as) é parte de nossa condição de povo pecador e arrependido, incompleto, dependente, “em caminho”. Adotar esse comportamento seria muito saudável, tanto para a Igreja como instituição, quanto para nós seus membros. Conflito, duvidar de si, arrependimento, simplicidade, silêncio, tudo isso são ingredientes de nossa espiritualidade cristã, na qual o convite é para a santidade, o que não é outra coisa senão tornar-nos imagem de Deus. Assim, a melhor definição de espiritualidade seria, talvez, inspirando-se na Bíblia, “vida no Espírito”. Vida vivida com a consciência de que o Espírito, presente em Jesus, é o mesmo Espirito que pairava sobre o caos primitivo (cf. Gn 1, 1-2), o mesmo que cria, liberta, faz junto e inspira tudo o que é bom e amável em toda parte e em todo tempo. Esse mesmo Espírito está sempre convocando-nos para um futuro comum, pois não se pode conceber a vida no Espírito sem que tenha sua origem e seu foco na comunidade.Dom Helder Camara dizia: “Não há uma única definição de santidade. Deve haver tantas, cem, quem sabe. Mas há uma que eu particularmente prefiro: ser santo significa levantar-se imediatamente após cada queda. Significa ser capaz de dizer: ‘Sim, Senhor, é verdade, eu já caí por cem vezes, mas eu Te agradeço por ter-me levantado outras tantas vezes. Isso é tudo. Eu prefiro pensar assim”.

  1. Espiritualidade cristocêntrica

“O fato de eu nunca ter tido um forte desejo de visitar a Palestina e me ajoelhar à vista da manjedoura de Belém ou de me alegrar em Caná onde a água foi transformada em vinho ou de trilhar o amargo caminho do Calvário, foi simplesmente a reflexão sobre o fato de que eu me senti levado a pensar que Belém poderia ser um anexo de um “pub” (bar) qualquer, que toda água pode ser mudada em vinho, e que há Calvários bastantes e de sobra em Londres e em Nova Iorque. O elemento teológico essencial dos antigos concílios da Igreja foi sua declaração da universalidade de Cristo. Apesar de tudo o que se possa dizer em contrário, nós fomos educados para aceitar isso, de tal forma que nada se atravesse em nosso caminho para duvidar” (S. Evans).

“Você crê em Deus?” Essa é a pressante questão. Mas qual é a resposta? O teólogo brasileiro Rubem Alves indica a resposta cabal: “Qual é?” E essa resposta nos deve indicar qual é a pista para perceber que espécie de espiritualidade nós vamos seguir. Na verdade, os cristãos não devem mais especular sobre Deus (embora fazer isso possa parecer infinitamente fascinante e talvez até compensador). Só que Deus se manifesta a nós em nossa própria humanidade. O Evangelho de São João o afirma claramente: “A Palavra se fez carne e habitou entre nós”. O que foi verdade na Palestina há dois mil anos, de acordo com as melhores tradições do Novo Testamento, é verdade agora quando meditamos no significado de ser feitos(as) à imagem de Deus e o que queremos dizer quando nos referimos à presença do Espírito Santo em nossa vida, a saber, nossa carne, nosso sangue, nossa personalidade, circunstâncias e relacionamentos. Esse Espírito é a força que pairava no Princípio para fecundar a criação. A divina energia procede do coração do eterno Amor. Nós tocamos esse amor em Cristo e cremos que Ele é a fonte de toda a energia da bondade, da justiça e da verdade. “Não é preciso buscá-Lo da maneira antiga, nem Ele responder daquele mesmo modo. Dando-nos Seu Filho como Ele já fez, Sua única Palavra, Ele, nessa única Palavra já disse tudo. Não há mais necessidade de nova revelação”, é o que nos diz São João da Cruz. E Santa Teresa d’Ávila: “Deus deseja que essas graças nos cheguem pelas mãos de Cristo, mediante Sua santíssima humanidade, na qual Deus acha seu prazer”.

