(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Há poucos dias o Brasil celebrou mais uma vez o Dia da Consciência Negra.  Infelizmente a celebração foi marcada pelo brutal assassinato por espancamento de um cidadão negro chamado João Alberto Vieira Freitas em um supermercado Carrefour de Porto Alegre. Casado e pai de quatro filhos, João Alberto morava na Vila do IAPI, lugar onde passou sua infância a grande cantora Elis Regina.

Diante do corpo espancado até a morte de João Alberto, talvez Elis Regina tivesse dificuldade de cantar seu grande sucesso “Black is beautiful”, de Marcos Valle, que diz: “black beauty is so peaceful”.  Era tudo menos pacífica a cena que todas as emissoras do país mostraram, com dois homens jogando-o ao chão, espancando-o e esmagando seu corpo até tirar-lhe o hálito da vida.  Ainda houve filmagem e fotografias para caracterizar bem a crueldade do macabro espetáculo.

Mas parece que não há racismo no Brasil. Pelo menos é isso que dizem muitos. Vivemos uma democracia racial.  Não pesou nada o fato de João Alberto ser negro para que acontecesse o seu massacre.  De minha parte, porém, creio que houve sim, porque o racismo infelizmente está entranhado na sociedade brasileira e é perversamente estrutural.

João Alberto teria, segundo depoimentos, molestado uma mulher dentro do supermercado e por isso fora interpelado pelos seguranças.  Perdeu a calma e agrediu um deles com um soco. Deveria ter sido contido e até eventualmente conduzido à delegacia.  Mas não.  Sem chance de defesa, foi massacrado. Como era negro devia ser perigoso. Então a violência que caiu sobre ele foi mortal. A desproporção entre seu comportamento e o tratamento que recebeu estava em direta relação com sua raça e a cor de sua pele.

 Acontece que João Alberto compartilha essa condição e essa negritude com uma parte esmagadora de todo o povo brasileiro. Muitos poucos de nós podemos dizer que em nossas veias não corre gota alguma de sangue negro.  A miscigenação do europeu com o negro africano povoou este país com todas as nuances de pardos, mulatos e mestiços.  E apesar disso o racismo ainda permanece vivo produzindo horrores como o deste último Dia da Consciência Negra.

O racismo no Brasil é velado e por isso mesmo mais insidioso.  Penetra nas consciências e nas mentalidades, e passa a ser encarado com naturalidade.  Como natural é que aquela que chega convidada para um jantar em algum prédio de classe média seja mandada pelo porteiro para o elevador dos fundos e a entrada de serviço pelo fato de ser negra.

Natural também é o fato de que as cidades brasileiras hajam construído para si um verdadeiro apartheid social, abrigando os brancos nas zonas chiques, elegantes, mais seguras e bem policiadas, e enviado os negros para as favelas, os mocambos, as comunidades construídas em encostas que caem sistematicamente em cada enchente e onde a polícia não é uma segurança, mas um perigo a mais.

Faz parte das coisas naturais igualmente que jovens negros abaixo de trinta anos sejam sistematicamente investigados nos transportes públicos e nas ruas a partir de determinada hora.  E nessas circunstâncias muitas vezes sejam presos, espoliados de seus documentos ou agredidos fisicamente. São negros, boa coisa não devem estar tramando.

Assim foi natural na história do Brasil que a mulher negra se responsabilizasse pelos serviços na casa grande, limpando, lavando, passando, cozinhando e, de volta à senzala atender desejos e necessidades do senhor e de sua legítima e biológica descendência. Assim foi natural que as mulheres negras criassem filhos além dos seus próprios, amamentando, trocando fraldas, acalentando, adormecendo, acordando, alimentando os filhos da família, sendo chamadas carinhosamente de “mães pretas”. A suplência do papel materno na verdade era da mãe biológica, porque quem fazia tudo que de uma mãe se espera era a mulher negra.

Mas além do trabalho doméstico, há outros nichos que se reconhecem como lugares adequados aos negros: o esporte, sobretudo o futebol; o samba; o desfile da escola de samba, onde as mulatas brilham com sua beleza estonteando os turistas estrangeiros.  Ali estão em seu espaço e seu lugar.  Se aparecem em espaço alternativo, cuidado.  Pode acontecer-lhes algo parecido com o que se passou com João Alberto.

A grande socióloga Lélia Gonzalez escreveu brilhantemente a respeito de nosso racismo estrutural e velado.  Narrou que cansou de abrir a porta de sua casa e escutar a cordial pergunta do vendedor: “A madame está? ”  Passou a responder: “Saiu”. Mas continuou ouvindo essa e outras perguntas, como: “Você trabalha na televisão?”,  “Você é artista?”. Sabia o que estava por trás desse trabalho e dessa arte.

Chegamos a um ponto em que é preciso ver claro que a madame saiu porque não há mais lugar para ela.  O sistema doméstico não pode continuar sendo a reprodução do sistema casa grande e senzala que tristemente definiu um perfil do Brasil. Não temos o direito de criticar qualquer outro país por delitos raciais, pretextando que aqui contamos com leis que protegem a população negra.  O racismo é doença nossa. E doença grave.  George Floyd mora aqui.  E hoje se chama João Alberto, assim como ontem foi João Pedro e Marielle Franco. E também não consegue respirar.

 Obs: Maria Clara Bingemer é  autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros 

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