Na classe das quatro bisavós, só conheci uma, e, assim mesmo, a visão, meio esfarrapada, que guardei, é a de vê-la morta, estirada em cama de solteiro, em um quarto do sítio de vovô Aristides, no início da noite. Lá fomos. O que me chamou a atenção se liga a uma bolha, bem alva, um tanto grande, no pé esquerdo. Só. Nada me recordo do seu rosto. O fato aí se inicia e se encerra. No dia seguinte, pela tarde, muitas pessoas, para o enterro. Tudo mui rápido e instantâneo. O nome da morta não veio à tona. Era a mãe de vovó Lilia, e, no meu conhecimento, por muito tempo, a ela me referia como minha mainha, como a filha chamava. Muitos anos depois, no cemitério, ante sua sepultura, aprendi seu nome de verdade: Ana Francisca de Souza.

Vovô Aristides exagerou nas homenagens a sogra: colocou o seu nome em duas filhas. Os apelidos estabeleceram a distinção: uma, Anita; a outra, Donaninha. Aliás, era como Donaninha que ele aludia a sogra, junção de Dona e Aninha, o tempo absorvendo a letra a. Já a sua mãe, Maria Francisca do Espírito Santo, foi alvo de uma distinção pela metade. Ou seja, apenas o nome de Maria, no que, sapecou em duas filhas: uma, mamãe; a outra, que nasceu depois, recebeu o apelido de Pequena, para se diferenciar da mais velha, e, como Pequena ficou entre irmãos e sobrinhos. O nome Francisca, por outro lado, que aparecia na mãe e da sogra, transformando-os em compostos, não foi escolhido para batizar nenhuma das demais filhas.

Maria Francisca do Espírito Santo morreu em 1949. Ana Francisca de Souza, em 1953. A primeira, na transmissão de suas feições, foi mais feliz: duas netas herdaram-lhe o nariz grande e curvo, em edição melhorada, nariz, aliás, que vovô Aristides também estampava, a descer até a boca quando a idade ia aumentando os anos, lembrando o dele e o da mãe o de Touro Sentado, nos velhos filmes americanos. A segunda, cujo retrato mostra ter sido uma mulher bonita, teve alguma coisa do rosto herdada por uma só neta, tia Alina. As demais se libertaram do nariz da primeira e se afastaram das feições da segunda, ganhando fisionomia outra. Hoje são apenas duas sepulturas no Cemitério das Almas de Itabaiana, onde ninguém mais acende velas, nem mesmo no dia dos finados, carimbadas, que estão, pelo peso da morte definitiva – Diário de Pernambuco, 13 e 14 de junho de 2020.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
      

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