Esses dois grandes doutores da espiritualidade na Igreja afirmam a centralidade da Encarnação. Nós podemos mergulhar na poesia, no misticismo, na ascensão espiritual, na batalha da oração, discursos, grupos de oração, e outros meios, mas há um único decisivo da espiritualidade cristã: o que possibilita reconhecer a natureza “carnal” da presença de Deus conosco, assim como aparece no Evangelho, Deus que se manifesta na existência humana de Jesus de Nazaré. E, por extensão, em nossas vidas. É precisamente este ponto que é “escandaloso”, inesperado, impensável, tanto para a mentalidade “espiritual” de gente religiosa, quanto para o monoteísmo estrito; mas também para gente não religiosa que, de várias maneiras, tende a elevar a dimensão intelectual ou hedonística da experiência humana por caminhos que rebaixam a dignidade do corpo.

Na encarnação, como costumamos designar a maneira de Deus tornar-se carne, não se trata de um fato isolado, unicamente restrito a Jesus de Nazaré e destinado a impressionar a humanidade uma vez por todas. Na verdade, a Encarnação é um “processo” pelo qual Deus revela o verdadeiro sentido da Criação, a excelsa dignidade do ser humano e o eterno destino que decorre de nossa da união com o Mistério de Deus em Cristo (cf. a perspectiva das epístolas aos Efésios e aos Colossenses). E tudo isso se deu e se revelou, não mediante fenômenos gloriosos ou como conclusão de elevados conceitos filosóficos, mas a partir de um estábulo em Belém, de uma oficina de artesanato em Nazaré, de um heterogêneo grupo de amigos que eram pescadores, militantes de grupos descontentes, gente desprezada pela elite dirigente, odiados coletores de impostos, mulheres marginalizadas por serem mulheres ou, ainda pior, de má reputação. Ele viveu em uma determinada cultura com sua linguagem particular, suas próprias expressões religiosas, com as quais entrou em acirrado conflito, e em particular conjuntura política da qual finalmente foi vítima. É precisamente essa “particularidade” que deve imprimir em nós a forma de nosso caminho de vida e de nossa maneira de orar e de pensar a realidade.

Conceitos universais, dogmas teológicos, fórmulas científicas naturalmente devem constituir importante pano de fundo de nossos raciocínios e formulações, mas o fato é que nós vivemos com gente em particulares circunstâncias e é em meio a essa gente que somos chamados(as) a discernir o que confere peso e valor para perceber a vida que Deus nos comunica. E a partir do ponto em que nos situamos somos chamados pela vida a nos abrir a novas gentes e a novos horizontes. Não devemos nunca imaginar nossas circunstâncias ou o povo a nosso redor como insignificantes quando estamos banhados(as), impregnados(as) da generosidade, dessa generosidade divina que se pode perceber naquela oficina de carpinteiro e entre barcos de pescadores galileus. “Seguir a Jesus”, filho do Criador, significa encontrar o divino em nossa própria humanidade, enquanto justamente O percebemos, de maneira tão exaltante, em Sua humanidade e individualidade. Só assim, estaremos aptos(as) a testemunhar a presença dinâmica do Espírito na particularidade da condição humana, particularidade que necessariamente se estende e se alarga à riqueza e diversidade de nossas relações, comunidades e culturas.

