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Santo Agostinho, tido como o maior gênio do Cristianismo, ensinou que Deus escrevera dois livros. O primeiro, o livro do mundo. É o que se vê em Gênesis, cap. 1º. Deus fala e as coisas surgem como Sua palavra, até chegar ao ser humano, homem e mulher, que é a imagem d’Ele, isto é, o ser que, em toda a criação, diz da melhor maneira, o que é Deus. A palavra, o “livro” é para a gente se comunicar, pois bem, Deus se comunica conosco, primeiramente, através das coisas criadas e da vida, sobretudo através das pessoas (cf. Rm 1, 19-20). É, então, por nosso próprio ser, pelas relações com as pessoas e as coisas, pelos acontecimentos da vida pessoal e da história coletiva, é mediante tudo isso que Deus se comunica conosco. É verdade que não podemos saber nunca o que Ele é em si mesmo, pois é um “mistério abscôndito” (escondido) como diz o profeta Isaías. Mas, através do mundo e de nossa vida, Ele se revela como Caminho para nós (cf. Jo 14, 6), e, ao caminhar n’Ele, nós vamos percebendo o que Ele é. Na verdade, Deus não se conhece por idéias e conceitos, mas por experiência. É só vivendo com Ele e, sobretudo, n’Ele que ficamos sabendo quem é. É como se dá na comunicação de amor, a gente conhece a pessoa amada ao partilhar de sua intimidade. “Só se conhece bem com o coração” (cf. Jo15 e 17; 1Jo 4, 7-21).
Entre todas as realidades criadas, Jesus é a imagem de Deus por excelência, como nos diz o Novo Testamento: “Quem me vê, vê o Pai” (cf. Jo 14, 7-11; Fl 2, 5-11; Cl 1, 15-20; Hb 1, 1-4; Ef 1, 20-23). E Ele mesmo nos diz que só por experiência é que se conhece a Deus. É claro, pois é assim que se dá com as realidades mais profundas da existência humana: é só vivendo que se conhece a Vida, é só experimentando em si mesmo(a), amando, que se conhece o Amor. “Porque de amor pra entender é preciso amar”… Por isso, Jesus respondeu aos discípulos: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). São João mostra isto claramente quando diz que duas pessoas se aproximaram de Jesus e lhe perguntaram por sua identidade, seu “espaço” ou sistema de vida. Ele respondeu: “Venham e vejam”, ou seja, experimentem (cf. Jo 1, 35-39). E é ainda mais explícito em sua primeira epístola: é em comunhão de vida com Ele que conhecemos a Vida (1Jo 1, 1-4). “Quem ama é que conhece a Deus” (4, 7; cf. caps. 3º e 4º).
Deve ser muito firme para nós que o primeiro livro é a vida; é pela própria criaçãoque Deus se comunica conosco, em primeiro lugar. O Apóstolo São Paulo nos diz que a Lei de Deus já está escrita em nossos corações, a saber, na consciência (cf. Rm 2, 12-16). Dizer que Jesus é, por excelência, a imagem de Deus é o mesmo que dizer que é mediante umaexperiência de vida com Jesus (cf. Jo 1, 35-39)que percebemos Deus em nossa própria vida. Finalmente, chega a dizer que nós mesmos(as), em comunidade, somos “uma carta de Cristo (…) escrita, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (2Cor 3, 3). E os profetas sempre disseram que Deus fala pelosacontecimentos.
Santo Agostinho, porém, reconhece que o pecado humano embaralhou as letras desse primeiro livro, confundiu tudo e já não lemos a palavra de Deus com clareza. Em Sua misericórdia, Ele vem em nosso socorro e escreve um segundo livro para nos ajudar, é a Bíblia. Mas é curioso, esse segundo livro que nos é entregue como guia é justamente o testemunho da vida de um povo, culminando com a experiência de Jesus neste nosso mundo. É certo que contém ensinamentos, doutrinas, leis, mas tudo isso foi vivido por esse povo. A Bíblia não é palavra teórica, mas a narração da história, de como viveram nossos pais e mães na fé; e ficouescrita para nos ensinar o caminho a seguir (cf. 1Cor 10, 1-13; Hb 11, 1-12, 3). Assim, a função da Bíblia é nos ensinar como escutar a Palavra de Deus na vida de todo dia, em nossa vida pessoal e na vida coletiva do povo e dos povos. Conhecer a Bíblia e meditá-la é como nosso momento de escola. Com ela aprendemos os critérios da escuta; ficamos sabendo quais os caminhos por onde Deus costuma andar e por onde caminham as pessoas que com Ele se comprometem. Com ela, que nos fala dos tempos de ontem, nos preparamos para perceber a voz de Deus nos tempos de hoje. É só na vida que podemos compreender o texto (cf. 2Cor 3). Carlos Mesters, inspirando-se no Salmo 119, versículo 105, onde se diz “tua Palavra é lâmpada para os meus pés, luz para o meu caminho”, sugere uma imagem muito expressiva: a lâmpada não é feita para a gente ficar olhando pra ela, mas para projetar luz, iluminar e fazer ver todas as coisas que estão em redor. Assim é que deve ser a Bíblia para nós, luz a iluminar a realidade em volta. Quem ainda não leu seu livro, já de muitos anos atrás, “Por trás das Palavras”, procure lê-lo e terá grande proveito quanto ao jeito (método) de ler as santas Escrituras. 27/08/2015
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política