Não seria negar as grandes verdades em que formulamos a fé cristã, se, quando pensamos em espiritualidade, entendemos apenas um setor ou atividades que envolvem só uma parte de nós, correspondente ao que chamamos de “intelectual” ou “parte espiritual”? Nós precisamos representar a riqueza de Deus como relações já no interior d’Ele mesmo (Trindade), não como uma “mônada” ou apenas um “dogma” eclesiástico, mas concretamente na criatividade, humanidade e intimidade, a saber, como perfeita pessoalidade e complementaridade comunitária e coletiva. De fato, há várias maneiras de pensar e imaginar Deus como Trindade, o mais simples, porém, e o melhor se acha em aprender e estar na companhia de Jesus que simplesmente chama Deus de “Pai” e fala do Espírito como “outro Consolador”, dito de outro modo, o Divino como realidade em nós e entre nós. Ao nos concentrar-nos em Jesus, abrem-se para nós os valores do Reinado de Deus e os meios para viver na prática esses mesmos valores, comunicando-se a nós a divina energia do Espírito que nos se derrama como dom. O monge e teólogo Marcelo Barros nos alerta: “Na minha Igreja eu vejo a todo momento um jeito de falar de Jesus, de orar para Jesus, de pensar o Cristianismo como a religião de Jesus Cristo que o isola do Pai e faz dele uma divindade meio pagã. A tradição litúrgica sempre nos ensinou a orar ao Pai, pelo Filho na unidade do Espírito Santo. Mas, na prática, o pessoal dirige sua fé a Jesus de modo desligado da fé trinitária”.

  1. Religião, ou melhor, espiritualidade e Ciência

O grande cientista Albert Einstein dizia que “ciência sem religião é manca, religião sem ciência é cega”. Você prefere uma peixada ou musse de maracujá? Pode haver diferentes respostas a essa pergunta. Uma delas, por exemplo, poderia ser que gostaria das duas, com preferência de tê-las não no mesmo momento. As duas iguarias são diferentes, correspondem a diferentes sabores e é aconselhável para diferentes momentos. Pois é, nós somos propensos a enxergar as coisas em oposição entre si: partidos políticos, competição econômica, policiais e bandidos… Mais sutilmente, nós gostamos de comparar tudo: a melhor igreja, a melhor escola, a mais bonita cidade, o melhor e mais caro perfume. Obviamente, competição é importante aspecto do esporte, do mercado e de meios de comunicação; mas isso não pode ser arrastado para a maneira como vemos todas as coisas. Um dos guias básicos de uma sadia espiritualidade é a capacidade de enxergar as coisas em termos de complementariedade.

Sem dúvida, já estamos cansados(as) da ideia de ciência e fé como esferas competitivas. A polarização leva facilmente a vender o estilo fundamentalista de religião que conhece tudo acerca de Deus, ou, igualmente, a vender livros de “ciência” que chegam a negar a ideia autêntica de Deus. Mas nós somos confrontados(as) por questões vitais nessa esfera e se não as levantamos e não lidamos com elas nem incorporamos nossas descobertas em nossa espiritualidade nós traímos quem busca enxergar para além desse horizonte fechado da polêmica entre fundamentalismo e ciência, ou melhor, cientificismo. Não deveria haver nenhum problema em reconhecer que ciência e fé, ou também religião têm cada uma sua própria linguagem e buscam responder a questões diferentes. A ciência pergunta “como” e responde matematicamente; por sua vez, a religião pergunta “por que” e, sem ignorar ou desprezar a ciência, responde poeticamente. É absolutamente sem sentido tratar ambas como alternativas, pois nos são úteis em diferentes sentidos e ambas devem ser abordadas de maneira crítica, firmemente recusando idealizar ou absolutizar sua contribuição ou utilidade. Do ponto de vista teológico, nós reconhecemos a criatividade divina em ambas. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de essa criatividade ser negada quando ciência e religião se tornam absolutistas e potencialmente destrutivas, pois isso muitas vezes acontece de fato e deve ser examinado com cuidado e condenado, se necessário.

Em recentes discussões levantadas pelo Movimento Fundamentalista acerca da teoria da evolução de Charles Darwin, foi com frequência levantada a pergunta se Darwin não havia matado Deus. A resposta, naturalmente, deve ser “não”. Na verdade, o que mata Deus é não respeitar o honesto e competente debate científico, atacando-o com convicções religiosas ou abandonando todo o mistério de Deus e do ser humano, a arte, a ética e a cultura, com base em isoladas pesquisas e teses tidas como científicas. Ao contrário, deve-se acrescentar que Deus enquanto Criador, eterna fonte do Amor e causa de todo ser, dificilmente é honrado por atividades religiosas realizadas em específicas ocasiões e lugares sem qualquer referência ao que Deus está fazendo no interior da sociedade e da cultura que nos cerca. Seria o “mundo interior” completamente desconectado do “mundo exterior”. Ora, Deus é o Criador de ambas dimensões.

Religião (e espiritualidade) é realidade de muitas faces e tem componentes que caem necessariamente sob a observação científica, por exemplo, elementos que devem ser compreendidos sob a ótica da Filosofia, a necessidade de se aproximar dos textos de maneira crítica e analisar, sem receio, suas raízes antropológicas, pensemos por exemplo na constituição da Liturgia. De seu lado, a ciência tem suas dimensões ou áreas de encantamento e mistério, baste pensar como em nosso tempo são os físicos que frequentemente nos chamam a contemplar o “mistério” do universo, aparentemente fruto do acaso, mas, de fato, a revelar uma “lógica” maravilhosa e profunda que parece projetá-lo para além de si mesmo… É bom não esquecer a observação do grande antropólogo B. Malinowski: “Se a religião abrange a vida e a morte, se ela surge de todas as ações coletivas e de todos os acontecimentos decisivos da vida individual, se ela envolve todo o mundo de pensamentos dos “primitivos” e todas as suas preocupações práticas, então, nós somos levados a nos interrogar, não sem espanto: O que é que ainda fica fora da religião, qual é a esfera do “profano” na vida do ser humano “primitivo”?

Opor ciência e religião pode confirmar a afirmação de Martin Buber (filósofo e teólogo judeu), de que “nada é mais apropriado para esconder a face de Deus como a religião”. Darwin, por exemplo, convida o ser humano a sentir-se parte da criação e não superior a ela, e isso é mais verdadeiro e de maior utilidade para nossa consciência ecológica atual do que uma leitura fundamentalista de Genesis. Se a ciência, com argumentos razoáveis, nos mostra coisas que são verdadeiras e a religião as contradiz, nesse caso é a religião que se mostra vã e falsa. A busca da verdade e o seguimento de Cristo não são apenas complementares, são de fato sinônimos. Já que não há conflito intrínseco ou essencial entre ciência e fé religiosa, nós devemos buscar uma espiritualidade que seja capaz de estabelecer harmonia entre as diferentes dimensões de nós mesmos(as): intelectual, emocional, física, familiar, humorística e artística, e que abranja as três grandes dimensões de nossa vida: pessoal, relacional-comunitária e sócio-político-cultural. É esse conjunto de dimensões profundamente articuladas e reciprocamente implicadas que, ao mesmo tempo, nos constitui e confere nossa unidade como ser humano. Concluímos com mais uma palavra do famoso cientista Albert Einstein: “Quem já não é capaz de admirar-se e mesmo extasiar-se, de fato, já está morto… Extasiar-se para saber que o que nos é impenetrável realmente existe manifestando a si mesmo como a mais alta sabedoria e a mais radiante beleza que nossas limitadas faculdades só conseguem compreender em suas mais primitivas formas – esse conhecimento, esse sentimento (feeling) é o que está no centro da verdadeira religião”.

  1. Humano ou divino, dogma ou o imperativo do Amor?

“O nome de Jesus Cristo é como um fio de ouro na tapeçaria da história da Igreja. Embora muitas vezes a tapeçaria esteja rota ou encardida, aquele fio é sempre usado de novo (teólogo alemão Hans Küng). É preciso sempre relembrar que Jesus, antes de se tornar um pregador, tinha gastado um tempo bem mais longo como artesão/pedreiro/marceneiro no anonimato de uma humilde comunidade, cujo nome nunca aparece na Bíblia do Primeiro Testamento. Só nesta constatação em sua biografia, há suficiente indicação para o rumo de nossa espiritualidade. Quem sabe, nosso raciocínio espontâneo nos levaria em outro sentido, deveria ter aproveitado melhor o tempo para anunciar o Reino de Deus como pregador, teria sido mais proveitoso do que ficar fazendo objetos de madeira e, quem sabe, de pedra, encomendados por sua pequena vizinhança. Muitos(as) dos santos(as) e místicos(as) da Igreja se debruçaram frequentemente sobre esse tempo de vida oculta de Jesus, julgando-o de alta significação. Esse ocultamento nos conduz adiante no mistério da divina presença em Jesus como criança e jovem, provocando-nos a perceber a grandiosidade e beleza de Deus que se manifestam no silêncio, na dependência e até na aparente inutilidade.

Deve haver aí lições vitais e tão negligenciadas, e não só para nossa oração. Num mundo de injustiça, cegueira e insensibilidade às necessidades de outrem, a voz de Jesus adulto, o Mestre e Profeta, deve ser ouvida e provocar respostas práticas de mudança de vida, nunca esquecendo, porém, a prioridade que Ele mesmo deu, por exemplo, à oração, ao encontro espontâneo com amigos e amigas, a festejar e comer em comum, a observar a beleza da Natureza… O divino era percebido em Jesus não só naquilo que Ele era, mas em tudo o que dizia e fazia enquanto ser humano. Se temos de perceber o divino em sentido autenticamente cristão, devemos familiarizar-nos com os evangelhos e com os diferentes, mas complementares, retratos de Jesus: sua vida, ensinamento, ações, morte e ressurreição. Mas aqui há algo muito importante a lembrar: devemos contemplar a pessoa de Jesus, o Cristo, por um longo tempo para chegar finalmente a perceber o que Ele deseja, que, na verdade, O encontremos em nós mesmos(as), O percebamos uns(as) em outrem e até na Natureza e na sociedade e na cultura. Fr. Benson, fundador de uma ordem religiosa masculina na Igreja Anglicana, disse claramente que há um perigo em venerar a presença de Cristo no sacramento do altar enquanto não tenhamos esgotado nossa capacidade de reconhecer Sua presença em nossas vidas e afazeres do dia a dia. Dom Helder Camara foi um exemplo claro disto, tão íntima era Sua união com Cristo que manifestava a profunda convicção de que as pessoas e sobretudo as mais pobres eram para ele a presença do “Cristo vivo”. Chegava ao detalhe de querer ele mesmo atender quando alguém batia a sua porta: “Pode ser uma pessoa pobre e eu não quero desperdiçar o privilégio de nela acolher o Cristo vivo que bate a minha porta”. Por isso, diz o teólogo luterano Moltmann: “A Cristologia é essencialmente inconclusa e permanentemente precisada de revisão”.

Uma das coisas da história cristã mais difíceis de ser compreendida é que a doutrina sobre Cristo se tornou fator de divisão, chegando até mesmo a provocar lutas violentas. Pode-se perguntar se a causa disso não foi justamente o abandono da linguagem poética e simbólica – imagens, metáforas – que deu lugar à pretensão de um absolutismo dogmático, baseado em categorias filosóficas, tão distante das imagens de Jesus “pintadas” pelos evangelhos. É verdade, Deus foi sentido como devendo ser representado de uma determinada maneira. Mas isso não devia autorizar ninguém a sentir-se com direito a matar e eliminar quem pensasse de outra maneira. As lutas “cristológicas” dos primeiros séculos, desencadeadas entre os cristãos parecem revelar claramente que, de fato, se tratava muito mais de disputas de poder, de privilégios e mesmo de territórios do que de teologia.

O antigo Arcebispo de Cantuária, já falecido, Michael Ramsey dizia: “A Encarnação é um conceito que perturba a capacidade humana de crer e continua a ser assim até hoje. Começa a ser crível quando nós refletimos, primeiro, que há a antecedente afinidade entre Deus e o ser humano enquanto é feito à imagem de Deus, com a potencialidade de altíssimo grau de amizade entre Criador e criatura que se possa imaginar; e, em segundo lugar, que a essência da divindade é amor que se doa, com a potencialidade de dar-se para além de humanas analogias”.

Os cristãos se esforçaram por discernir a profunda complementariedade entre a natureza humana e a natureza divina de Cristo, mas a ênfase no aspecto dogmático tende a mascarar ou encobrir Sua presença humana e a simplicidade de Sua mensagem. O principal chamado de Jesus é para amar, não para proclamar dogmas a respeito de Sua divindade. A cena de Maria Madalena desejosa de abraçar Jesus no jardim, depois da ressurreição, é reveladora: Jesus resiste a seu impulso de amizade e aí temos uma segunda dimensão que também é central: ela não devia “retê-lo”, mas ir aos irmãos, aos outros, à comunidade. Esse texto é do evangelho segundo João (cf. cap. 20), que tem como nota dominante, não a proclamação, mas a intimidade: intimidade do Filho com o Pai, do Filho conosco e de nós uns(as) uns com outros(as). Esse é o grande mandamento tantas vezes repetido, tanto no Evangelho quanto na Primeira Carta. O Amor, apesar de não poder transformar-se em preceito legal, pode ter como seu núcleo mais profundo a urgência, a atração e a potência de força interior. É o que se pode perceber também nos outros evangelhos: quando Jesus se encaminha para a morte, Ele fixa sua atenção no Pai, no Reino, seus valores de misericórdia e compaixão entre nós e em favor de irmãos e irmãs famintos, pobres e dilacerados. Se fosse para chegar a uma indicação conclusiva a partir das narrações evangélicas a respeito da vida, da morte e da ressurreição de Jesus, nós poderíamos resumir tudo em dois conceitos fundamentais: o amor incondicional e a vida de comunidade.

Muito se tem dito e feito – não por último em canais do tele-evangelismo – “em nome de Jesus”. Ele chega a ter as qualidades “poderosas” de um mantra ou de varinha de condão, quem sabe, até de uma energia mágica. Para falar e atuar “em nome” de alguém biblicamente é preciso falar e atuar com os valores e o espírito dessa pessoa. Quanto mais nos aproximamos de Jesus, tanto mais somos chamados(as) a compartilhar suas prioridades quanto ao Reinado de Deus; quanto mais nos voltamos para o Pai, tanto mais somos convidados(as) a estreitar nossos laços uns(as) com outros(as). Não somos chamados(as) a gastar nosso tempo a falar sobre Jesus. É muitas vezes particularmente triste constatar que haja pessoas que se ocupem em fazer isso, até cheias de boa vontade. Nós somos chamados(as), isto sim, a tentar descobrir a riqueza da divindade em nossa própria humanidade e naquela de nosso(a) próximo(a) com seus talentos, fraquezas, encantos, e grandes carências. Para esse propósito Jesus nos inspira o mesmo Espírito que estava n’Ele. Não devemos esquecer a frase do teólogo judeu Martin Buber:” A fé de Jesus de Nazaré une cristãos e judeus; a fé em Jesus nos divide”.

  1. A oração contemplativa

“Há um fato curioso: modernos apologistas da vida contemplativa tendem a defendê-la em terrenos pragmáticos” (Thomas Merton, monge). A vida é criativa e corretamente ordenada quando as coisas estão dirigidas para o serviço da vida humana e o ser humano a serviço de Deus. A obtusa inversão dessa verdade, Deus posto a serviço do ser humano e este a serviço das coisas pode muito bem explicar frequentemente a triste situação que nós encontramos em muito daquilo que constitui nossa política e religião, sem esquecer o que também se dá em nós mesmos(as). A oração contemplativa deve ser um meio de purificar percepções. Mas isso só se dá se questionamos noções quais as de utilidade e de resultados. É vista como uma avançada forma de oração. Mas qualquer um(a) que já tenha experimentado o simples prazer (e não utilidade) de estar na presença da pessoa amada, ou de uma criança a brincar no parque, ou de contemplar uma pintura, ou escutar música ou de apreciar o por do sol… pode experimentar o sentimento de eternidade que acompanha tal prazer como uma ajuda para tentar praticar esse tipo de oração. Naturalmente há muitas outras maneiras de acordo com o jeito e a cultura dos povos.

Grande parte do povo cristão, mesmo gente até muito piedosa, hoje em dia se baseia numa visão pragmática de Deus a serviço do ser humano e n’Ele busca ajuda para o próprio bem estar, a prosperidade e o sucesso. Não se deve desejar prosperidade e bem estar para si e seus entes queridos? Procedamos com cuidado. O problema não é com a prosperidade ou o sucesso em si mesmos. Sem dúvida, Deus pode abençoar pessoas em todo lugar e em todo tempo, inclusive em igrejas e situações pelas quais podemos até ter pouca simpatia. Mas, naturalmente, o que é decisivo é lembrar-se de que toda bênção que a vida nos dispensa deve chegar-nos acompanhada da pergunta: “Que vamos fazer nós com isso?” A bênção é só o começo, não o fim do processo. De qualquer maneira, o real problema ocorre quando a bênção (prosperidade, sucesso, saúde, superação de graves problemas…) quando a bênção é sentida como algo que nada tem a ver com os desafios do Evangelho: simplicidade no estilo de vida, serviço ao próximo, partilha de bens, luta pela justiça, compromisso com a comunidade e com seus membros menos favorecidos, humildade e compaixão. A mensagem de Jesus é clara e não deixa dúvidas: se alguém ganha o mundo inteiro, mas se perde a si mesmo, tudo o que possui de nada vale. O convite é tomar a cruz do amor generoso e destronar a si mesmo(a) para achar plenitude de vide no serviço de Deus e de nossos irmãos e irmãs. O que sempre é mais fácil de dizer do que de fazer…

O Deus da verdade nos sugerirá sempre começar por reconhecer com honestidade nossos desejos e motivos e, na medida em que podemos, sobre os tipos de projeção que fazemos sobre outras pessoas e suas circunstâncias. O que pode, por exemplo, ser sentido como justa indignação ou condenação moral pode muito bem mascarar sentimento de inveja ou desejo reprimido. Mesmo que haja muito a questionar a respeito de certas incursões psicológicas e psicanalíticas, em Freud, por exemplo, de qualquer maneira não podemos retroceder. É importante ter em conta modernas conquistas da “ciência da alma” humana quando nos aproximamos de qualquer espécie de prática de oração, pois do contrário poderemos estar longe de compreender como nossos(as) contemporâneos(as) percebem a si mesmos(as). E se nossa visão acerca de outrem estiver distorcida pelos limites de nossa própria mente, quem sabe, o que será de nossa visão de Deus!

A cultura ocidental, apesar de sua rica variedade, tem sido dominada pelo consumismo e pela erotização de tudo. Talvez historicamente se trate de reação e protesto a processos de repressão impostos ao longo da história pela cultura cristã… Qualquer caminho de oração contemplativa deve começar pelo reconhecimento honesto de nós mesmos(as), acerca do que nos dá prazer e do que nos faz sofrer. De qualquer forma, a sugestão básica para quem inicia esse tipo de oração é não fazer nada, não querer nada, não desejar nada, simplesmente estar diante de Deus em silêncio e adoração; isso é vital, é o caminho indicado para chegar às raízes do problema. Isso também ajuda a entrar na corrente de contracultura da vida cristã. Nós não somos definidos por nosso fazer, profissão, salário ou status e evidentemente não nos colocamos diante de Deus nesses termos. Naturalmente, isso não tem sentido para alguém que tenha Deus como o grande pai provedor, mas pode ser de grande interesse para quem busca Deus como fonte de verdade e de beleza, o Deus que deseja ser íntimo de nós. Este caminho de oração não é apto para conseguir ou alcançar alguma coisa, ou resolver algum problema ou situação, nem será um momento para “fazer” alguma coisa. Trata-se de simplesmente “estar” na companhia de Deus.

Nós temos necessidade de sentir prazer na companhia do grande Outro e, ao fazer isso, aprender a ter prazer na companhia dos(as) outros(as). Não pelo que podem fazer por nós ou nos dar, mas simplesmente porque é agradável e bonito que estejamos juntos. Beleza, paixão e intimidade – e a alegria ou tristeza que criam em nós – nos possibilitam infalíveis pontos de partida para compreender Deus e chegar à intimidade com a divindade indefesos, desarmados “diante do trono da graça”. Isso nos é mostrado em diversas partes da Bíblia, mas esplendidamente no Cantar dos Cantares e nos poemas do profeta Oseias. É esse sentimento de incapacidade e vulnerabilidade de nossa condição humana que se torna a base da oração contemplativa. Nós devemos tomar distância de nossa compreensão e até de nossos melhores pensamentos a respeito de Deus. Devemos tentar estar diante de Deus renunciando a todo conhecimento, em total escuridão e nudez. Há, entretanto, uma consequência paradoxal desse tipo de oração. Ao destruir nossas imagens de Deus, prontamente admitindo que são idolátricas e expressão da busca de si mesmo(a), nós nos sentimos libertados(as) para ter uma mais intensa compreensão de como Deus se faz presente em todas as coisas. Forma-se uma nova integração que contém consciência das limitações de linguagem, símbolos, discursos, mas um mais profundo senso do caminho de Deus se faz presente. Quando nós já não estaremos vendo nada na oração é que estamos começando a ver e enxergar Deus. O que terá sido desmantelado é nosso desejo de dizer “Deus está aqui ou ali”, “Deus é isto ou aquilo”. Agora a questão não é se Deus está presente, mas como Se faz presente. Isto está belamente formulado na oração coleta do sexto domingo de Páscoa que nos convida a amar a Deus em todas as coisas e acima de todas as coisas. Há assim um movimento circular: honesto reconhecimento de nós mesmos(as) e de nossa incapacidade, não conhecendo nada sobre Deus, e, ao mesmo tempo conhecendo e vendo tudo de novo.

“Explanações tendem a distinguir as partes, enquanto a contemplação tende a ver o objeto como um todo” (Catalamessa, pregador de retiros ao papa e a seus auxiliares). O Deus de todas as nossas tão humanas paixões é o mesmo Deus que tem sua habitação além da mais distante estrela; o mesmo Deus na dependência e fragilidade do bebê e nas linhas que cruzam a face do velho místico como na “nuvem do não saber”. Não nos deve surpreender que os maiores mestres da oração e do misticismo começaram com aquilo que é verdadeiramente humano e dizem o inesperado sobre o divino: “O Pai dá gargalhadas diante do Filho e o Filho diante do Pai e as gargalhadas provocam o maior prazer e o prazer espalha alegria e a alegria espalha amor” (Mestre Eckhart, grande místico medieval).

Finalmente, nossa oração é o fruto da graça. Por isso não é alguma coisa que podemos controlar, como “ligar e desligar”. Vem-nos como dom que chega gratuitamente. Mas o que nos vem gratuitamente de Deus não quer dizer por isso que vem barato. Nossa parte é preparar o chão, dar tempo e espaço, ser aberto(a) e atento(a), não fugirmos para longe de nosso medo ou da solidão, mas, como Jesus, mergulharmos aí. Na verdade, “nós nos tornamos contemplativos(as) quando Deus descobre a Si mesmo em nós” (Thomas Merton).

Reverendo Steffen Taylor (clérigo anglicano da Inglaterra, foi missionário no Caribe e também na Diocese Anglicana do Recife, agora emérito, vive na Inglaterra)

O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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